As infâncias que Sheila Signatário mira
e aquilo que nos faz ver.
Que crianças a cidade cria?
Depende do quadrante geográfico, depende da lente utilizada, depende do viés ideológico,
depende dos interesses em disputa. Por vezes os psicólogos educacionais
trabalham com uma imagem de criança universal, que nega veemente a nossa
concreta existência e de outros que tenham a mesma origem social e étnica que
nós. Talvez o único local onde as
imagens das crianças possam corresponder a alguma realidade concreta é na
produção visual marginal. Quero dizer talvez seja possível encontrar infâncias não
estereotipadas nos discursos visuais periféricos sobre a cidade.
Sheila Signatário inverte
a lente costumeiramente utilizada para produzir estranhamento e estigma e volta
de dentro para fora. Não se trata de mostrar crianças negras-mestiças, periféricas
ou pobres com um prato na mão, esperando a ação salvadora governamental ou das
Ongs. Signatário então propõem um olhar quase casual sobre a preferia da cidade
de São Paulo. Estamos bem espertos sobre a ideia de que a imagem reproduz o real
em sua totalidade e de forma objetiva, sem macula subjetiva, interpretativa ou
pessoal. Já sabemos que todo recorte imagético é marcado também pela escolha subjetiva
da autoria. Por outro lado somos obrigados a reconhecer nessas escolhas o aspecto
inventivo, estético e politicamente insubmisso das artes.
Esse olhar de dentro não
parece querer se passar por uma visão da própria infância, mas antes de uma
delicadeza da vida de seres humanos em um estágio dela em que quase tudo é promessa,
potencia e vir a ser. Não que infância seja sempre um ponto inicial de uma
longa trajetória, ( sabemos muito da mortalidade epidêmica dos jovens pretos e pobres), mas a vida é vida em qualquer
ponto do trajeto existencial. Algo difícil de ser percebido pela medicina
privada ou pública, por exemplo. A infância em retrato traz para e cena, o
valor da vida em si mesma, mas recorta um ponto da biotrajetória.
Signatário inventa com
outros fotógrafos um discurso visual novo e inovador, que entra em rota de colisão
com as perspectivas visualmente hegemônicas sobre as margens da cidade. A apreensão
e uso da tecnologia digital, barateia e torna relativamente acessível o
registro ao jovens periféricos. Essa abordagem que extrapola a condição inicial
da maquina digital, utilizada para casamentos e outros eventos cotidianos,
talvez tenha ver com uma luta cultural, ainda mal estudada e compreendida, mas
que se manifesta em vários campos das linguagens artísticas, da criação, produção
e circulação de bens culturais na cidade .
Luz e sombra diurnas,
movimentos multicores tendo ao fundo paisagens humanas devastadas pelas desigualdades
e pela violência cotidiana, contrastam com risos, jogos, brincadeiras e olhares
por futuro. Quem olha é Signatário, mas ela
enxerga por uma fresta no tempo da existência, pela qual nos todos passamos,
sobrevivemos e ainda construímos utopias.
Quando olhamos as imagens
de Sheila, por alguns segundos, podemos nos projetar nelas e nas (im)possibilidades
que foram sendo colocadas em nossos caminho ao longo da existência e as quais
tivemos que superar para ter direito a contar nossa própria versão sobre essa
cidade e esse mundo.
Salloma Sallomão.
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