SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Bio-caminho

salloma Salomão Jovino da Silva, "Salloma Salomão é um dos vencedores do CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA RUTH DE SOUZA, em São Paulo, 2004. por dez anos foi Professor da FSA-SP, Produtor Cultural, Músico, Dramaturgo, Ator e Historiador. Pesquisador financiado pela Capes e CNPQ, investigador vistante do Instituto de Ciências Socais da Universidade de Lisboa. Orientações Dra Maria Odila Leite da Silva, Dr José Machado Pais e Dra Antonieta Antonacci. Lançou trabalhos artísticos e de pesquisa sobre musicalidades e teatralidades negras na diáspora. Segue curioso pelo Brasil e mundo afora atrás do rastros da diáspora negra. #CORRENTE- LIBERTADORA: O QUILOMBO DA MEMÓRIA-VÍDEO- 1990- ADVP-FANTASMA. #AFRORIGEM-CD- 1995- CD-ARUANDA MUNDI. #OS SONS QUE VEM DAS RUAS- 1997- SELO NEGRO. #O DIA DAS TRIBOS-CD-1998-ARUANDA MUNDI. #UM MUNDO PRETO PAULISTANO- TCC-HISTÓRIA-PUC-SP 1997- ARUANDA MUNDI. #A POLIFONIA DO PROTESTO NEGRO- 2000-DISSERTAÇÃO DE MESTRADO- PUC-SP. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- CD - 2002 -ARUANDA MUNDI #AS MARIMBAS DE DEBRET- ICS-PT- 2003. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- TESE DE DOUTORADO- 2005- PUC-SP. #FACES DA TARDE DE UM MESMO SENTIMENTO- CD- 2008- ARUANDA SALLOMA 30 ANOS DE MUSICALIDADE E NEGRITUDE- DVD-2010- ARUANDA MUNDI. Elenco de Gota D'Água Preta 2019, Criador de Agosto na cidade murada.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Augusto Cerqueira: Poetas das encruzilhadas nordesfinas


Agustus Legbanus Pirapóricus
Desde o século XVI, os sem-escrita povos de cor, insistem em se comunicar por meios de textos, tidos e havidos como exclusivos dos teutônicos, dos gregos e dos latinos. Aprendemos na escola que gente bárbara, gente preta, gente índia são gentes, mas não tão plenamente. A escrita é uma forma de elevação da alma, só para iluminados.

Segundo nossos bem intencionados professores (as) a Música nasceu na Grécia, a Literatura também nasceu lá, mas chegou a maturidade em Roma e a filosofia verdadeira conheceu seu apogeu na Alemanha. Essas verdades sem relativização se erguem como muros de concreto contra nós, negromestiços, silvícolas, caipiras e maletrados. Uma inversão, que coloca a escrita como tendo sido anterior ao pensamento, nos ensina a ter profundo desprezo ou vergonha dos nossos ancestrais, apagando todas as experiências culturais que acumulamos ao longo dos últimos 5 séculos de massacre físico e simbólico.
Via de regra meus alunos repetem o mantra sobre a brasilidade, dizendo que, no Brasil todos somos mestiços e iguais. Quando pergunto quantos textos de escritores indígenas leram na escola desde a infância, ficam com cara de paisagem. Quando trago textos de Ailton Krenak, Marcos Terena, Kaka Werá, primeiramente se mostram céticos e confusos, depois vão compreendendo aos poucos como foram lesados na sua compreensão parcial e racista de mundo.  Por vezes as aulas se transformam em banquetes de signos, principalmente quando somos colocados diante de fragmentos de Allan da Rosa, Ferréz, Paulo Lins, Priscila Preta, Sergio Vaz, Fábio Mandingo, Jenyffer Nascimento e outras e outros que agora brotam como pragas anticanônicas nas beiras da escola, erodindo aquelas montanhas de saber recomendadas por Antônio Candido. Ervas daninhas nos jardins, que criam novas paisagens na aridez da brancura textual e nos permitem outras inscrições de imaginários.



Não se trata, como querem alguns, de uma luta excludente do escrito contra as oralidades, mas de uma estratégia de usar todas as possiblidades expressivas que podemos lançar mão, para comunicar formas diversas de estar no mundo e se senti-lo tal como como ele se apresenta: difuso, múltiplo, complexo e de difícil apreensão na sua totalidade.
O ocidente cristebranco quis transformar o humanismo em um ideal exclusivo seu, até que o racismo, a intolerância e o lucro, quase o feriram de morte. O humanismo não morreu, mas foi jogado no lixo bem doente por eles nesse novo início de mais um século cristão. Por isso podemos agora resgatá-lo e inscrever nele todas as negações a que fomos submetidos, mas também podemos redimensioná-lo e torná-lo uma bandeira carcomida, puída e furada, mas efetivamente universal e potente.
É nisso que estamos trabalhando nas beiras das metrópoles dos países economicamente periféricos, nas bordas das nações com alto poder econômico e grande concentração de poder, prestígio e mando. Nas margens de cidades encasteladas do antigo terceiro mundo, no limiar do terceiro milênio. Tramamos revoltas cotidianas, mesmo sabendo de antemão das derrotas e mortes seletivas.
Augusto Cerqueira, não é um poeta qualquer, é um visionário com delay de dois séculos passados. Chegou atrasado nesse mundo. Por isso seus óculos podem ter sido tanto de Lampião, como de John Lennon. Ele não foi ao funeral, mas ficou com esse pertence. Foi um presente calculado, mas não previsível. Seu desejo de sacrifício, de morrer pelas artes e feitiçarias, seu romantismo é maravilindamente anacrônico.



