SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Bio-caminho

salloma Salomão Jovino da Silva, "Salloma Salomão é um dos vencedores do CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA RUTH DE SOUZA, em São Paulo, 2004. por dez anos foi Professor da FSA-SP, Produtor Cultural, Músico, Dramaturgo, Ator e Historiador. Pesquisador financiado pela Capes e CNPQ, investigador vistante do Instituto de Ciências Socais da Universidade de Lisboa. Orientações Dra Maria Odila Leite da Silva, Dr José Machado Pais e Dra Antonieta Antonacci. Lançou trabalhos artísticos e de pesquisa sobre musicalidades e teatralidades negras na diáspora. Segue curioso pelo Brasil e mundo afora atrás do rastros da diáspora negra. #CORRENTE- LIBERTADORA: O QUILOMBO DA MEMÓRIA-VÍDEO- 1990- ADVP-FANTASMA. #AFRORIGEM-CD- 1995- CD-ARUANDA MUNDI. #OS SONS QUE VEM DAS RUAS- 1997- SELO NEGRO. #O DIA DAS TRIBOS-CD-1998-ARUANDA MUNDI. #UM MUNDO PRETO PAULISTANO- TCC-HISTÓRIA-PUC-SP 1997- ARUANDA MUNDI. #A POLIFONIA DO PROTESTO NEGRO- 2000-DISSERTAÇÃO DE MESTRADO- PUC-SP. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- CD - 2002 -ARUANDA MUNDI #AS MARIMBAS DE DEBRET- ICS-PT- 2003. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- TESE DE DOUTORADO- 2005- PUC-SP. #FACES DA TARDE DE UM MESMO SENTIMENTO- CD- 2008- ARUANDA SALLOMA 30 ANOS DE MUSICALIDADE E NEGRITUDE- DVD-2010- ARUANDA MUNDI. Elenco de Gota D'Água Preta 2019, Criador de Agosto na cidade murada.

domingo, 31 de maio de 2020

Poética diária de Valmir Silva





Valmir da Silva Batista nasceu no Município de Itapevi, de onde migrou para São Paulo, cidade em que mora atualmente. Aposentado, é escritor e poeta, e tem sua obra reconhecida no circuito sarauzeiro, sendo este espaço o principal agente veiculador dos escritos que produz.


O EU ALÉM DE MIM III
Todo santo dia me sinto Macabéa,
Nem sempre santa, nem sempre eu mesma,
Mas potencialmente Macabéa,
Aquela que reforma ortográfica nenhuma
Ousou tirar o acento oficialmente,
Não o do descanso que me cansa,

Mas o do tormento que apetece.
Gosto de ser datilógrafa, penso em casamento,
Amo escrever cartas na minha Olivetti,
Lenta como uma pequena lagarta,
Uma reles tartaruga é o que sou
E há dentro de mim mesma a fuga.
A lesma Macabéa está a sós na fila do pão,

Tão esquisita a alma e obsceno seu nome.
Pensa em veneno de repente,
Sonha com viaduto nos dias de folga,
Mas mais estranho é quem me diz
E nunca sentiu o peso da timidez,
O olhar oblíquo, a boca seca sem ter onde,
O sexo aguado dentro da anágua, ou o último

Grito da moda sem Paris, sem gritar.
Não mais que um poema ambulante então,
Com uma rosa enorme no cabelo,
A Béa na maca que a cidade atropelou
E ficou o corpo lá, sem os sapatos, o eu.
Macabéa agora só quer ser estrela,

Não necessariamente brilhar, me basta ser,
Me atropela pra você, amor...
VALMIR DA SILVA BATISTA



DEPRESSÃO
Noites apinhadas de sóis incendiavam bancos 24 horas
Feito manhãs consteladas num céu azul pela metade
Tornavam irrelevante a questão do tempo na cidade
Que outonava para ela em pleno mês de setembro
Chovia a demasia, choviam seus olhos de ver coisas
E assim se fez uma temporada de férias sem um pingo de sossego

Lhe desempregando até da dolorosa miséria sem domingo
Ou procurando emprego, sem rumo, em outra história
Qual solitária que corroía de nervoso o cerne do intestino
Mas tanto fazia fossem vermes em seu amargurado coração
Era, no entanto, um vão no interior da matéria partindo
Que limitava as reações do corpo e cingia de suavidade a expressão
Nesse instante, delineava a ola sozinha em seu pequeno Saara
Sequer haviam mais espelhos d'água naqueles olhos arrancados da face

Que multiplicassem os braços de sua pálida coreografia
Havia espaço e nada mais, além de hiatos em que ia
Faltavam andorinhas no verão, gente que gostasse de ler, de ir além
Alguém que a esperançasse com minúcias de repente
E sacaneasse a poesia com formas simples de boteco
Mas que fosse de papel passado no eterno de uma folha de caderno
VALMIR DA SILVA BATISTA


AOS NEGROS E AOS NEGROS QUE ADMIRO
A voz arrancada da alma na melodia de Luiz,
Pela consciência dos dias extra-calendário

E para que não se calem os negros...
O feriado sem um pingo de sossego
Na melancolia jazzística de Billie Holiday,

Ao entoar seu lamento de preto...
Do machado bem afiado de Assis
A Bob Marley fazendo sua própria ley,

O Samba do Crioulo Doido me toca...
Penso em Arthur Bispo do Rosário,
Catando lixo para transformar em arte,
E então um negro à parte num manicômio
Se torna conceito nos grandes museus...
A musa da vez é a negritude, o preto é humano,
O preto super americano, o preto do ano,
O preto ao piano no cair da tarde e ao cair...
O negro andando sozinho na rua,
O negro sobre o andaime insalubre,
Na lida por melhores dias, o pião, o neguinho...
Os Mais e Melhores Blues, de Spike Lee,
O melhor de Carolina Maria de Jesus,
Uma Jesus mulher, negra e que ousou poesia,
Por isso deixo aqui minha reverência,

E à elegância de Thierry Henry, à de Paulinho...
Teço menção honrosa a Jair Guilherme,
Filho de epiderme negra com o tempo barroco,
E para quem a arte é uma forma de oração...
Quero citar ainda, como a melhor
De todos os tempos, a tenista Serena Williams,
Ou a personalista Serena Jameka Williams,
A estranha no ninho que calou a boca do ninho,
Porque o mundo é de todo mundo.
VALMIR DA SILVA BATISTA


DEMASIADO HUMANO
venderam cada qual
seu automóvel de luxo,

quando descobriram
que alguns ônibus biarticulados
possuíam assentos
um de frente para o outro,
naquela São Paulo do século XXI,

feita belle époque de repente.
eles que jamais tinham
se visto em outros tempos,
agora passavam a se olhar de frente
e a se interessar por arte,
a partir do que roubavam escondidos
de si mesmos todas as manhãs.

a cada livro de poesia entre mãos nervosas,
havia a urgência do faz de conta,
além das peculiaridades
que iam se revelando,
sem que eles autorizassem.
pelas frestas dos corpos, era possível notar
o desespero de suas almas,
no instante em que o primeiro descia
para cumprir sua jornada
( "o último que ficar se joga da janela",

pensavam, de forma dramática ),
já mal podendo esperar por aquela
uma hora diária outra vez,
com seu quase oi nas pontas das línguas
e a esperança de um dia dizê-lo,
chegando à conclusão
de que era tão simples gritar ao mundo
sobre a nova lei gravidade.
e assim, sonhavam
com a primeira palavra proferida,
a qual certamente viria
entre atropelos monossilábicos,

que soariam como doce melodia
( ambos, aliás, gostavam de Mozart,
mas isto ainda era segredo ).
enquanto dona coragem não vinha,

sanfonas com rodas tocavam em frente
e embalavam, sem voz,
a lindeza daquele pré-amor...
VALMIR DA SILVA BATISTA

