Olhar/Mosaico em perspectiva de práticas e conhecimentos, políticas e artes africanas/diapóricas. Biocaminho na esfera. Anima afim de experimentar toques e palavras, sons e ruídos, notas tortas, acalentando dissonantes rebeldias. Desejos de sorver quase tudo no cosmo, na Américafrolatina. Utopias à beira do Atlântico. Por desvelar e reconhecer as partes e o todo, durante a busca do estar pleno no mundo, enquanto for.
domingo, 11 de outubro de 2020
Celia Demarchi, 63, é trabalhadora da área de comunicação. Repórter desde os 19 em veículos pequenos, médios e grandes, com ênfase em economia; comunicadora em administrações públicas populares e empresas privadas (livros, eventos editoriais e políticos). Comunicadora voluntária de candidaturas e movimentos populares.
Duas realidades:
Um amigo marceneiro, que mora na região do Grajaú ( São Paulo Capital), me conta que de uma semana para a outra o preço de uma chapa de MDF padrão foi de R$ 160 para R$ 240, e mesmo assim foi difícil conseguir uma única. O produto está em falta porque, segundo ele ouve dos fornecedores, os produtores estão preferindo exportar. Como o arroz e sabe-se lá quantos produtos essenciais mais. A gente sabe que exportar fica mais lucrativo quanto mais aumenta o valor do dólar em comparação com o real... e o dólar tem rondado os R$ 6. Enfim, o dólar aumenta porque a economia desanda e os “patriotas” exportam até os produtos da nossa cesta básica, como o arroz, que escasseia e fica mais caro.
Meu amigo me diz que foi ao mercadinho do bairro, o Jardim das Imbuiais, mas não teve coragem de pagar R$ 28 no pacote de arroz, que há três ou quatro semanas custava R$ 11, depois R$ 18... Também desistiu de levar óleo de soja. Outra amiga, que mora na zona Leste e criou uma rede de solidariedade para ajudar algumas comunidades miseráveis da região a não passar fome durante a quarentena, diz que cestas básicas foram o produto mais doado nesse período para os vulneráveis... ou seja, a própria solidariedade pressionou os preços.
Ao observar tudo isso, uma terceira amiga, especialista em segurança alimentar, pontua que, nós, povos colonizados, nos tornamos presas da indústria alimentícia, passamos fome quando poderíamos ter abundância, desde que aprendêssemos a valorizar produtos e formas de produção e consumo alternativos, opção que vem sendo adotada em várias comunidades país afora, segundo ela. Bom, isso, digo eu, é um dos meios, entre tantos que vêm brotando no mundo todo, de ir “cercando” o capitalismo, enquanto não se pode destruí-lo.
Meu amigo marceneiro conta ainda que os mercadinhos do bairro estão ficando vazios. Sem dinheiro, as pessoas estariam comprando porções minúsculas, comendo menos, enquanto os preços sobem inclusive porque os comerciantes estariam especulando com os estoques.
Leio que que o IGPM, índice usado para reajustar aluguéis, que tem o dólar como um dos componentes, está à beira de 20%, em 12 meses, enquanto o IPCA, que indica a inflação oficial e reajusta benefícios e salários dos felizardos que ainda os têm, fechou em 3,1%. Imaginem, receber aumento de 3% e pagar 20% a mais pelo aluguel... E o jornal explica que, no IPCA, o maior peso foi da alta dos alimentos, de mais de 15%. Os demais preços não têm fôlego para subir porque, de bolsos vazios, o brasileiro mal compra comida.
Conta ainda o amigo que seus vizinhos estão retraídos, parecem ter medo, ninguém quer falar de política e políticos, eleições. Não de hoje. Têm raiva, não comentam notícias de whatsapp, falem mal ou bem de quem for. Sentem-se largados e enganados. Dão bananas paras as carreatas eleitorais da esquerda e da direita...
Por causa da covid, alguns trancaram-se em casa ao ver a morte avizinhando-se. Outros, como um homem que perdeu a esposa para a covid e tem filhos infectados e doentes, nada vêem de anormal: "As pessoas com saúde ruim morrem mesmo".
Quanto a mim, sinto como se vivesse em duas realidades. A dos movimentos sociais organizados, combativos, apoiados por partidos e parlamentares de esquerda, que lutam e efetivamente conseguem impor derrotas ao projeto neoliberal ultrajante de Doria-Covas. E a da população em geral, em que a necessidade de sobrevivência é a única preocupação e em que o desinteresse pela política é escancarado. A amiga da zona Leste ouviu estes dias, ao entrar, sentar-se e aceitar um café num barraco triste de uma comunidade isolada em plena cidade de São Paulo: “A gente confia na senhora porque a senhora não tem nojo da gente”. Essa é a realidade que se impõe, com a qual, efetivamente, não estamos contracenando.
Celia Demarchi
10 de outubro de 2020.

Nenhum comentário:
Postar um comentário