O que mantem de sotaque não é estilo, é persistência, cajuína da infância baiana. Quando o vejo em cena, penso num lugar que me leva, com sua voz aguda e áspera, voz de cantador oitocentista, um Fabião das queimadas, um Lucas de Feira.  Mais um blasfemo negro-mestiço ameaçando invadir a cidade com sua viola, sua pistola e sua ira.
Uma virilidade quase juvenil, eu diria. Mas não é fanfarronice e nem mascara neném. Veja o. Acredita nas suas próprias palavras bastante, a ponto de poder se deixar passar por ridículo, bebum, maltrapilho, hippie, rastafari.  Antes já via e ouvia muitos falando bem e mal de seres como eles. São pessoas-meteoros, aparições, encantamentos. São fachos de luz, coriscos em noites muito densas. Não entendemos seus desígnios por exercícios de empatia, nem estudo ou pesquisa.  São mistérios da existência humana. São vidas condensadas num eterno vir-a-ser.
Agora com o lançamento deste livro, podemos reter dele uma fotografia limpa e organizada. Isso em contraste com sua figura humana aparentemente desleixada, apaixonantemente estranha e rústica, imprecisa e fugidia.


Os textos periféricos estão em busca do oceano e também de identidades. Uns são acrônimos de autoestima, outros são haikais de territórios, outros xerocopias de antologias consagradas, há ainda cotoveladas em pistas de corrida, bulas de existência. Mas há também bilros pacientemente enredados, versinhos acumulados entre guardanapos de boteco, papéis de pão e folhas soltas de cadernos escolares. Vez em quando, distraído do show, flagro delicadezas modestas que repousam sem luz ou brilho, hieróglifos feitos com batom, ou a lápis de sobrancelha.            
O mais provável é que daqui alguns milênios, os textos-cantigas-poemas de Augustus, sejam recitados anualmente por celibatários desnudos em festas de Legbás. Folguedos realizados anualmente em torno dos monumentos fálicos gigantescos, que um dia foram erguidos com grande pompa em “pedras pisadas” longe do cais, na quebrada. Quando após o transbordo das represas, saberemos enfim por fragmentos de textos psicografados, desses festivais secretos de gozo e vida, nas ruínas submersas, da lendária cidade de Piraporinha, que fica do outro lado do rio, no sentido oposto a Pompéia.



Salloma Salomão é músico e professor negro-periférico.    

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Escritor Oswaldo Faustino


O Jornalista,  ator  e escritor paulistano Oswaldo Faustino, participa de uma experiência  em comunicação afro-contemporânea.

JENYFFER NASCIMENTO E SUA TERRA FÉRTIL.



Uma das escritoras mais inquietas da nova geração de literatas negras no Brasil. Nem bem absorveu a visibilidade que seu primeiro livro alcançou, circulando por meios alternativos e já está formulando os próximos passos, cheia de perguntas e divagações filosóficas. Sua obra faz parte de um panorama de escrituras criativas cujo ponto de partida é cultura Hip Hop. Esse movimento sócio-cultural trouxe à reflexão em torno da identidade negra para outro patamar, onde a juventude a principal agente. A música rap abriu caminho para novas escritas, outros temas, denuncias de outras injustiças e comunicação de angustias outras. Sua poesia alquebrada e muitas vezes direta, denota o exercício constante de auto-construção e subjetividade radical. Mas, também cala fundo sobre as expectativas de afeto, cuidado e realização de seu eu poético e de outras mulheres jovens e sensivelmente conscientes de suas condições e lugar social. De outro lado também nos chama atenção para um forma totalmente inovadora de tratar criativamente o texto escrito, submetendo-o a conteúdos considerados menores, como dramas pessoais e acontecimentos cotidianos.
A vida das mulheres periféricas desde a infância até a vida adulta. As relações de amor, descobertas e conexões de toda ordem acompanham um ativismo atravessado por perguntas altamente complexas sobre a felicidade, consumo, maternidade e prazer.
Uma das editoras da Revista Feminista Periférica Fala Guerreira.    
POR SALLOMA SALOMÃO. ARUANDA MUNDI 2016

Ativismo cultural nas bordas da Piratininga ( Neri Silvestre) ABC

Entrevista Neri Silvestre – realizada no dia  29 de julho de 2016.

Como nasceu a ideia de organizar o Sarau?

Na realidade, eu a Gláucia, a Carla, a Maria, O Helinho, a Rita mais a galera que tá aí, a gente se inscreveu no edital do ponto de cultura em 2009 dentro do programa Cultura Viva. A gente foi contemplado, mas tinha uma dívida dentro da Associação de Moradores que precisava pagar impostos e, por morar num bairro (Jardim santo André) e as pessoas não entenderem que, pelo menos, elas precisavam declarar que são isentos, sem fins lucrativos, tal… não tinha como pagar, aí decidimos fazer um sarau, fazer uma noite da pizza com sarau. E aí foi muito loco, porque a gente fez e várias donas de casa, vários moradores do bairro começaram a declamar suas poesias, começaram a falar etc. Daí nasce em 2011 o Sarau na Quebrada e era nossa intenção fazer no bairro e a gente fez por muito tempo dentro da Associação de Moradores. E dentro disso, a gente foi construindo... e ao mesmo tempo era um espaço de resistência, um espaço que a gente melhorou, que a gente conseguiu mudar a estética, mudar a relação da comunidade, porém, os casamentos acabam, nada é pra sempre.