VERSÍCULOS
num dia como outro qualquer
quando o ganha pão de um ventríloquo

não significar para o universo
apenas o capricho de um louco
ou quando um simples versículo
segundo todo mundo do mundo
transformar em poesia o livro sagrado
consagrando enfim a partícula
ou o nosso universo particular
subentende-se o umbigo, o cu
e a cutícula, deixar de ser popstar

em nome do senso do ridículo
e ao residir numa edícula
sem se importar com a textura
nem com outro aspecto têxtil da pele
apelar somente à ternura
é preciso não ler no fascículo
sobre que a vida não é mesmo fácil
mas que o coração é um cubículo
de grandiosidade fascinante
há que enxergar sem binóculo
a película delgada da alma
para ver na ave a avícola, no vinho a vinícola
no gado o homem e neste a natureza
mas não vale na vida a certeza
como não basta ser só vivente
é preciso tirar os óculos da mente
e o alto grau de humildade
que deixa a pessoa arrogante
VALMIR DA SILVA BATISTA

Ele busca cumprir um rito. Publicar diariamente uma poesia que e nos envia pelo menseger. Já houve vezes que quebrou e enviou duas. Seus temas vem da rede social ou da experiência cotidiana. Carrega consigo uma drama cujas farpas deixa cair dos dedos doloridos de vez em quando. Amores, desamores  platônico ou não, imaginários. Um tipo de delicadeza em muito similar a aquelas que percebemos no diário íntimo de Lima Barreto.   Fiel ao sarau da Cooperifa, não ambiciona uma publicação me disse. Eu finjo que acredito frente a sua enorme timidez. Acanhamento que ganha aura mística quando performa as terças a noite no bar do Zé Batidão no coração da Chácara Santana.  


quinta-feira, 28 de maio de 2020

Eu não consigo respirar. Luis Gustavo Reis

Luis Gustavo Reis é professor e editor de livros didáticos.

“EU NÃO CONSIGO RESPIRAR”, GEORGE FLOYD
Em meados do século XIX, dois franceses, os irmãos Edouard e Jules Verreaux, viajaram à África do Sul em busca de uma coleção de animais exóticos que seriam exibidos na Europa. Nesse período, a fotografia ainda não havia sido inventada, e a única maneira de resolver a curiosidade dos europeus era, além da pintura, a taxidermia (técnica de empalhar animais mortos). Outra opção era levar os animais vivos aos zoológicos.
Os irmãos voltaram para França e organizaram uma exposição. No museu, os visitantes observavam elefantes, rinocerontes, macacos e girafas. Na exposição, porém, não poderia faltar um negro. Foi o que fizeram: Edouard e Jules aplicaram a taxidermia ao cadáver de um homem negro e o expuseram, de pé, numa movimentada rua de Paris; tinha um escudo numa das mãos e uma lança na outra.
O museu dos irmãos Verreaux faliu anos depois, mas eles venderam a coleção, incluindo o africano, para um zoológico de Barcelona. Em 1916, Frances Darder, antigo diretor do zoológico, abriu seu próprio museu em Banyoles, na Espanha.


Em 1991, Alphonse Arcelin, médico haitiano, visitou o Museu Darder. O homem negro reconheceu o homem negro. Pela primeira vez, aquele morto mereceu empatia. Revoltado, Arcelin botou a boca no mundo - era véspera de abertura dos Jogos Olímpicos de Barcelona. Conclamou os países africanos a boicotarem o evento. O próprio Comitê Olímpico interveio para que o cadáver fosse retirado do museu.
Terminadas as Olimpíadas, a população de Banyoles voltou ao tema. Muitos insistiam que a cidade não deveria abrir mão de uma tradicional peça de seu patrimônio cultural.
Alphonse Arcelin mobilizou governos de países africanos, a Organização para a Unidade Africana e até a ONU. Vendo-se em apuros, o governo espanhol decidiu devolver o morto à sua terra de origem. O negro foi descatalogado como peça de museu e, enfim, reconhecido em sua condição humana. Mereceu enterro digno em Botswana.
Da Argentina ao Canadá, parcelas significativas da população acreditam que racismo é vitimismo. Tratam a questão como se ela não existisse; negligenciam, tal qual o homem negro inerte na vitrine, empalhado em sua própria miséria.
Prezado George Floyd, em Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro, Caracas, Bogotá, Manágua, Cidade da Guatemala, Minnesota, Atlanta, Maryland, Ottawa, Toronto....milhares de negros também não conseguem respirar, estão sufocados pelo racismo taxidermizado das Américas.

domingo, 24 de maio de 2020

Horizontes negros e teatralidades

https://www.cenaaberta.com.br/2020/01/09/o-horizonte-negro-do-teatro/
Entrevista concedida a Kil Abreu em dezembro de 2019. Publicada no site acima.


1. A atriz e dramaturga mineira Grace Passô afirma que em reuniões ligadas à militância negra parece ficar mais evidente para ela o porquê de fazer teatro. É como se ninguém ali estivesse procurando assuntos de modo aleatório. Ou seja, para os negros "o assunto já está dado". Para você se dá da mesma forma? Se sim, quais são as urgências? O que seria preciso, hoje, elaborar no palco? Qual deveriam ser os horizontes do teatro sob o ponto de vista de umx artista negrx?
 Não estou comentando propriamente a questão que ela coloca porque o recorte que você me dá não me parece suficiente. Mas o que eu posso dizer é que as pautas do ativismo negro são muito importantes para fazer com que este país, este Estado-Nação chamado Brasil, alcance alguma modernidade. Ou seja, algum respeito à individualidade, respeito à diferença e garantia de igualdade de condições para a inserção social. Entretanto, tendo a crer que os artistas negros podem ter projetos, pautas e temáticas que extrapolem ou mesmo tenham divergências em relação ao ativismo antirracista, dado o caráter político institucional deste. Digamos que o ativismo negro em certa medida é uma caixa de ressonância da luta negra cotidiana por direitos e cidadania, mas relativamente consignado por uma visão política herdada da Internacional, ou das formas de luta política partidária de dimensão mundial, como se pretenderam as Internacionais Socialistas. Logo, essa institucionalização também cria barreiras, sistemas de controle e expurgos que para a arte talvez não sejam tão bons. Resumindo e indo direto ao ponto: parece salutar que artistas negros, indivíduos, núcleos, grupos, possam ter a liberdade de construir pautas, temas, conteúdos, formas que uma hora acatem e, outra hora, extrapolem as demandas do movimento negro.
                  Com relação às urgências e aos horizontes de elaboração de um teatro negro, me parece ser importante que nesse momento esse teatro seja capaz de rever as formas de exclusão e de exclusividade da criação artística brasileira e mundial. Ou seja, do ponto de vista político, é importante que um teatro negro investigue a construção da discursividade e da produção exclusiva dos brancos e da estética da branquitude. Neste momento político, para levar a tensão a um nível razoável de convivência desigual e de racismo antinegro, é importante que as artes negras dialoguem diretamente, sem mediadores, com os artistas brancos da cena e da cena branca hegemônica. Em suma, um processo de desconstrução de uma certa hegemonia cultural. Mas para o futuro talvez seja imprescindível que os artistas negros possam por um momento esquecer que o são, que eles possam ir além dessa condição, dessa posição geográfica, dessa posição cultural de confinamento. Para que se insiram, digamos assim, em um universo mais livre, em que eles não precisem se lembrar o tempo todo de sua condição social singular e que possam se inscrever em um outro departamento de ludicidade e de criatividade.