A gente acabou rompendo e continuou a fazer o Sarau na Quebrada pelos botecos, e  a Rita por ter os equipamentos, emprestava pra gente. E um dia a gente descobriu que tava tendo o edital do PROAC em São Paulo, porém esse edital não atendia as nossas necessidades, do sarau. Ele não poderia ser feito em bar, tinha que ser profissionais, era voltado pra editoras. E por uma limitação nossa, como a gente estava num movimento de pontos de cultura, e está ainda num movimento de Pontos de Cultura latino-americano e brasileiro, a gente armou com a  Secretaria de Cultura do Estado para que construísse uma política pública dentro da Secretaria de Cultura e dentro do PROAC. Aí em conjunto com a Secretaria do estado de Cultura, o movimento de saraus de São Paulo construiu um edital e esse edital possibilitou que outros saraus pudessem ter acesso a esse dinheiro e  à política pública construída a várias mãos. Aí a gente conseguiu com que, tivéssemos equipamentos e a gente começou a rodar nos bares da periferia. A  além da cachaça, dos bêbados, que  é onde a gente ficava e onde continua ficando do mesmo jeito. Nos lugares mais precários a gente levava os livros os equipamentos de vídeo e equipamentos de som transformando num pequeno centro cultural uma vez por mês. Mas isso foi mudando e começamos a pensar que a gente precisava ficar num lugar fixo. E agente vem tentando nos últimos três anos ficar num lugar fixo. Já estamos com seis anos. Mas sempre acontece alguma coisa, ou o bar quebra ou não é o mote do dono do bar. Ele fatura, mas não é o que ele quer, porque a gente não pede nada pro bar. Aliás a gente pouco pede pras pessoas, porque a gente não tem políticas públicas, mas a partir de coisas colaborativas a gente quer fazer o sarau porque a gente gosta. Mas, no entanto, fazer o sarau, pra gente foi a possibilidade de construir coisas juntos com outras pessoas e também ter nosso espaço de fruição espiritual, que é nossa possibilidade de tá colocando nosso sentimento pra fora através da poesia, da música e das falas políticas.

E também tinha a questão de construir o debate. Então o sarau trouxe, muitos temas como DSTs, terceirização e precarização do trabalho, o extermínio da população negra, preta e periférica, sobre a mulher, sobre o indígena, sobre a diversidade cultural do Brasil. A gente fez do nosso jeito aqui na nossa quebrada. A gente, na realidade, tem a ideia de criar um espaço democrático, onde se consiga aglutinar forçar e, pelo menos, sobreviver de cabeça erguida diante do sistema que é essa precariedade, a ausência de políticas públicas que atendam o que a gente quer. Não há um entendimento da sociedade como um todo, artística e não artística, que a cultura é importante dentro do processo civilizatório da gente. Nós temos consciência de classe, porém as pessoas não tem… eu acho também que é uma arrogância minha dizer que elas não tem… mas a gente vê que não consegue unir outras pessoas pra lutar por políticas democráticas que sejam públicas, que sejam construídas por várias mãos, pra que essas políticas, dentro do município atendam nossas necessidades e que não vão só atender as necessidades da gente, mas que vão ser ampliadas e vão atender outras pessoas. A gente não apresenta projeto cultural pra prefeitura, pra secretaria de Cultura, nem dentro do Estado, nem municipal porque a gente acha que política de balcão ainda é coisa da época dos coronéis: a gente conhece pessoas e acaba apresentando projetos individuais, isso é muito centralizado, (como se  diz?) é muito umbigal e não é nisso que a gente acredita. (risos) acho que misturei um monte de coisas, mas é assim, vai batendo na cabeça e pra seguir uma linha, é muito loco, porque aconteceram várias coisas. A gente chegou aqui um dia e começou a  fazer sentados no meio da rua, tinha seis ou sete pessoas, depois oito, depois quinze, depois vinte, fez com o pessoal do Projeto Crack Zero e foi muito loco… aí a gente foi fazendo com vários grupos.

A gente tem também a possibilidade de: os equipamentos que a gente conseguiu com o PROAC emprestar pra outros grupos, outros artistas, outros coletivos. A gente tem usado a política pública não só em nosso benefício… como é equipamento público, porque foi a partir de uma política pública… a gente tem feito parcerias com outros coletivos. Temos fortalecido, feito do in antropológico, num sarau que é o Sarau da Resistência que fica lá em Rio Grande da Serra, que pouca gente vai pra lá. A gente leva nossos equipamentos, opera lá os equipamentos, mas são eles que protagonizam, eles que fazem o sarau. É o Sarau da Resistência, numa Associação, num lugar inóspito no sentido de políticas públicas, se aqui é ruim, lá é menos política pública ainda. Lá é um diretoriazinha de cultura e não tem incentivo nenhum, eles não acham que o que a gente faz é importante e a gente trabalha com essa coisa simbólica. Não simbólico no diminutivo e nem folclórico, mas o simbólico no sentido de que o que a gente faz é parte da cultura brasileira, parte da necessidade humana de se expressar,  é transformar o que a gente sente em poesia.

Ele acontece regularmente?

Então, ele estava acontecendo uma vez por mês, uma vez a cada dois meses, porém, eles tem lá as dificuldades de organização e a gente também, porque há uma certa precariedade. Quando a gente tem grana fica legal, a gente põe gasolina coloca os equipamentos no carro e vai pra lá. É muito lindo! Tem momentos de encantamento maravilhosos, uma relação afetuosa com Rio Grande da Serra. Tudo que  a gente pode fazer a gente faz, porém é uma dificuldade lá deles de organização. A gente queria que eles avançassem mais isso, mas eles têm feito uma discussão com a sociedade local pra que as pessoas entendam que a cultura é importante dentro do processo humano nato e isso pra gente também é importante: uma construção de coisas por aquilo que nos une.

Neri pergunta: Você faz Federal? Respondo: Sim, Instituto Federal de São Paulo. Neri: Ah, eu quase fiz Gestão em Turismo lá e quando eu ia entrar, falei: Não, vou pra Gastronomia. (risos)

Por que a escolha desse local pro sarau?

É porque aqui tá o nosso povo, aqui é o meu bairro. A renda per capita é de 850,00. Há uma dificuldade, a gente vem de luta por moradia, luta pelo asfalto, luta pela água, pelo emprego. Aqui  a gente fala de assunto que tem a ver com a população local. Também to inserido dentro dessa população local, então me conto como agente do processo, mas também protagonizando, podendo ter a oportunidade de fruir espiritualmente, de colocar meu sentimento pra fora. Acho que a nossa relação é afetuosa com nosso bairro. A gente é internacionalista, porém a gente tá no bairro. As coisas tem que vir de baixo pra cima, é de baixo a cima que a gente vai transformar a cidade, o estado, o País. A gente acredita muito nisso. Então a gente tem feito essa discussão, e traz a  temática do sarau, que a gente fala que é cultural… e ele é de muita importância porque é cultural e a cultura tem uma importância gigantesca dentro do nosso processo de vida.

Eu costumo dizer que a gestão cultural tá dentro de casa. É dentro de casa que tá inserida há muito tempo a gestão cultural, nos arranjos familiares onde há mediação através da cultura: eu gosto de uma comida e não faço porque minha mãe não come determinado ingrediente, então faço a comida respeitando o espaço dela. Por ex: não faço peixe, porque ela não gosta de peixe por causa do cheiro, etc. Porém e a gente tem lá a mediação na hora de assistir um Datena, por ex., um programa na cultura, comer, varrer o quintal, qualquer ação no formato que a gente tem de casa, nossas brigas, nossos conflitos também são mediados pela cultura. Então eu digo: que a gestão cultural está dentro da casa da gente. A gente tem que entender isso e quando a  gente entender isso vai entender outros processos culturais que rodeiam a nossa vida. Então, o sarau, a base dele é isso e é nesse sentido que a gente tenta se conectar com os moradores do nosso bairro.

Quais a dificuldades enfrentadas para a organização do sarau?

Uma coisa é criar horizontalidades, criar possibilidades para que outras pessoas se empoderem, tomem conta, façam no nosso lugar, dominem esses espaços, que se multiplique a ideia, que as pessoas possam, de fato, contribuir pra construção de um lugar melhor, de um país melhor. Sabe, acho que são utopias assim, a gente cria utopias a partir do nosso coletivo, mas são utopias criadas de forma diária, direta, é esse o processo nosso dentro do sarau.

E físicas?

Quando a gente sai de um lugar... vai pro outro. Mas a gente ta emancipado em equipamentos, a gente é emancipado, domina,  porque acabou fazendo curso de gestão cultural, curso técnico de som,  a gente tem um carro velho que a gente vai e faz. Acho que a maior dificuldade é não ter a política pública que viabilize, por exemplo, a nossa produção escrita, as nossas poesias. A gente tá na luta de classe, a gente tem que ter a consciência de classe que: a burguesia vai ser sustentada de alguma forma. É por isso que as políticas de balcão são nocivas ao que  a gente faz, porque elas  não ampliam a possibilidade da gente, mas daqueles que sempre estiveram inseridos dentro do poder e com a relação mais íntima com o poder. Acho que a maior dificuldade é não ter uma política pública que possa concretizar os nossos livros, os nossos discos, nossos filmes, as nossas artes plásticas… esse mundo da arte, né. Porque você faz e quer mostrar pros outros. Você quer compartilhar com os outros aquilo que tem de melhor, de mais bonito, de mais encantador. Então  a gente tem essa dificuldade, não ter uma política pública que atenda a nossos anseios. Que seria uma luta não nossa, seria uma luta de todas as classes.


Como eu vejo a cultura como dimensão humana, parte do humano, acredito que as pessoas deveriam se engajar na luta: a classe média, os professores, os educadores, os artistas, todos deveriam se engajar na luta pra que houvesse políticas públicas robustas e que essas políticas fossem fortalecidas e construídas a partir das outras pessoas que nos rodeiam. Isso é uma sociedade, é uma democracia, e democracia se faz pelo pressuposto que as pessoas colaborem umas com as outras, porque a gente carrega as coisas de forma comum, bens comuns, como comunista, pessoa comum, acredito nisso. Não sei estou certo. Mas essa é minha linha de raciocínio.