2.  Nas últimas temporadas em São Paulo há uma preocupação de parte da dramaturgia moderna brasileira. Ao mesmo tempo, em espetáculos como "Navalha na carne negra", "Gota D'água [Preta]" não se quis reescrever os textos e sim colocá-los em nova perspectiva através das encenações. Para você o que dizem estas intervenções? O que se alcança quando se ocupa estes emblemas da cena desta forma?
                  Há uma certa coincidência na escolha desses dois montadores pretos - Jé Oliveira e José Fernando. E essa coincidência pode ter a ver com uma certa sensibilidade e uma certa qualidade de ambos os artistas negros, de entender esse momento que estamos vivendo. Ou dito de outra forma: é importante investigar uma certa narrativa evolucionista do teatro brasileiro, que se plasmou nos anos 80. Uma narrativa de nacionalização da cultura, já trabalhada por Renato Ortiz, pautada por uma mundialização da cultura ocidental, que está em marcha desde o começo da expansão europeia. O teatro, tal qual o conhecemos – e eu já disse isso em outras ocasiões - é uma invenção europeia da Renascença, mas que foi levemente alterado no final do século XIX e início do XX, para abarcar inclusive narrativas europeias singulares, de escritores judeus, de escritores comunistas, de artistas que questionavam a própria modernidade europeia. No Brasil, podemos dizer que o processo de nacionalização do teatro, tal como os manuais de história do teatro brasileiro ensinam, teria começado nos anos 30. Então, é importante também para os montadores, para os artistas negros, saber qual seria ou quais seriam os lugares dos códigos, dos valores, dos corpos, das vozes e dos imaginários negros nessas formas teatrais brasileiras ditas modernas. Mesmo quando os negros não estão lá (como conteúdo e como forma na produção desses dramaturgos homens e brancos do sudeste), ou ainda quando eles estão como estereótipos (e é necessário revolver essa camada de poeira que é o estereótipo, pois o estereótipo é a superfície), é preciso encontrar na base da elaboração o que efetivamente nos pertence. Nessa produção de Plínio Marcos e nessa produção de Paulo Pontes, o que nos pertence? Os artistas brancos com alguma sensibilidade sabem que de algum modo nós estamos na paisagem... Quando eles nos inserem, eles nos inserem como? Ou nos inseriram como? “Dois perdidos numa noite suja” fala do quê? “Navalha na carne” fala do quê? Que vida é aquela? Que vidas são aquelas que esses dramaturgos narram ou reconstroem como fábula? E o que nessas produções de Plínio Marcos, Chico Buarque e Paulo Pontes nos pertence? O que acontece quando nós introduzimos nosso pensamento racializado nessas formas supostamente sem raça, apenas com recorte racial? Quando nós introduzimos não só corpos negros, mas imaginários negros, signos negros... o que acontece com essas obras?



3. A emergência dos teatros negros na cena atual  ocorre, como todo o resto,  em um contexto de mercantilização da vida. Então voltamos a um paradoxo fundamental: é preciso ampliar espaços e é preciso ao mesmo tempo sobreviver  a esta ampliação, se o projeto for mais que criar um produto novo nas prateleiras da cultura. Como manter o aspecto combativo da estética - que tem sido a marca de boa parte dos coletivos - quando tudo tende ao enquadramento, à institucionalização?
Se observarmos a história do Ocidente, nós veremos que as artes precisam de algum grau de institucionalização. Entretanto, quando essa institucionalização se dá no interior de sociedades autoritárias, os artistas se transformam em meros instrumentos do poder. Então, nós dois estamos de acordo. Entretanto, no contexto da sociedade brasileira, a arte efetivamente precisa do aporte estatal e, de alguma maneira, seria ideal que as corporações destinassem parte de seu recurso com algum critério de transparência e equidade para que os artistas pudessem dar uma condição digna à sua criatividade. Por outro lado, você tem razão quando aponta esse lugar da mercantilização da vida e de mercantilização da criatividade. O problema é que nós não chegamos nem em um nível mais elementar do suporte público e privado para a produção artística. Assim, para os artistas negros, é importante continuar lutando para que haja maiores investimentos, melhores condições, estabilidade, mais transparência dos sistemas culturais públicos e privados e, efetivamente, equidade.
É muito difícil distinguir entre os artistas aqueles que são simplesmente arrivistas, como um certo artista dramaturgo de São Paulo, e quais são aqueles que querem inscrever a sua criatividade em algum patamar de visibilidade digna. De todo modo, é um risco que nós temos que correr.



4. Em  O Atlântico negro (The black Atlantic: modernity and double Consciousness) o historiador britânico Paul Gilroy articula ensaios nada pacíficos em torno da cultura política negra moderna. Em certa passagem ele diz, olhando para a obra do escritor americano Richard Wright: “Talvez os artistas negros experimentem a comunidade por meio de um paradoxo especial. Ela lhes fornece certas proteções e compensações, embora também seja uma fonte de constrangimento. Ela os dota de um direito imaginativo de elaborar a consciência da adversidade racial ao mesmo tempo que os limita como artistas à exploração dessa adversidade”. Você poderia comentar essa afirmação?
A obra de Gilroy tem um recorte geográfico e linguístico “nortocêntrico” e anglofônico. Mas, mesmo com essa crítica, ela nos leva a aventar hipóteses sobre a participação dos africanos, com seus valores civilizatórios, e dos descendentes de africanos, com o seu sentimento duplo de pertencimento à cultura ocidental moderna, mesmo estando nela de forma absolutamente inferior. Os descendentes de africanos, ou aqueles que surgiram na diáspora, participaram na construção do mundo que nós herdamos. Quando nós trazemos isso para uma realidade latino-americana ou afro-caribenha, ou afro-brasileira, somos levados a reconhecer os vários pontos de brilho, de beleza e de potência realizados pelos descendentes de africanos no Brasil. André Rebouças, um engenheiro negro, foi enviado para a África pouco antes de morrer. Foi ele quem disse que a África era o futuro da humanidade. E o que nós estamos assistindo agora, com todas essas questões ligadas ao meio ambiente, é a ideia de que se a África, se o continente africano, as culturas africanas e as culturas subalternas indígenas das Américas não sobreviverem, o próprio mundo não sobreviverá.




O autoritarismo vigente parece ser o último soluço do autoritarismo global, das formas arbitrárias e racistas. É a uma última tentativa de sobrevivência dessa percepção violenta e autoritária do mundo. Ela é muito potente e talvez dure muito tempo. Entretanto, há um sentido, um movimento contrário, que é a busca de artistas, cientistas, movimentos sociais, movimentos culturais e grupos subalternizados pelo seu comportamento afetivo. Então, há uma emergência e uma possível convergência dessas formas de confronto com o totalitarismo, com o autoritarismo e com os interesses mais violentos das corporações e dos estados autoritários.
O ativismo mundial negro - seja na Holanda contra os “caras pretas”, seja no Brasil, com as mães dos jovens negros e negras encarcerados ou mortos pela polícia, seja nesse renascimento dos movimentos sociais a partir dos sem-teto, dos sem-terra e dos quilombolas - indica um caminho e uma renovação da cosmovisão advinda dessa modernidade alternativa.  A reação autoritária é preventiva. Portanto, é contra essas mobilizações mundiais de indígenas, de negros e dos marginalizados da globalização que ela insurge. Mas o seu tempo de vida também já está quase mensurado, contabilizado. Nós vamos seguir.

5. Há poucos dias o governo federal escolheu Sérgio Nascimento de Camargo - identificado como um jornalista negro racista -  para a presidência da Fundação Palmares,  instituição emblemática na mobilização contra o racismo. Muitos viram na nomeação mais que uma provocação. Artistas e intelectuais falam  sobre um ingrediente explícito de perversidade. O que você pode dizer sobre  o episódio e sobre as formas de enfrentamento à violência de Estado, que não é nova mas vem ganhando contornos como esse?
Há uma figura pública negra que eu gosto muito, o Gregório Fortunato. Ele era de uma família de lavradores que trabalhou na fazenda dos Dornelles Vargas, no Rio Grande do Sul. Ele foi para o Rio de Janeiro quando o Getúlio Vargas deu o golpe e o acompanhou até a sua morte. Das acusações que saíram na imprensa sobre os desvios de verbas do governo de Getúlio, apenas Gregório Fortunato foi levado a julgamento em função de tais denúncias. Ele morreu na cadeia. Há uma bela fotografia de Fortunato atrás do Getúlio, penteando o cabelo do Presidente. Getúlio tinha baixa estatura e Fortunato tinha uma altura boa - aproximadamente 1,70m. Fortunato está com um terno de corte belíssimo, bem aprumado e de chapéu. Getúlio sem chapéu, quase careca, com pouquíssimo cabelo. Mas Fortunato, delicadamente, com um daqueles pentes que usávamos até os anos 80, penteia o topo da cabeça semicalva do Presidente. Por que eu gosto dessa imagem? Essa imagem, e o fato da existência dessa personagem, está ligada a uma projeção da sociedade brasileira em relação aos negros, que pressupõe que eles aceitem de bom grado serem tapetes, capachos, surrões. Surrões delicados.