Nossa dificuldade poderia ser amenizada ou construída com outras classes sociais, porque são elas que detêm o capital cultural e o capital econômico. Nós detemos algum capital cultural que aliás eles desconhecem, porém acham que a formação de público tem que ser deles pra nós. Eles desconhecem o nosso samba, desconhecem os nossos arranjos culturais, nosso samba de boteco, nossas conversas de padaria de manhã tomando café, desconhecem tudo. Na realidade eles querem formação de público pra eles, pra música erudita, teatro, pras artes. De um lado tem fomento pra eles fazerem isso. Do outro lado pra nós não tem nada, só tem “de receber”. O processo de colonizador deles: vem, tamu aqui ó, vocês vão aprender música erudita. É como fez Pedro Alvares Cabral, o pessoal do Colombo, Anhanguera, como fizeram outros colonizadores etc. Vêm pra explorar a nossa precariedade e nossa possibilidade de fruir espiritualmente.

E você frequenta outros projetos, outros saraus?

Eu não tenho feito mais tanto isso. Frequentava bastante o do Fórum, do Ademar. A gente tem o Cine Sapo que é uma espécie de sarau, é feito lá na favela do Sapo no Thelma, que é uma construção de muitos coletivos, gente de muito afeto, que a gente ama muito e que tem possibilitado o protagonismo de um lugar precário. São moradores locais que tem feito e desenvolvido ações culturais dentro dum lugar, onde se costuma ter aquela visão tosca ah, esse lugar não tem cultura! E pelo contrário, as pessoas vão e se divertem, se alegram. A gente consegue tirar cem, duzentas pessoas de frente a televisão. E o Faustão fica, pelo menos naquele momento,  sem aquele público e a gente consegue passar um domingo. Isso acontece a cada dois mês e é muito doido, você precisa conhecer.

E sobre o Ademar?

É um dos saraus que nos inspirou, porque a gente fazia de forma tímida e ali, uma poetisa da Zonal Sul do bairro Ademar em São Paulo, e ela dizia Neri olha, quando você fizer um sarau, escreve as suas poesias, escreve o que você quiser, fala o que você quiser, não liga, canta uma música, dança, faz qualquer coisa. Vai lá, faz, que é assim que a gente tem que fazer. A gente tá ligado que tá num bairro que é difícil mesmo. As pessoas não entendem que é difícil essa nossa relação com o bairro e que o bairro tem uma relação com a cidade. A gente é chamado aqui de cordão da miséria, porque o Jardim Santo André tem uma renda de 850 reais per capita, o Cata Preta tem mais 800 reais, o clube de Campo são 750, a represa 700 reais. Nossa mão de obra barata para toda cidade e o Bairro Jardim, no centro. São as lavadeiras, passadeiras, as babás, são as auxiliares de casa doméstica. Então a gente tem que de alguma forma dar visibilidade. E essa visibilidade, se diz no sentido de sair das páginas policiais e passar pras páginas da cultura dos jornais locais. A gente tem feito muito isso. Então ora sim, ora não, a gente tá lá com a nossa consciência, com o nosso falar sobre cultura. A gente tá disputando a cultura que já não é daquela forma ingênua. Não vamos lá falar eu tenho uma banda, eu sou o Neri. A intenção nossa é repartir, compartilhar, viver de utopias infinitas - que as pessoas precisam ter essas utopias - mas sabemos que as pessoas precisam também contribuir de alguma forma.

Você percebe a participação de pessoas ou coletivos de outras cidades aqui no sarau?

Ah sim!  Sempre tem gente diferente. Hoje tem a Márcia de Mauá, teve um Senhor do Jardim Santo André São Paulo, um pessoal de São Bernardo que está aqui, teve um pessoal do Ipiranga, o crack Zero, poetas da Zona Sul. Gente do Sarau de Mauá, teve gente de um monte de lugar. A gente não é fechado, o sarau é aberto e quer contribuir para a construção de uma possibilidade pra cultura. Falar da cultura é falar de processos horizontais, processos que não tem a ver com a personificação de alguma coisa que você faz, não personificamos nada aqui. Obviamente que  agente tá aí, mas a ideia de que viessem outras pessoas pra fazer junto com a gente ou por nós, sabe, eu to com quase cinquenta anos.. essa é uma luta nossa.

O que eu percebi, frequentando os saraus, eu vejo a circulação de pessoas comuns, o que você acha disso?

Obviamente tem aquela coisa de afins, né. A pessoas são afins. É aquilo que nos une, essa coisa da gente poder também intercambiar. Por que o nosso sarau é diferente do Sambado, do Fórum, a gente tem uma outra característica, a gente é mais bicho grilo, mais malucão no que faz, não tem muito uma certa ordem. Os do Fórum é os meninos  Mcs do Rap, o Sambado já é aquele a mistura de cultura popular e mais as poetisas e tal. Então a  gente tem uma mistura de feministas, de punks que colam, tem um intercambio e aí eles podem provar de outros formatos, de outros modelos, de juntar pessoas para celebrar a vida.

Você sabe de algum caso que, a partir do sarau, alguém tenha sentido-se motivada a montar outros projetos?

Não sei, eu tava querendo te dizer o seguinte: a nossa ideia é o que a gente chama de … foi o que o Gilberto Gil chamou de do-in antropológico. A ideia do Gil quando ele criou a Cultura viva e os pontos de cultura era valorizar aquelas atividades culturais do Brasil que já existiam, que ele reconheceu como pontos vitais da cultura e eles precisavam ser massageados para que pudessem expandir, para que eles pudessem virar o ponto de apoio dentro da comunidade onde estavam encetados, inseridos. E a gente tem essa ideia também. A gente foi valorizado e a gente quer valorizar outros grupos pra que eles possam valorizar outros grupos e ampliar aquilo que a gente chama de potência. A gente vê nas pessoas a possibilidade. Vê nas pessoas um mundo novo possível. A partir da construção do outro e da felicidade do outro, construir a nossa felicidade e nossa possibilidade de vida, dentro dessa coisa que a gente chama de mundo, dessa epopeia humana. E dentro disso a gente quer construir com coisas comuns para que outras pessoas sejam mais felizes. Não sei se a gente consegue, mas essa é nossa esperança: valorizar outros para que os outros possam valorizar a gente. O que o outro faz é importante e o outro tem que achar a mesma coisa.

Você frequenta outros projetos culturais?

Sim, eu sou uma pessoa da discussão da cultura.
Você estava falando do Rogério, o que você faz com ele?
O Rogério da Afro-escola é um projeto muito legal que tem.
Você tem alguma participação nesse projeto?
Não. O que  a gente tem feito é uma discussão, é uma conversa, um momento de fruição nossa também lá. Então a gente vai e ele pra fazer um projeto em parceria, ele tem feito coisas de forma coletiva.
Então tenho frequentado lá, mas tenho também feito a discussão sobre a lei Rouanet em São Paulo, tenho discutido a questão das políticas culturais dentro do PSOL, fora do PSOL. Não sou do PSOL, mas acho importante nesse momento de eleição a gente tá construindo o debate sobre políticas culturais e principalmente nós que viemos da periferia e que a intuição não valia nada e que hoje ela tem um certo valor e que a nossa capacidade de pensar a cultura já não é mais aquela coisa simplória como te falei. Então agente tem feito  inúmeras discussões e pra gente falta espaço pra fazer a discussão. Mas a gente vai cavando oportunidades, construindo. Nós fizemos aqueles diálogos no SESC, foi um negócio muito interessante porque é um espaço pra levar agentes da cultura e acabamos levando pessoas da cultura: pessoas do futebol de várzea, das escolas de samba, grupo de teatro da periferia, levamos mestres Griôs, teatro infantil, juvenil. A gente tem feito outras discussões.

Os diálogos no SESC era um projeto seu?

Curadoria minha e da Adriana Leandro e mediação nossa também. A gente teve a felicidade, o SESC abriu as portas pra gente pra fazer a discussão. A princípio eu tinha ficado arredio nessa questão de ser curadoria, porque eu acho que curadoria tem a ver com essa coisa elitista da arte como processo de deslumbre individual, de umbigo. Mas me convenceram do contrário: que eu poderia falar de uma outra maneira sobre curadoria e sobre mediação. Sei lá, acho que to pirando nesse negócio. A gente tem que construir um modelo de cultura politica que possa elevar o nosso processo civilizatório. A gente anda muito, com muita dificuldade, muita disputa e não sou de muita disputa. Não to aqui pra disputar nada com ninguém e sim compartilhar as coisas com as pessoas.

Sua construção no pensar cultura, fazer cultura, como você pensa isso pra região do ABC?
Bom, eu acredito na gestão cultural. Eu acredito na cultura como dimensão humana. Então a partir da gestão cultural e da dimensão humana da cultura eu acredito que a política cultural tem que atingir as pessoas, não mais atingir só os artistas.

O Brasil quando promulgou a Constituição de 88 colocou lá que a cultura é um direito. O ministério da Cultura reconhece a cultura como direito e fala das três dimensões que eu também acho legal:  a dimensão cidadã, a dimensão simbólica e a econômica. Então todos nós, qualquer coisa nossa, tudo que a gente faz é  pela cultura e para a cultura. Isso veio lá dos neandertais, até agora, sendo mudado, construído e evoluído diante de ações, a partir da cultura. Uma ferramenta, a comida, o jeito de falar, o jeito de se reunir, os modos de morar, tudo isso é cultural. Então a gente crê que falta ao Estado, e eu coloquei o Estado, porque é o Estado que vai disponibilizar recursos e políticas que façam com que a população além de se emancipar, reconheça no outro a possibilidade de vivência de forma igual. Não menos igual ou mais igual, mas igual. Eu acho que a cultura tem esse papel: a emancipação do homem e trazer a igualdade e, a partir disso, os processos de paz. A partir dos nós da cultura poder conviver com a diversidade, conviver com o outro, conviver com a natureza, respeitar o meio ambiente, entender que as pessoas fazem cultura, mesmo a partir de qualquer precariedade: sem saneamento básico, etc. Mas todo mundo precisa fazer cultura, fazer arte, porque é … o nosso sentimento e a gente quer botar nosso sentimento pra fora: a gente quer namorar, quer jogar futebol, quer ir pra igreja, quer ir  pro batuque, a gente quer fazer outras coisas.