Surrões prontos a atender à solicitação de qualquer potentado, de qualquer pessoa, de qualquer aristocratazinho, mesmo que seja um aristocrata baixo na hierarquia social. O que eu quero dizer com isso é que, para os negros, de acordo com o pensamento das elites - mesmo das elites intelectuais modernas, ou modernistas mais reacionárias -, o lugar dos negros é de silêncio absoluto e de pronta subalternidade. Não há muita escolha. Os negros que falam são tidos como soberbos ou pernósticos. Os negros e negras que falam devem ir para o fim da fila. Com um acento nas últimas décadas, o racismo antinegro e anti-indígena assumiu um caráter de violência real, fática, incontornável. Enquanto o antirracismo continua com uma retórica de integração, as instituições do poder, em especial as forças de segurança, são cada vez mais seletivas na morte, no lesionamento, na supressão de vidas de pessoas negras - especialmente os jovens. Esse é um fato que nós negros ainda não repercutimos como deveríamos. As vidas negras nos últimos trinta ou quarenta anos nunca estiveram tão em perigo. Assim, o episódio do senhor Camargo nos mostra que uma pessoa negra em evidência é um alvo, e não uma referência. Mostra também que os negros são diversos. Além de também indicar que boa parte do repertório utilizado pelo ativismo digital negro tem como base a própria visão racial elaborada pelo pensamento racista.  O racismo não permite a uma pessoa negra individualizar-se. Então, um ato público de uma pessoa negra é sempre assinado de forma voluntária ou involuntária como um ato coletivo.



Eduardo Bonzato. O bom cidadão

O BOM CIDADÃO
O que é um sujeito tipicamente mediano:
Num tempo de politicamente correto esse sujeito se sujeita às convenções e se apresenta como educado, cuidadoso, vigilante, justo, discreto, evitando situações de embaraços, pois sabe perfeitamente o que esperam dele os seus iguais.
Mas esse verniz de hipocrisia desaparece na segurança do lar e no convívio com os amigos mais chegados.
Aí ele (ou ela) pode ser preconceituoso a vontade, racista a vontade, homofóbico e chulo até a raiz do cabelo. Mas será o primeiro a se horrorizar se alguém se comportar assim publicamente e vai condenar também em público, pois assim reforça sua íntima hipocrisia como uma bandeira do comportamento social ideal.
Vive e usufrui de uma sociedade injusta e desigual e se beneficia dela, mas acusa essa mesma sociedade de injusta e desigual e clama por mudanças como um pássaro cantando para o vento.
Carrega todo tipo de misantropia, inveja, ódio, desprezo e os camufla sob o manto da aceitação incondicional do outro, da boa intenção de seus gestos, de uma auto imagem generosa e singular.
Grita contra o sistema que o alimenta e que ele alimenta em retribuição, disputando as migalhas e os melhores lugares como um degenerado, mas admite que não há outro jeito, o mundo é assim afinal.
Não tem nenhum pudor em ocupar a vaga de trabalho de um negro, de um gay ou de uma mulher, justificando pra si mesmo que é mais competente.
Fala merda o tempo todo, mas grita contra alguém que fale merda como se fosse o senhor do bom convívio.
Um desses sujeitos chegou ao poder sem pudor e o restante se horroriza com seu comportamento, grita publicamente contra o espelho, talvez porque alivie sua sórdida figura saber que existe alguém sem pudor em se expor como um representante dessa enorme classe média pudica, mas sem nenhuma moral senão seus próprios gritos, que soam como um alento de sua própria miséria moral.
Pois se não sabem, é exatamente a classe média que faz o sistema funcionar de modo tão eficiente na produção dos horrores desse tempo, e todos que se manifestam contra ele contribuem, à sua maneira, para o sucesso de seus mecanismos.
Ou então, como uma mágica, as pessoas se tornaram exemplos do bom cidadão que até então estava oculto.
SÓ VEJO GENTE DE BEM POR AQUI, INDIGNADOS COM O QUE COMEM E CAGAM TODOS OS DIAS



A música resiliente na era da reprodução técnico-digital Os não músicos- Eduardo Bonzatto
Desde meados do século XX, a imposição de padrões musicais cada vez mais rígidos (estilo, ritmo, harmonia, melodia, concepção e estrutura) ditados pela indústria do entretenimento, a cada dia mais mundanizada, e a constante busca pela celebridade, têm produzido um impacto de homogeneização cultural, sem precedentes nas formas criativas de toda humanidade.
Tal fenômeno foi preconizado de forma lacônica e por um viés um tanto eurocêntrico e elitista nos estudos de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural. No argumento central de “regressão da audição” uma visão preconceituosa para com o Jazz e também há, contudo, uma observação bastante embrionária, mas pertinente, sobre a disseminação de formatos sonoros quase esvaziados de conteúdo estéticos, que uma vez incorporados pela indústria do entretenimento e disseminados a exaustão minariam a diversidade musical do “mundo conhecido”. Observando a sociedade contemporânea, parte dessas ideias, efetivamente fazem muito sentido. A música, uma das expressões estéticas mais antigas criadas pelos humanos em sociedade, agora só encontra refugio na criação de músicos não especializados, os não-músicos. Pessoas que tendo ou não formação musical tradicional, acadêmica ou escolar criam música dentro ou fora dos padrões reinantes, mas sem nenhum propósito de exposição, capitalização, evidência ou prestígio.
Eduardo Bonzatto é livre pensador, professor universitário e nunca estudou música, mas tornou-se um ouvinte aficionado e amante da cultura musical. Ainda na infância fugia da professora de pianolatria em São Paulo e de longe apenas observava sua irmã, quando esta estudava piano clássico na residência dos Bonzatto, na Mooca, antigo bairro operário no limiar da Zona leste. Certo dia, já adulto, sentado por acaso ao piano, ele mesmo surpreendeu-se ao perceber que suas mãos deslizavam facilmente pelas teclas pretas e brancas, a despeito da sua consciência, vontade ou habilidades técnicas apreendidas.
Por mais de vinte anos destilou suas criações e recriações apenas para os filhos e a esposa. Alguns amigos mais próximos, também surpreendidos com o requinte e a beleza de suas canções, insuflaram nele algum desejo de exposição. Sob profunda pressão do meio e visível resistência e insegurança, por isso e não por outra coisa ele relutou bastante, ate que alguém enfiou uns equipamentos de áudio na sua sala e fez a primeira captura. Noutra feita ele foi conduzido em segredo a uma sala de gravação e literalmente obrigado a tocar, sem água e nem repouso em um teclado Yamaha Clavinova. Por algum tempo, a morte de sua amada irmã o havia minado os afetos e afastado do piano. Ele agora, só tocava para ela.
Sua sala, na casa encravada num morro de um bairro qualquer, de uma da cidades satélites da metrópole, quando da porta aberta , transforma-se em uma caixa sonora donde fluem tons, sons e sonhos, que ecoam por toda encosta urbana super povoada.
Aparentemente suas canções têm um motivo principal e um centro tonal , em torno dos quais ele tece os fios melódicos harmônicos que quase nunca se repetem por completo, de uma para outra execução. Já preocupado com memória, que por vezes falha, sente agora a necessidade de grafar suas canções, por algum propósito que não entende ainda muito bem, qual é. Os ouvintes mais rígidos sentem essas mudanças constantes como inevitável desconforto. Suas canções são descritas por mim, como feitas da bricolagem de cacos sonoros advindos da reconfiguração de trilhas de filmes, documentários, desenhos animados que ele gosta ou inspiradas em quadrinhos que ele lê com voracidade.

Salloma Salomão, inverno de 2011



sábado, 23 de maio de 2020

Anabela Gonçalves- Gênero e identidade de uma periferia em pandemia



23 de maio 2020, com todos os planos e desejos de ano novo na gaveta a vida segue no Brasil de forma suspensa e delicada. Desde 2019, mais explicitamente, temos  vivido tempos do combate ideológico de classe, gênero e raça, nesses grupos é visível a corda em volta do nosso pescoço.
O vírus que rodeia nosso convívio sem saber, criou o ambiente perfeito para que o vírus da corrupção e do ódio se fortalecesse na vida brasileira, com tudo o que o brasileiro queria de fato era uma mudança estrutural da situação de eterna estabilidade que vivemos.
Escolher a mudança e acertar quem carrega ela em sua retórica nunca foi fácil por aqui. Após acreditar na estabilidade da democracia foram muitas tentativas nas urnas de alguém que realizasse mudanças sociais e econômicas que nos colocasse em um patamar de dignidade humana, mas hoje o que percebemos é que tão difícil como explicar que a dignidade deve ser para todos independente dos seus méritos, mais difícil é explicar os deméritos políticos e pessoais de alguém que era para parte da população a mudança desejada.
A falta de cultura participativa política, a dança das cadeiras nos partidos, as coligações deixam cada vez mais confusos aqueles que realmente precisam de um Estado forte para garantia de sua subsistência e defesa do capitalismo de extermínio.
 Diante da fome não é o modelo de panela que vai fazer a diferença, mas o conteúdo que nela foi depositado. Eu nasci em 1981 junto com a ideia de um sistema político e democrático para todos e assim como eu aos quase 39 anos o mesmo sistema se encontra ainda amarrado para o seu total potencial de desenvolvimento. Vivemos com as possibilidades que os sistema tem promovido, o domínio sobre nossos corpos e nossas vidas remete em uma parábola grotesca ao domínio do próprio país. A devastação da natureza exibida pela Amazônia, também se reflete nós quintais de cerâmica exibidos pelas ruas e fachadas de nossas casas. A poluição e consumismo também existe em cada um além de uma prática governamental, estamos a mercê do bom discurso e a péssima prática.
Sou uma mulher negrindígena, mãe solo, nascida na periferia e minha voz sobre a necessidade de uma ética política comprometida com o povo e seu desenvolvimento tem escuta? Aparentemente sim, nas práticas, acordos políticos não.
Na rua encontro cotidianamente mais praticas políticas condizentes do que nas câmaras e plenárias públicas. O discurso dos nossos e suas crenças, muitas vezes divergem de suas práticas de labor, companheirismo, temos evitado esse debate para poupar amizades e não cair no isolamento social, opa isolamento social já existia politicamente ou já esquecemos as brigas de famílias nas eleições.
Somos tomados por uma inconformidade quando alguém de práticas sociais que são esmagadas cotidianamente pelo poderes aqui instituídos  apoia tal discurso dissonante das suas necessidades? Sim, a política brasileira nada mais é que isso e agente se acostumou a ganhar daqui e perder de lá, nomeamos tranquilamente de jogo político e nas ruas os nossos chamamos de pelego.
Essa fratura com a qual estamos lidando tem  nós tornado menos crentes e mais passíveis de aceitar políticas de migalhas, ou de toma lá dá cá. Esse é um fato que travessa nossos corpos e que se exemplifica com a frase mais ouvida nas ruas e nos ônibus, morrer de COVID-19 ou morrer de fome?
Eu na verdade acredito que minha formação e história esteja repleta de leituras ilusórias sobre a democracia e a política, quando olho para quem foi o inspiração para construção EUA, tenho sempre essa impressão, mas o que temos como ponte para um socialismo que dialogue com nosso momento histórico ?
Eu prefiro pensar na Dona Maria Eterna dos Reis em sua simplicidade de Tia Maria, tinha em sua trajetória a marca de uma periferia que sofreu com a ditadura e que nenhum glamour tem em qualquer luta vivida pelo povo pobre em governos ditatoriais como o atual.
Sabia que a educação era a única arma para desfazer as mazelas do discurso instituído pelos poderes, sabia que a luta comunitária era a única ferramenta que pode juntar o discurso e prática e fazer disso mobilização popular. Provavelmente Tia Maria responderia as minhas questões de forma prática e eu não estaria aqui escrevendo esse texto, mas o COVID-19 principal ferramenta de extermínio utilizada hoje pelo governo, levou nossa história e possivelmente com ela um acalanto político em tempos difíceis. Acho que essa foto foi feita pelo Rogerio Pixote no dia que ouvíamos Dona Maria e outros em um debate sobre a ditadura e a quebrada.




Anabela Gonçalves
Nascida na periferia de São Paulo em 1981, moradora do Jardim São Luís, a autora fez sua trajetória primeiramente na cultura 1995, como atriz em coletivos periféricos como Grupo de teatro Submundo que foi co-fundador da Associação Trópis e do Grupo de teatro Monte Azul entre outros.  A partir da fundação da Associação Trópis, entrou no percurso da educação popular, 1997, atuando em ONGs e movimentos populares que levou a sua formação acadêmica em sociologia, 2010. Sua atuação profissional se estende a órgãos públicos como OS do Estado e a Casa de Cultura Municipal do Campo Limpo.
Atua e foi co-fundadora do Coletivo Katu de educação e colaboração em coletivas feministas como Fala Guerreira, Periferia Segue Sangrando, entre outros. Atualmente assumiu a presidência da Associação Cultural Bloco do Beco, que atua a 18 anos no Jardim Ibirapuera.
A poesia é a linha de costura dessa trajetória, tendo poesias publicadas nas coletaneas poeticas Sarau do Binho e Versos em Versos, estando presente em sua vida como parte das reflexões recolhidas em sua atuação como mulher, mãe, educadora, feminista e trabalhadora.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Aurora Negra Cantos e batuques de força, fé e diminutas folias.

Aurora Negra. Batuques de força, fé e diminutas folias.
CD

Para um dia triste....

Música é, música não é: A música revela de mim os maiores medos, fragilidades  as mais fundas contradições. Ela me desafia a romper com meus círculos e referências mais diretas e andar por ai, em busca do inaudito, do intangível e sonhar o inatingível.  Ela também  tem sido uma maneira de me agarrar aos velhos amigos e criar novos vínculos e "não sucumbir de solidão". São eles que me dão os temas, me cobram novas criações e me ajudam, quando tenho algum plano novo de trabalho musical.
A música é uma ferramenta de deslocamento, é meu trem. Eduardo Schultz, além de tocar guitarra, bolou as capas do "O Dia das tribos" e "Memórias Sonoras da Noite". Marcelo Tai dominou os programas de gravação e mixagem para editar e  finalizar o mesmo Cd em 1998, tendo participado também do "Faces da tarde de um mesmo sentimento". Angelo Flores,  já em finais dos anos 1990 fez a primeira demos, em um gravador analógico multipista, fostex, se não me engano.
A música é meu baú de ébano, depósito de memórias vivas de afetos e perdas. O Helder Girolamo não deixou escapar os laboratórios do Na Corda Banda nos idos de 1980 e ainda hoje nos brinda com imagens inéditas daqueles dias. Desde 1995 Gustavo Fischer tem tido o desafio de organizar minhas viagens sonoras malucas, como colocar um batalhão de alfaias e tamborzeiros em um espaço de 20 metros quadrados, meia dúzia de microfones e ainda assim extrair música dos tocadores.
A música é pra mim um código de conduta. Maga Lieri sempre encontra espaço entre seus projetos para colocar as vozes femininas que somente existem , ao menos inicialmente,  no meu mundo interno e no meu ouvido torto. O Eufraudisio tem um voz baixo profundo rara, exerce um papel mais curioso, me dá dinheiro antes, pagando os cds sem saber se eles existirão um dia. A além disso me chama para trabalhar desde 1985. Em compensação digitalizamos o Lp da Corrente com o Brasil Folclore e ainda fizemos juntos em 1992 o vídeo-documentário “Corrente Libertadora- O quilombo da memória”, depois de algumas aulas com Maria Célia Paoli, sobre o “direito à memória”.
A música é política. Por ela é que ponho os cinco dedos nas perebas da hegemonia branca e da letargia negra. Da intolerância faço tema, consciência negra extrema e  “violência pacifica” (Racionais). Aqui nos vamos todos muito bang, bang, gang. Nós vamos todos muito Ben. A música me pões em contraste com Fela Kuti e Joge Ben. Em música eu ainda nem nasci.
DVD

Aurora Negra, 5 CD e 3 DVD e espetáculo autoral de Salloma Salomão. Com Deodara, Amoraterra, Quarteto Abanã, Clarianas, Klaus Wernet. Coordenação de Gravação e Arranjos de Gionavi Di Ganzá, Felipe Rossi e Salloma. Estudio Mocambo Digital. Aruanda Mundi 2003. Roteiro e edição de Marco Crepaldi. 2018.
Release
Na tradição do povo Ashanti, da África do oeste, a borboleta representa transmutação e na escrita adinkra sua imagem simboliza recriação. Paul Gilroy elaborou uma crítica (ética e etnicamente afetuosa) ao mundo ocidental na figura do escravo sublime, um sofredor-criador negro que mergulhado em perdas irreparáveis, não encontra outra alternativa que não seja criar um mundo novo. Nesse espetáculo o Músico e Historiador Salloma Sallomão novamente mergulha no oceano criativo da Diáspora Negra para elaborar um painel sonoro, imagético e narrativo configurado de memórias e devaneios, utopias e críticas.
O espetáculo baseia-se no quinto Cd de Salloma Sallomão designado: Aurora negra: Batuques e cantos de força, fé e diminutas folias. Está dividido em quatro segmentos, quais sejam: Atlântico negro: Memórias marítimas das perdas; Naufrágios e submersão: Infernos e dores do Mundo; Sublimação: Raízes do canto negro; Assumpção: Batuques e cantos de força, fé e diminutas folias.
São vinte canções autorais, arranjos inéditos, com luz e Figurinos de Debora Marçal (Capulanas), coreografia de Luciane Ramos, Cenografia de Salloma e Reginaldo mágico. A banda é formada por Guilherme Prado (Guitarra, Viola, Bandolim, Cavaquinho e Violão), Filipe Rossi ( Direção Musical, Violão, Viola, Percussão, Voz, Flauta e Teclado), Isadora Aragão ( Voz, Performance), Salloma (Voz e Flauta), Jessica Evangelista (Flauta), Wellington Bernardo  (Trombone e Percussão), Elias Costa (Trompete e Percussão) e Carlos Caçapava (Percussão).   
 Duração: 60 minutos, livre.
 Cd de Salloma Sallomão- Na Caldeira da feitura. com partiicpações de Quinteto Abanã, Clarianas, Deodara, Guilherme Prado, Filipe Rossi, Rabi Batuqueiro, Farrapo Cênico Cia Teatral, Carlos Caçapava,  Klaus Wernet e outros mbambas-masters da criações dos arrabaldes da selva.   
Video ciple

Princesinha do Congo

Argumento:
Quinto trabalho em Cd de Salloma Sallomão, representa um momento de harmonização entre suas experiências musicais de origem afro mineira e a cultura musical contemporânea, onde constam influências de musica brasileira em geral, assim como da musica negra  estadunidense e música tradicional e urbana africana.
Salloma atua criando letras e melodias, pesquisando canções da tradição afro-mineira e  trabalhando com apenas dois parceiros nos arranjos, captura e tratamento digital de sons de cordas, tambores e vozes. Mobilizou um grande e prestigiado time de músicos colaboradores de diferentes vertentes estéticas, residentes em São, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais e Amsterdan. O resultado é um conjunto diversificado de timbres, temas e tons,  enfeixados sob a égide da diáspora e da modernidade negra. São bricolagens autorais de fragmentos de jongos, maracatus, pontos, samba de roda, cantigas de congo e Moçambique e musica barroca mineira, com elementos de soul, jazz r&b.
Aurora Negra 

Nzambi trouxe as artes digitais para alimentar sonhos sonoros que há muito haviam adormecido.  No Mocambo à sombra da velha araucária celebramos os dias idos e os que estão por vir. O mundo está rodando sempre. Eta mundão de Nzambi. A gente vai tão longe para buscar alguma coisa sem saber o que. A gente mexe com tanto segredo tolo, fuça nas coisas do mundo, procura, procura e nada.
Um belo dia num tropicão qualquer, aquela coisa procurada, sempre teve ali. Uma velha imagem de São Bendito. Milagrosamente os mistérios se desmancham em compressão.      

As vezes eu quero os sons da infância, barulhos raros de carro, pios de saracura, cantigas de grilo, coaxos de brejo e mansidão. Me contento com tambores médios, com batuques de pandeiros ralos, sons de tampinhas e gungas feitas de latas de tomate, fico buscando a delicadeza dos ritmos lentos e do sossego aparente dos sertanejos.
Nasci na beira da Serra da Canastra, das nascentes do Rio Grande, onde muitos pretos foram santificados em troncos, que inda hoje gemem. Por vezes olhar a vida do alto de um morro, por mais baixo que seja, planta na gente um sentido de imensidão e de desafio, que nos arremessa mundo afora.
As Gerais foram cortadas por picadas, comboios e caminhos frescos. Os canjeiranos lá, foram desalojados, mortos e domados com cruz de ferro. Os poucos que ficaram, foram confinados em um bairro que leva seu nome. Nunca esperei por Guimarães, meu irmão Jansem é que firmou pontos de pretos velhos, enquanto o outro que morreu moço, chamado Abrão riscou 5 salomão no chão do quarto e traçou meu destino de moleque andarilho.
Foi ele que se casou com princesinha do Congo, a filha mais bela do temido Dito Baianinho, congadeiro e capoeira dos bons, dizem que tinha sido jagunço de um certo coronel. Quem viu aquele homem negro de porte médio dançar, seria incapaz de lhe imaginar tal atividade.
Meu Nganga me atraiu com chocalhos, me mostrou na quartinha, nos fundos da casa os tambores sagrados. Ngomas que nunca saiam.                       

Roteiro Preliminar


Cena 1- olhares e memória (sem musica). 

Interna (música som ambiente Caçapava brincando)
1- Câmera entra pelo espaço sem porta alameda de instrumentos vazia.
2- Câmara subjetiva do menino.
3- A câmara entra na casa do Velho, passeando por entre os objetos espalhados pelo cômodo.
4- O Velho está com o banjo no centro da sala, afinando-o.
5- O olhar do menino  muda, indo em direção ao velho e se instalando entre o banjo e seu corpo carinhosamente.
6- Interna (entra musica)Primeiro plano dos olhos do velho, que olha nos olhos do menino (câmara), convidando a entrar em si
7- O menino toca o banjo com o velho.

Cena 2 Black face Solo e banjo (som ambiente)
1- O Black face começa a tocar o banjo
2- Black face close.

 Cena 3 “ Voz-Tá prometida pra são benedito”
1-Panorâmica do espaço vazio.
2-O som começa e os musicos são focalizados em um canto do cenário no arco de flores.
Plano médio do menino e o velho. Eles se entreolham.
3--Enquanto o velho e os demais cantam no guarda sol “Tá prometida pra são benedito” sem instrumento.
4- O menino no interior do guarda sol olha para os adultos.

 (24 compassos, duração aproximada 27 segundos)

Cena 3-Banda na Alameda de tambores
1-Outros sons se misturam ao banjo, foco no violão e banjo revelando a música do clipe.
2-Músicos desfilam e cantam em meio as cordas penduradas e bananeira ornamentais vermelhas, por onde quatro músicos transitam(Duração 4 compassos, mais 23 compassos, duração 32 segundos)

Cena 4  (Voz- Não mexe com essa menina)
1- Surgem princesas cobertas por mantinhas de Prata e Ouro, noivas de São Benedito.
2-A câmera circula ambas focando no rosto encoberto

Cena 5  Ponte instrumental tambor e cordas e
1-Banda  e as princesinhas do congo surgem dançando sob um arco.
primaveras.
2-Plano aberto a banda tocando instrumentos segue as princesas,

Cena 6 “Quando ela passa”  
1-Plano fechado no cesto de vime.
2-O vento sopra sobre as pétalas vermelhas sobre o menino. 
3-Velho no cortejo começa a cantar “Não mexe com essa menina me menino neguinho”
4-“Princesinha africana de rosa no cabelo”. Elas dançam sobre as petalas encabeçam o cortejo que atravessa

Cena 7-Tava perrengando- a vida vai virar” Banda e Dança
1-Interna. A câmara percorre a sala suavemente indo do teto até o local onde está o cesto antigo com as pétalas, fechando no vermelho das pétalas.
2-Plano aberto cortejo Banda e velho cantando,
3-Performance Caçapava
4-Encerra com Plano fechado no olhar do menino.


Cena 7 Instrumental Banda Cortejo
1-Camera percorre as alameda de instrumentos e flores vazia  depois com cortejo princesas e banda. (8 compassos,  9 segundos)
2-Novamento  um cortejo de congada de mistura com imagens de Congadas
3 Todos trajam figurino tradicional. Descem a alameda com flores tambores e passaros-instrumentos.
4- Câmera se aproxima do cortejo. (4 compassos. 4 segundos)

Cena 8 “Não mexe com essa menina”  menino interditado
1-Performance com vocal
2-Olhares do menino e do velho. Os olhares percorrem em direção ao teto.
Plano médio superior do velho e do menino. Eles se olham. O menino, de súbito dá um passo para trás, vira-se e sai correndo. O velho se levanta (16 compassos, duração 18 segundos)

Cena 9 “Quando ela passada” menino interditado
1-A menina se aproxima da câmara dança para ela, com ela, sorrindo e rodopiando. Um conguadeiro com espada na mão se aproxima.
2-Com a palma da mão interrompe a dança. Gesto de corte, de interrupção, em movimento de guilhotina. Ao mesmo tempo, a mão vira para a mão da menina, tirando a menina do centro da cena.
3-A câmara pára seu movimento de dança e segue a menina, que volta para o cortejo.
4-Em seguida vê-se o rei do congo que olha severo, diretamente para a câmara, que sai do quadro ficando apenas a visão do espaço vazio. (12 compassos, duração 12 segundos)

Cena 10 externa “Tava  perrengue ando, a vida vai virar”   
1-Plano geral frontal revela o menino do outro lado da rua, vestido com roupas antigas.
2-Entram pétalas de flores vermelhas, em movimento, em direção ao menino.(24 compasos, 29 segundos)

Cena 11 Externa. Começo de noite. Câmara subjetiva do velho. 
1-A câmara caminha e estaciona em frente à porta. Som de algazarra de crianças. A princesinha do congo aparece em fusão, diante da porta. Tem nas mãos uma flor com a qual brinca. Olha diretamente para a câmara. Subitamente sai pela lateral. (10 compassos, 13 segundos)
2-Esquina de uma rua. Carros parados na faixa.
3-Uma menina vestida de branco, com uma cesta cheia de flores, oferece uma flor ao motorista. Este recusa.
4-Ela vai até um segundo motorista oferecendo a flor. Este também recusa.
5- menino atravessa o farol chegando até um carro onde está a menina, de costas. Ele toca seu ombro. Ela vai se virar para o menino. Corte.
6- O menino pega a mão da menina, deposita nela as pétalas vermelhas de rosa. Menino sai correndo.
7-A menina vira em direção ao carro (à câmara). Revela seu rosto. É a mesma menina da congada.
8-A menina retoma seu caminho vendendo flores no farol, saindo do campo. Ao fundo, a cidade à noite, com luzes sem foco.


FIM 
Proposta de Míriam Selma e Munir AhmedCréditos:

Música e Argumento. Salloma Sallomao Arranjo- Salloma e Filipe Rossi. Roteiro e Direção- Munir Ahamed e Miriam Selma Projeto gráfico, edição e animações : Cassimano Figurino- Débora Marçal (Preta Rainha) e Salloma Cenário- Luis Poeira, Salloma e Antonio Braga Luz- Washington Jean Cameras- Nanau Cassimano, herbe Prado, Munir Ahamed, Dança- Luciane Ramos e Flávia Mazal Menino- Octavio de Paula Banda- Deodara (To, Jéssica, Elias), Filipe Rossi, Carlos Caçapava, Guilherme Prado, Salloma. Produção- Aruanda Mundi Studio Mocambo Digital. Coloboração- Cris Rodrigues, Anna Raquel, Flavia Jovino, Luiza Rodrigues, Ray Elivelton, Ingrid Rocha, Emile Fanti, Augusto Lopes, Gabriel Rodrigues, Miguelitos e Marta de Paula. Apoio -- Grupo Clario e As Próprias Custas Limitada.

Aruanda Mundi- Arte, Cultura, Educação         Como escolher um repertório? Como definir um tema? Como estabelecer um mote geral pra um Cd? Como chegar a um conceito pra trabalhar as canções, de forma a manter alguma coerência entre poética, arranjos, timbres, tecidos e ambientes sonoros-musicais. Como aliar isso tudo às imagens e materias da "bolacha", encarte, capa e contra-capa, etc? Como levar tudo isso em conta e ainda ter espaço para uma criação livre?
Como fazer e comunicar música, sem nenhuma estrutura empresarial por detrás?    E a arte de fato é um exercício de liberdade individual e coletiva?
A música me ajuda a entender um pouco o mundo e a mim.
Desde 1998 as máquinas e programas de computadores, têm sido ferramentas criativa e artesanalmente utilizadas, para criar e comunicar cultura musical. Isso é, muito mais que fazer música. Mocambo Digital- Construindo o ambiente de gravação. Salloma e Benedito Rosa, parceiro e amigo muito querido, assessor técnico para assunto de eletricidade e outras questões.
Vou contar. Quer ler? Então vem.....
Por caminhos insondáveis NZambi nos trouxe as artes digitais, para alimentar sonhos sonoros que há muito estavam adormecidos, apenas alguns entenderam isso, menos ainda tiveram acesso as tais maquinas sonoras. No Mocambo Digital e à sombra da velha araucária celebramos os dias idos e os que estão por vir. Por vaidade ou política pequena, nos desencontramos muitos neste dias recentemente passados, mas havemos de chorar em demasia por isso, não temos tempo. Somos convocados a tecer os fios melodicos e as tramas rítmicas do kronos futuro. O mundo está rodando sempre. Eita mundão de NZambi.
A gente vai tão longe para buscar alguma coisa, sem saber o que. A gente mexe com tanto segredo tolo, fuça nas coisas do mundo, procura, procura e nada. Um belo dia, num tropicão qualquer, aquela coisa procurada, sempre teve ali. Uma velha imagem de São Bendito. Milagrosamente os mistérios se desmancham em compressão assustada, num desvelamento arrebatador. Um amigo meu cético, roqueiro e ateu foi curado de um danada de uma dor de cabeça insuportável. Médico nenhum, remédios todos, o corpo laboratório do consumo insano. Quando nada mais cria, apenas um olhar daquele que alimentou, guardou e zelou pelos algozes.  Sanctus Panis, Benedictus Aethiopicus. Escravo sublime? Gilroy é muito mais cristão  e freudiano que eu. Mas me confessa se essa imagem  mística do perdão, é ou não  maravilinda?  Agora que eu sinto, compreendo.       
Mesmo tendo perdido parte significativa da virilidade macha, é verdade que adoro rasgar a cidade, correndo os perigos próprios aos semi-cidadãos, Exus e priapos de pistolas quentes em punho, sem gozo, somente pólvora e chumbo. " Eu que sempre fui de paz, também tenho que apertar as mãos de homens sujos de sangue.  Eles deidades e nós somos apenas homens com medo da morte. A trilha pra isso somente pode ser e é  Hendrix, Brown, Racionais, Tim Maia, Cassia Eller, Criolo, EMICIDA, Jorge Ben Jor, Belchior ( Coração selvagem). É foda, é crime e medo demais, é tudo pesado e sem remoroso. Quem como eu vê essa cidade amanhecer, não pode entender como ela pode ser tão dividida de si e de mim. Ela é tão voraz.
Lembro-me sempre da "Bebel que cidade comeu". Meu Deus é um padre Loyola, romancista e escritor. Minha irmã se fez Bebel Nepomuceno. Negra de fibra, pôs a filha negra no mundo e chamou-lhe guerrilheira, Aminata. Ela também entra nos meus sonhos e atravessa  para os sonhos da Ana Raquel, ela pede socorro do alto do apartamento, ela está só e em perigo e, nós também.
Foi meu pai, e hoje sou eu quem faz essa cidade e ela me estranha, quase nunca ela é minha, me expulsa e mata um pouco lentamente, me asfixiando. Vivo nos arrebaldes, "aqui periferia", Peri aqui preferiria morrer e morreria na beira do Pinheiros (no entrocamento do antigo Quilombo da Traição), morreria Peri-Peri asfixiado? Aqui ninguém é herói. Crioulo cantando diz: "Aqui ninguém vai pro céu".   Outras vezes quero fugir pro campo, não uma casa de campo na cantareira ( Zé Rodrix, Renato e Elis talvez,). Mas eu um lobo gará, banguela e domestico, revirando os lixos nos terrenos baldios. Queria querer algum tempo para me aperceber de uma planta a crescer e ver as crianças brincando sem medo de bala de chumbo, não de goma. As vezes é isso eu quero e consigo, mesmo ingênuo, busco algo que se aproxime dos sons da infância. Memória?
Outras feitas, tô nessa, só penso nos pios de saracura, cantigas de grilo, coaxos de brejo e mansidão. Barulhos raros de carro e de caminhões cheios de lavradores ou de cana queimada. A maquina tosca FeNeMe vai manquitola na estrada de terra no rumo da Usina Açucareira. São quase todos pretos, os que não são hão de ficar no fim da tarde de tanta fuligem. Serão iguais?
Música minha, dos outros, roubadas de rabecas, mpuitas, violas de bambu. Música minha, dos outros em  mim, tissungos roubados do ladrão letrado do Aires da Mata. É sobre eles  que montamos samplers, rifs chupados, células e timbres recolados no CUBASE e  no LOGIC AUDIO.
Na maioria das vezes só me contento com timbres de tambores médios, com batuques de pandeiros ralos, sons de tampinhas e gungas feitas de latas de tomate. Outras horas, eu fico buscando a delicadeza dos ritmos bem lentos e do sossego aparente dos remansos sertanejos, cantados em terças justas, aumentadas alegrias. São notas longas e graves, sons do universo, tempo longo da morte.
 Vou confessar: Sou matuto camuflado em reza urbana. Nasci na beira da Serra da Canastra, perto das nascentes dos Rio Grande e São francisco, antiga comarca de Piunhi. Onde muitos pretos foram santificados em troncos, que inda hoje gemem e nem sempre é bom lembrar. Por vezes olhar a vida do cume de uma serra, por mais baixo que se seja, planta na gente um sentido de imensidão e de desafio, que nos arremessa mundo afora. Primeiro São Sebastião do Paraíso (  santo todo ambíguo, seminu e delicadamente crivado de flecha, ) na entrada da cidade. Depois Poços de Caldas, Monte Santo, Itaú, Santa Rita de Cassia, Alpinópolis, Piunhi, Pratápolis, Ribeirão, Batatais, Brodoswki, Salvador, Lumiar, etc. Com quantas usinas  se faz uma cidade. Quantos corpos pra moer cana, quanta garapa e sangue, desperdício de gentes. 
 Aquele nariz das Gerais, descambou pro triângulo, caminho de tropa. Um velha senhora de face dura, narina adunca. As matas e a geografia das Gerais foram cortadas por picadas, comboios e caminhos frescos, somente mais tarde veio o trem de ferro, todo soberano e subiu os morros. Tudo que era maxambomba virou trem. Os canjeiranos lá, foram desalojados, mortos e domados com cruz de ferro. Os poucos que ficaram, foram confinados em um bairro que leva seu nome. Aleluia meu Bom Jesus dos Passos. Passos de dança do Moçambique, das Quimbandas mineiras, nos ritos secretos dos Congados. Tudo isso é reversão, não fosse isso, era lamento do Milton e meu. 
 Nunca esperei pelo glamour das páginas de Guimarães e Drumont. Apenas algumas letras dos Mello e Souza esbarram em resquícios de ouro, escravaria e fazenda nas bandas de lá.  Quilombagem nem notícia. O ouro não vem do céu, mas basta seguir a estrela que cai, se uma noite ela cair. Ninguém meu nunquinha achou nadica, tudo já havia sido "arrancado do chão pela  mãos de outros crioulos" eita lamba.
Antes da conversão a Rosa Cruz, meu irmão Jansem firmou pontos de pretos velhos na juventude e Abrão riscou no chão velha escritas dos Ngangas. Ele depois foi ao Radio Clube de Passos se defender. Enquanto aquele morreu bem moço, riscou o "5 salomão" no chão do quarto e traçou meu destino de moleque andarilho, de amante de olhos faiscados de toda cor e poemas e quadras rascunhadas em papel de pão com urgência. Abrão chamava minha mulher Ana, de Úrsula. Somente depois de ler o romance homônimo de Maria Firmina dos Reis, compreendi e agradeci sutil gentileza.
 Abrão. Foi ele quem se casou com princesinha do Congo. Gasparina era  filha mais bela do temido Dito Baianinho, congadeiro e capoeira dos bons. Baianinho? Dizem que tinha sido jagunço de um certo coronel, longe dali, no Recôncavo. Não dá para saber. Quem viu aquele homem negro de porte médio a dançar, seria incapaz de lhe imaginar tal atividade, de lhe imputar tal juízo. Dançarinos também matam. Os assassinos é que não podem cantar, a voz do canto neles seca.  Não se engane não seu moço, as roças das Gerais eram ainda há pouco, terra de gente braba mesmo. Gente grande e covarde. Depois da abolição muito fazendeiro seguiu jagunçando preto e mandando enterrar  no quintal do casarão. Até a república lá foi imposta à bala. Mas onde ela não foi? Somente os brabo e forte, os divinos e abençoados sobrevivem pra contar e ver o tempo se desdobrar em causo, lenda e desventura. E o esquecimento? Os nobres e ricos ainda hoje pagam pra viver e mandar os filhos pra Coimbra? Não mais, agora se formam ali, Ber Zonte, Valadares, Ouro Preto. Ouro Preto? Tá me mangando? Acha que eu sou besta. De carga  e canga, já fui. Hoje ponho tudo isso na música.
Eu não queria mais ser só um menino, quando numa certa tarde de sábado,  me atraiu o xeque-xe-xeque das Ngungas.  Dos chocalhos de canela de pretos de saia. Quem me mostrou na quartinha, nos fundos da casa, os tambores sagrados, foi o próprio Feliciano. Era ele um Tximbanda que sobreviveu ao massacre cristiano. Foi lá onde eu vi e toquei as Ngomas que nunca saiam. Benditos tambores, senhores maleditos, queimadores de ngoma e gente. Proverbio em cantiga de Congo é troça e revanche. Eu paro aqui, depois continuo.    
Aos poucos vamos embora. Depois é que compreendemos que estamos em algum ponto perdido de uma trama temporal. Por mais   inventivos que sejamos, estamos suportados em tradições musicais, onde toda cultura musical do século XX se concentra. Esta, por sua vez tem linhas de desenvolvimento ( também involução) muitas vezes conflitantes. Embora a difusão desigual de música tenha imposto padrões similares em todos as aldeias do globo, o sistema mundial de produção e comercialização de música não conseguiu  homogeneizar os saberes e fazeres musicais, de maneira tão universal quanto se pensa.     Bendita mídia sonora, disco de grafite, carvão, vinil, plástico com película matizável. Lente de infra vermelho.
Há esse fato inconteste do século XX, que é o que chamamos vulgarmente de Indústria Cultural e que colocou sobre  a música todo peso da transformações  tecnológicas do ocidente capitalista.  Afinal, qual foi o real impacto do mundo do espetáculo, dos sistemas de fonogravação e veiculação musical do rádio, do cinema, da TV e da internet sobre as culturas musicais dos diversos povos  e culturas do planeta?       


FANDANGO
Salloma- AM-00032


Para um dia triste, um dia de sol (bis)
A vida não tem ensaio
Não bula no meu balaio
Não dou fita pra lacaio
Nem toque em meus pacová
Eu sou calunga,
 eu sou candimba,
 eu sou do tango
Eu vou na rima e
 vou tecendo
esse calango.
Eu sou malimba
Eu sou madimba
Eu sou do huambo
Eu vou na rima
Eu vou tecendo esse fandango

Para um dia triste, um dia de sol .....

 Meu pano tecido de Nzambi.
Meu plano é coisa desse mundo.
Meu sonho é liberdade extrema.
Meu tema é desejo profundo.

Minha mãe zombava da miséria.
Meu pai nunca compreendia.
Corria a acendia a vela.
A dela acesa noite e dia.

Para um dia triste, um dia de sol  (bis)

Tango lo mango combatente eu também caio
Meu coração segue na proa do navio
Meu galeão leva desterro e alegria.
Manter aceso esse pavio,
É teu espanto.


Pernada e rabo de arraia
Fandango e caixa de folia
Libambo e toque de magia
Cambota, eu abraço meu mano.