Eu acho que pensar em cultura no ABC é pensar o povo do ABC. Pensar que o  ABC é parte da Grande São Paulo e é uma lindeza, uma riqueza, e tem uma diversidade cultural gigantesca. Além das artes, a gente tem outros processos. A gente tem o terreiro Tambor de Mina, que é uma vertente do candomblé lá em Diadema, o samba de terreiro, o Sapopemba(mestre da cultura), as crianças do ABC, minha mãe que tá com 89 anos, sua família, sei lá, a gente tem um monte de gente. A gente passou muito tempo acreditando nessa coisa que cultura quem faz é só artista, e não é. A população em geral tá fazendo cultura a todo tempo, o tempo inteiro. Porque faz parte do nosso processo humano. Penso que o Abc é uma coisa doida. Nossa, to separando o ABC … é o Brasil... o Brasil é essa dimensão gigantesca, é uma cultura maravilhosa. Se for pensar no Brasil fico empolgado, eu vi Coco, ciranda, gente me tratando com muito carinho, vi Griôs, os mais velhos tendo uma responsabilidade, vi crianças batucando, cantando, dançando. Tem do bom e do ruim. A grande parte da população brasileira faz cultura do bem, claro que do jeito dela, com a instrução que ela tem. Como a tem uma diferença muito grande educacional, há uma dificuldade da gente fazer de um jeito ou de outro. Mas acho que o ABC a o  Brasil, é uma possibilidade gigantesca, é um mundo novo. O Brasil, se for por essas relações, a gente vai embora.



Entrevista realizada por  Jô Barranova  Curso de  Licenciatura em Geografia do IFSP.

Neri Silvestre. É dono de um coração imenso e imerso nesse brasil de meu deus. Mas as vezes parece prolixo e difuso, sendo um poeta. Seu texto, no entanto, traz uma percepção bem aprumada sobre o papel da cultura e das artes no processo de emancipação social e política. Não é ingênuo, mas sua experiencia concreta num projeto feito em uma favela do ABC, mostrou o quanto de autonomia se pode obter construindo ações pequenas e obtendo parcerias no próprio bairro é muito mais importante, que elaborar sofisticas planos de captação de recurso. Sua fé numa reversão da tendência de consumismo e desumanização, o empurrou para contatos na América Latina e fortalecimento dos laços no seu território. Esteve profundamente ligado aos processos de formação dos pontos de cultura e agora , tal como nós, se pergunta sobre as alternativas que podemos construir diante de uma situação de total desmonte das poucas políticas culturais que existem no País.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Reza de Mãe. Livro de Allan da Rosa

COSTAS LANHADAS (Revides e Segredos antes do 13 de Maio)
Por Allan da Rosa (Santos)



O interior paulista era um paiol de pólvora nos anos antes do 13 de maio. O medo saía no mijo dos barões, donos de vastos alqueires, e dos advogados encastelados nos escritórios de luxo, mas também aterrorizava os sapatudos que tinham uma merreca de três ou quatro escravizados pras negociatas miúdas cotidianas, porçãozinha de três ou quatro mandados mal nascidos chupados na jugular, gente, carne com sonho e memória e raiva. Meras peças para alguns, a negrada sentiu a hora do arranque, da retomada de si, sem dó. Décadas antes do 13 de maio que cuspiu uma liberdade requenguela, cagona e manca, vogou um tornado em SP, uma tormenta de legítima defesa e de vingança nem sempre comida fria, que fazia fornalhas das hortas e espetava zagaias em quem tava acostumado a levantar o chicote, a pena ou a xicrinha de porcelana. Eram só um pedaço do mapa de sangue pisado e de dignidade remendada, as campanhas abolicionistas e as rinhas de tribunal onde reinava o amado e odiado Luiz Gama, proibido de entrar em muitas cidades e com a morte comprada uma penca de vezes mas que permanecia pilar na missão. As disputas em colunas de jornais liberais, monarquistas ou republicanos, os processos nos fóruns da hipocrisia que referendava com seu amém o direito à propriedade vampira... isso tudo era só um bocado da guerra que apavorou os abonados de São Paulo pelas estradas de vacaria, pelos chafarizes da capital e principalmente pelos campos de plantio, de tronco e de revide negro. A paúra arrepiava duques do café, azedava o jantar, trincava os lustres e ilustres. Milhares de pretos já tinham devolvido com fogo um pouco da fuleiragem, já tinham debandado pra outras paisagens paulistas com ou sem os tais papéis que lhes garantiam ser gente, gente encurvada por uma liberdade ganha ou comprada - e dessas tais cartas de alforria, que podiam valer só depois de muitas primaveras ou apenas na cidade onde foi carimbada, sempre havia o risco da má-fé que engrupia o dinheiro juntado gota a gota. Carta nula. Nossos avós seguiam varando rumo com os pés sempre descalços, mas agora levando nos ombros os sapatos que só gente livre podia ter, já que o pé não aceitava mais correias e apertos depois de uma vida pisando a sola direto no chão. Nos ranchos de meio de caminho, nas hortas novas, nas curvetas e nos becos urbanos onde se vendiam doces, se barbeava ou se carregava baldes e bacanas marcando o ritmo no lombo, rodavam as histórias dos acertos de contas com os fazendeiros. Histórias sem dó. Era nesse clima que, numa tarde em Capivari ou em Campinas, dois homens subidos de Santos já marcados com a queima na pele alertando sua rebeldia, depois da carga levantada desde a manhã, sentaram na sombra de uma mangueira. Mal a bunda assentou, súbita paranoia apontou o dedo lá da janela do casarão e o senhor gritou a acusação de levante. A madame que desfilava nos seus vestidos de cambraia e casimira, com suas jóias cintilantes veio até à janela ver a penitência nas costas dos seus escravos, a paga da insolência de tramar a morte de seus amos e a queima da fazenda. Negar não adiantou. Logo eles que ainda não tinham aceitado participar do que se armava pra dali uma semana com a malta de todas as fazendas vizinhas. Tomado de ira, o sinhôzinho veio empunhando o chicote. Mandou amarrar um, mas começou por sovar quem estava ainda sentado num tamborete. E descendo as chibatadas despejava uma ladainha sobre a ingratidão e o peso de administrar o mundo. Mas a cada lambada desferida nas costas do negro mais velho, ele ouvia um canto sussurrado em vez de gritos de dor. E despejava o rabo de tatu com mais força, xingando, tremendo, mas a lábia do mais velho continuava soltando um chiado ameno e ritmado. Ninguém diz se era curvado ou não que o angola recebia o arreio, mas a cada levada nas costas ele murmurava e se ouvia um grito, agudo, que vinha de dentro do casarão... Depois das tantas trinta vergastadas que o barão achou já ser lição, justiça pra ensinar sua propriedade a não desejar morte nem derrocada de quem lhe salvou de ser órfão, de ser mais um morrido de fome ou um demônio sem rumo; depois que acabaram as lanhadas que o barão, empapado de suor, derrubou na espinha do seu escravo, ele respirou, esfriou e viu que as costas do negro que cantava sussurrado estavam intactas, o pano arregaçado da camisa de napão não tinha um pingo de sangue. Por tanta raiva, o barão se preparou pra açoitar mais uma vez, com toda a força e medo que tinha e não tinha, mas atinou prum berro que vinha distante. Correu pra dentro da casa grande e ali ouviu uma longa agonia de último respiro. Viu, debaixo do vestido intacto de cambraia e casimira branca que desabotoava trêmulo, as costas lanhadas e arregaçadas da senhora dona que tombou gemendo no chão empoçado de vermelho.



COSTAS LANHADAS (Revides e Segredos antes do 13 de Maio) de Allan da Rosa
Por Salloma Salomão Jovino da Silva*
Tem algum lugar que o homem feito Allan da Rosa se demorou mais quando menino, entre a escola e o campinho, entre a casa e rua, entre a aprendizagem da vida e os textos escolares.  Não fosse isso não poderia arrastar tanta coisa miúda para lapidar e colocar nesses estandartes de veludo que ele, tropegamente, exibe na avenida de quando em quando. 



Não fosse o fio da navalha da vida, para quem aprende a viver em zona fronteiriça de não ser, não poderia assumir tantos compromissos em cantos extremos da cidade. Nem escapar as formas várias de autoanulação, jogando cartas com poemas de amores corpóreos e viris, em campos tão marcados por antagonismo mortais e redutores realismos.
Não fosse isso não poderíamos imaginar dele nenhum corpo de moleque pretuíndio bem nutrido de mandioca e banha de porco, atravessando a zona sul da cidade murada. Molek de borda e beira chacoalhando as madeixas pretas entre “brancos já pretos de tão pobres” e outras matizes marrons descaídas na pobreza lava. Driblar tudo e ainda trazer abraços pra nós das suas pontes digitais e imaginárias, feixes de ultravermelho no México, nos EUA e Mundo afora, com chinelo de dedo do Jardim Americanópolis. Polis americanas em favelas paulistanas, guias.

           Com Renato Gama, Adriana Moreira, Mariana Per e Melvin Santhana.

Ele ouvido de gravador K7 com fita que nunca acaba. Não é transcrição pura e simples, talvez sejam vidas passadas a limpo pelo lado avesso, sem auto-piedade, nem indicador de jurisprudente.  Fraseador reflexivo, devorador de negritudes gráficas e sonoras. Agora se sabe um observatório ativo de ambigüidades. Eu vou com ele até onde posso, quando canso, saio da roda. Já sou vovô.
O meu preferido nessa leva atual é: COSTAS LANHADAS (Revides e Segredos antes do 13 de Maio). Poderia estar numa lista de textos neo-abolicionistas pela temática. Mas insurge contra a linha narrativa fixada na benevolência senhorial. Também não embarca na idéia da incapacidade de revide, talvez seja porque tem em mente a tal luta de classes, mas não leva consigo o cânone da expectativa da intelectualidade branca  aplicada  a realidade escravagista brasileira e a sua inevitável frustração e conclusão simplista, mas duradoura.  Aquela que nos crucifica ainda hoje por algo que eles mesmos chamaram de “ausência de ímpeto revolucionário nas lutas negras no Brasil”.


Com Mariana per
Tema dolorido e muito mal trabalhado na vasta literatura ficcional e histórica brasileira até hoje. Esse da escravidão nas grandes fazendas e um tantinho agora costurado do seu reverso, as lutas constantes, renhidas e difusas pela liberdade. Texto curto que nos leva a pensar na introdução de Flavio Gomes em História de Quilombolas, só que com ritmo de curta metragem.  


Com Michel Yakini

O desfecho da narrativa é surpreendente, não porque nos dá um gostinho leve de vingança, mas por introduzir um tema difícil demais para  ser tratado na nossa visão desencantada e materialista de  história.  Allan não se contenta em conhecer e usar forma invertida as ferramentas da História Escolar e acadêmica. Constantemente ele nos brinda com pequenas histórias negras daquilo que não foi, mas poderia ter sido. Então, ficcionar as já quase gastas filipetas e álbuns da escravidão negra e do racismo antinegro, é trazer para o centro da cena, subjetividades e utopias negras quase vencidas.  Mas nem por isso, desimportantes.

Salloma Salomão Jovino da Silva é músico, estudioso de culturas negras e professor universitário. Doutor em História pela PUC- SP e pesquisador associado ao ICS-UL,  Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisbo