SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Bio-caminho

salloma Salomão Jovino da Silva, "Salloma Salomão é um dos vencedores do CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA RUTH DE SOUZA, em São Paulo, 2004. por dez anos foi Professor da FSA-SP, Produtor Cultural, Músico, Dramaturgo, Ator e Historiador. Pesquisador financiado pela Capes e CNPQ, investigador vistante do Instituto de Ciências Socais da Universidade de Lisboa. Orientações Dra Maria Odila Leite da Silva, Dr José Machado Pais e Dra Antonieta Antonacci. Lançou trabalhos artísticos e de pesquisa sobre musicalidades e teatralidades negras na diáspora. Segue curioso pelo Brasil e mundo afora atrás do rastros da diáspora negra. #CORRENTE- LIBERTADORA: O QUILOMBO DA MEMÓRIA-VÍDEO- 1990- ADVP-FANTASMA. #AFRORIGEM-CD- 1995- CD-ARUANDA MUNDI. #OS SONS QUE VEM DAS RUAS- 1997- SELO NEGRO. #O DIA DAS TRIBOS-CD-1998-ARUANDA MUNDI. #UM MUNDO PRETO PAULISTANO- TCC-HISTÓRIA-PUC-SP 1997- ARUANDA MUNDI. #A POLIFONIA DO PROTESTO NEGRO- 2000-DISSERTAÇÃO DE MESTRADO- PUC-SP. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- CD - 2002 -ARUANDA MUNDI #AS MARIMBAS DE DEBRET- ICS-PT- 2003. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- TESE DE DOUTORADO- 2005- PUC-SP. #FACES DA TARDE DE UM MESMO SENTIMENTO- CD- 2008- ARUANDA SALLOMA 30 ANOS DE MUSICALIDADE E NEGRITUDE- DVD-2010- ARUANDA MUNDI. Elenco de Gota D'Água Preta 2019, Criador de Agosto na cidade murada.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

S.O.S! A urgência da fome

Maria Conceição passou boa parte da sua vida profissional atuando na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Se graduou em Gastronomia e pós-graduou em Gastronomia, História e Cultura. Possui uma ligação ancestral com a comida, que começou ouvindo as histórias das mulheres negras na cozinha. Seu processo se intensificou ao procurar cadernos de receitas de sua família, de forte cultura oral. Ao entrevistar mulheres negras do seu convívio e estabelecer o recorte de pesquisa por mulheres nascidas no início do séc XX, descobriu que a identidade negra está nas panelas. Dessa pesquisa se originou o livro ainda não publicado As mulheres das Colheres de Pau. Hoje, pesquisa a cozinha afro- brasileira e africana em diferentes vertentes.
S.O.S! A urgência da fome "A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do do estômago." Carolina de Jesus Confesso que sinto um desconforto cada vêz mais crescente quando posto comidas, ainda que levo em consideração que é minha linha de pesquisa como cozinheira e pesquisadora. Com a pandemia as pessoas passaram a cozinhar em casa, não é a toa que esse período está sendo chamado de Pãodemia, fotos e mais fotos de pães sem poder sair de casa em isolamento as pessoas passaram a fazer seu pão em casa, os politizados que torciam o nariz para as cozinheiras narcisistas e seus pratos, passaram também a postar comida, até aí tudo bem , um equilibrio de forças, a pandêmia veio para trazer mudanças comportamentais para além da mesa , cozinheiras sacoleiras, gastrologos e pesquisadores na area da alimentação que adoram viajar e conhecer as tradiçoes alimentares de outros locais, já veêm no horizonte uma vida de restrições e mudanças alimentares, assusta muito um mundo higienista, os muros já são muitos, aquele restaurante com self service onde a comida é exposta a milhares de perdigotos, o lúdico bolo de aniversário e a velinha a ser apagada com vigorosos sopros, na televisão vemos restaurantes com telas de vidro isolando a comida, mas será que todos os donos de restaurantes e botecos terão capital para essas mudanças?imaginem milhares de goticulas salivares cujo nome cientifico é perdigoto contaminados voando sobre os alimentos, como será o futuro no universo da gastronomia, noticias chegam sobre novos virus, uma historiadora que pesquisa o comportamento dos Paulistas na crise sanitária da febre amarela disse que sempre haverá pandemias na humanidade, parece um conforto, talvez estejamos mais preparados para a próxima, mas têm uma pauta que supera todas as discussões sobre a comida, A FOME! Precisamos falar sobre isso, o Brasil saiu do mapa da Fome das Nações Unidas em 2014, com a ausência de politicas públicas que inclui combate ao analfabetismo, programas de habitação, agricultura familiar, saúde , renda básica e outros, nos encontramos com a fome de volta, os números são assustadores das pessoas que estão passando fome, 10,3 milhôes de pessoas , 7,7 milhões de moradores da area urbana e 2,6 milhões na aréa rural, esses dados foram divulgados pelo IBGE em setembro, como uma coincidencia poética da urgência da fome o nobel da Paz neste ano foi concedido ao Programa Mundial de alimentos, a Onu tem muitos problemas , mas esse programa é fundamental, os números são espetaculares, pouco dinheiro e muita ação, alimentam quase cem milhoes de pessoas em regiões em conflito no mundo inteiro, o prêmio nos serve para despertar a todos . Sobre vulnerabiliidade nessa grave crise pandêmica, os dados do PNAD dão conta que Mulheres, pardos e pretos estão mais vulneráveis a passar fome no Brasil, no quesito da contaminação e morte por covid a população negra no Brasil e nos Estados Unidos também estão mais expostas, a desigualdade social e econômica são determinantes. Acompanhei vários pesquisadores que pesquisam a fome, a grande dificuldade desses pesquisadores é definir o que é a fome? A melhor definição que li foi da Carolina de Jesus, o relato de quem conhece essa ausência, essa emoção ou vertigem, só pode ser dada por quem passou fome, podemos falar sobre a fome sob a ótica da fisiologia, ainda assim não é representativo e forte como a narrativa da Carolina a fala dela possui ancestralidade e pertencimento, por isso abri o texto com a fala dela. Eu estou em várias frentes de discussão na area da alimentação, como alimentos orgânicos, combate aos venenos na comida como transgênicos e 0utros, mas só tenho olhos para a fome, para pequenas ações no combate da fome e do desemprego, para piorar alimentos começam a faltar nos mercados, o governo parou de fazer os estoques reguladores desde 2016. A crise pandêmica pegou o governo despreparado , os itens da cesta básica como o arroz e o feijão, oléo, os que não estão faltando nas prateleiras , estão com preços altos, algumas dicas do site de gastronomia Minestrone: conheça uma CSA – comunidade que sustenta a agricultura familiar vendendo cestas de legumes e verduras sem intermediario , fortalecendo o pequeno produtor, procure um nucleo proximo a sua casa ou sua cidade.,http://www.cdrs.sp.gov.br/portal/imprensa/noticias?tag=Comunidade%20que%20Sustenta%20Agricultura, outra iniciativa muito boa em São Paulo é o Bom Prato, o valor do almoço é 1,00 real, refeição bem balanceada, arroz, feijão, uma proteina, ou frango, carne ou peixe, mais a sobremessa, atende a população vulnerável , desempregados,ou os novos descapitalizados, vale a pena conhecer, conta com a supervisão de nutricionistas excelentes, que fazem os cardápios, o mesmo para cozinheiros (as): https://www.saopaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/confira-os-enderecos-dos-restaurantes-bom-prato-do-estado/. Estou mapeando todas as ações contra a fome em breve vou disponibilizar, o sociologo Betinho em sua ação social Fome Zero nos inspira, a situação é grave, não é assistencialismo é solidariedade politizada.

domingo, 11 de outubro de 2020

Eufra Modesto. Salloma Salomão 6.0

Celia Demarchi, 63, é trabalhadora da área de comunicação. Repórter desde os 19 em veículos pequenos, médios e grandes, com ênfase em economia; comunicadora em administrações públicas populares e empresas privadas (livros, eventos editoriais e políticos). Comunicadora voluntária de candidaturas e movimentos populares.
Duas realidades: Um amigo marceneiro, que mora na região do Grajaú ( São Paulo Capital), me conta que de uma semana para a outra o preço de uma chapa de MDF padrão foi de R$ 160 para R$ 240, e mesmo assim foi difícil conseguir uma única. O produto está em falta porque, segundo ele ouve dos fornecedores, os produtores estão preferindo exportar. Como o arroz e sabe-se lá quantos produtos essenciais mais. A gente sabe que exportar fica mais lucrativo quanto mais aumenta o valor do dólar em comparação com o real... e o dólar tem rondado os R$ 6. Enfim, o dólar aumenta porque a economia desanda e os “patriotas” exportam até os produtos da nossa cesta básica, como o arroz, que escasseia e fica mais caro. Meu amigo me diz que foi ao mercadinho do bairro, o Jardim das Imbuiais, mas não teve coragem de pagar R$ 28 no pacote de arroz, que há três ou quatro semanas custava R$ 11, depois R$ 18... Também desistiu de levar óleo de soja. Outra amiga, que mora na zona Leste e criou uma rede de solidariedade para ajudar algumas comunidades miseráveis da região a não passar fome durante a quarentena, diz que cestas básicas foram o produto mais doado nesse período para os vulneráveis... ou seja, a própria solidariedade pressionou os preços. Ao observar tudo isso, uma terceira amiga, especialista em segurança alimentar, pontua que, nós, povos colonizados, nos tornamos presas da indústria alimentícia, passamos fome quando poderíamos ter abundância, desde que aprendêssemos a valorizar produtos e formas de produção e consumo alternativos, opção que vem sendo adotada em várias comunidades país afora, segundo ela. Bom, isso, digo eu, é um dos meios, entre tantos que vêm brotando no mundo todo, de ir “cercando” o capitalismo, enquanto não se pode destruí-lo. Meu amigo marceneiro conta ainda que os mercadinhos do bairro estão ficando vazios. Sem dinheiro, as pessoas estariam comprando porções minúsculas, comendo menos, enquanto os preços sobem inclusive porque os comerciantes estariam especulando com os estoques. Leio que que o IGPM, índice usado para reajustar aluguéis, que tem o dólar como um dos componentes, está à beira de 20%, em 12 meses, enquanto o IPCA, que indica a inflação oficial e reajusta benefícios e salários dos felizardos que ainda os têm, fechou em 3,1%. Imaginem, receber aumento de 3% e pagar 20% a mais pelo aluguel... E o jornal explica que, no IPCA, o maior peso foi da alta dos alimentos, de mais de 15%. Os demais preços não têm fôlego para subir porque, de bolsos vazios, o brasileiro mal compra comida. Conta ainda o amigo que seus vizinhos estão retraídos, parecem ter medo, ninguém quer falar de política e políticos, eleições. Não de hoje. Têm raiva, não comentam notícias de whatsapp, falem mal ou bem de quem for. Sentem-se largados e enganados. Dão bananas paras as carreatas eleitorais da esquerda e da direita... Por causa da covid, alguns trancaram-se em casa ao ver a morte avizinhando-se. Outros, como um homem que perdeu a esposa para a covid e tem filhos infectados e doentes, nada vêem de anormal: "As pessoas com saúde ruim morrem mesmo". Quanto a mim, sinto como se vivesse em duas realidades. A dos movimentos sociais organizados, combativos, apoiados por partidos e parlamentares de esquerda, que lutam e efetivamente conseguem impor derrotas ao projeto neoliberal ultrajante de Doria-Covas. E a da população em geral, em que a necessidade de sobrevivência é a única preocupação e em que o desinteresse pela política é escancarado. A amiga da zona Leste ouviu estes dias, ao entrar, sentar-se e aceitar um café num barraco triste de uma comunidade isolada em plena cidade de São Paulo: “A gente confia na senhora porque a senhora não tem nojo da gente”. Essa é a realidade que se impõe, com a qual, efetivamente, não estamos contracenando. Celia Demarchi 10 de outubro de 2020.

domingo, 27 de setembro de 2020

Atabaque

Atabaque

 

Eram os anos 70, ditadura, eu tinha uns 13, 14 anos, quando ouvi o Santana pela primeira vez. Batuka. Nunca esqueci aquelas congas, ali mudou minha vida. Eu era um moleque da baixa classe média, daqui de São Paulo, branquelo, gordinho, tímido, sem swing nenhum, gostava de free jazz e rock progressivo e de literatura. Mas ali, na hora, eu decidi: é isso que eu quero fazer, tocar “isso aí”.

E toca a descobrir o que era aquilo ali. Descobri e fui atormentar o Raul, que fazia instrumentos, e tanto atormentei que ele me deu um par de congas velhas e abandonadas.

Descobri o querido Dinho Gonçalves, mestre dos percussionistas paulistanos, pessoa maravilhosa e de generosidade sem igual, que nos ensinou a todos. Com ele comecei a aprender a técnica e os ritmos latinos.

Fui parar também lá na Acacab, Associação Casa da Cultura Afro Brasileira, onde tinha um curso de percussão com o Beto, cara super bacana que percebeu que eu queria ir além. “Eu conheço o cara que você tem que ter aula.”—falou. E me apresentou o Paraná.

Aí começa a história. O Paraná tocava atabaque.




A gente tocava atabaque nas congas. As técnicas e os ritmos daqui. Mas ninguém queria ouvir. E fui percebendo que não tinha lugar pro atabaque, só na universidade, com o povo de antropologia ou musicologia...

 Éramos obcecados com o tambor, eu estudava alucinadamente horas por dia, durante anos, até um dia ouvir do Paraná:” Pô, man (era meu apelido, de tumba man –das congas, tumba (ou tumbadora), conga e quinto), vou te dizer, quando você começou eu não achava que você fosse conseguir...”

Tivemos um sonho: criar uma música contemporânea popular de atabaque

Fizemos um trio com o Guello, amigo, irmão e super-músico, o Alaiandê – algo como “Aí vem os tocadores de tambor”. Era nossa missão, éramos os apóstolos do atabaque. Ou pelo menos a gente se achava.Eu me sentia como nos “Blues Brothers”, aqui no Brasil “Os irmãos cara-de-pau”, quando eles falavam:“We are in a mission from God” – os manos numa missão divina iluminados pelo James Brown. Só que a gente era pelos orixás...  Mas ninguém ouviu, pregamos no deserto. Aquele trio que não fazia gracinha nem sorria, dois brancos chefiados por um negro sério e professoral tocando aquela música de atabaque sofisticada e erudita, quando deveria ser “primitiva” e “exótica”  ou “alegre” pra agradar, só fez sucesso entre dois ou três  antropólogos e com o pessoal que pulava o muro pra vir ver a gente ensaiar no quintal do Paraná. Ninguém se interessou, os outros músicos tiravam sarro da cara da gente, com nossa “mania”. Um deles me disse uma vez: “Eu me admiro que você se dedica pra caramba prum  troço que ninguém tá nem aí...eu não entendo, o que vocês querem com isso?”

Na época dei uma resposta épica e romântica...eu era ingênuo demais...

Tocamos, é verdade, na USP, no Xirê dos Orixás, em 1989. Tocamos um pouco com teatro, dança Mas na mpb, nos trabalhos ( as tais “gigs” ),se você tentava tocar um ritmo do candomblé brasileiro, em qualquer situação, era sempre cortado. Dos grandes ogãs alabés, mestres do tambor e da tradição, quase nenhum era músico. Pelo menos naquela época aqui em São Paulo, pelo menos os que conheci, com honrosas e raríssimas exceções. Eram pedreiros, motoristas, o que fosse. E os músicos ignoravam os ritmos do atabaque, no entanto tão próximos dos cubanos. Os mesmos músicos que veneravam a “música brasileira” e o “swing” como instituições fundamentais... O Paraná era um herói do atabaque, um mestre, mas mesmo para ele era difícil se impor.

Existia não só um preconceito contra a música dos terreiros como também um estereótipo do percussionista, que devia tocar samba, fazer firulas no pandeiro, sorrir...não é talvez coincidência o Mussum, que era um baita músico, virtuose do reco reco e do surdo, só ser conhecido como humorista. O percussionista era um submúsico. Até na carteira da nefasta ordem dos músicos tinha uma categoria : “ritmista”, que era o “batuqueiro”, como pejorativamente os “músicos” se dirigiam a nós.




Os bateristas sim, que tocavam um instrumento americano e liam partitura, eram músicos. Os sambistas eram batuqueiros E o pessoal do atabaque simplesmente não existia.

Se você ouvir, tirando os Tincoãs, os discos religiosos e um ou outro grupo quase desconhecido,                                                          não tem quase nada de candomblé na mpb até o Caetano e o Gil introduzirem na “mainstream”.

Tinha aquela história, que na frente era o choro, na cozinha o samba e lá no fundo do quintal o candomblé.

Nas letras até podia aparecer a menção aos orixás e tal, mas na música não. O grande Martinho da Vila tinha atabaque naquelas gravações clássicas dele, mas no samba em geral não tinha atabaque.

Foi só depois, com o ijexá e com o aguerê na música baiana que o candomblé veio pra frente.

Hoje tem candomblé na mpb. Mesmo que o racismo cultural tente ainda menosprezar.

Mas pra gente era tarde demais. O trio já tinha se desfeito, o sonho acabado. O Paraná hoje mora na Alemanha, o Guello é um dos maiores percussionistas do Brasil, eu voltei pra Vila, nem toco mais, fico aqui enfurnado escrevendo. Atrás de mim, encostada na parede, tem ainda uma tumbadora.

Aguardo o dia em que a ciência do ritmo que nos veio da África, que gerou não só o samba mas dezenas de ritmos, que gerou o aguerê que é o samba reggae e o congo de ouro que virou funk, será reconhecida como tal, como conhecimento altamente erudito do corpo, do ritmo e da comunicação entre os mundos, como grande arte brasileira que funda suas raízes na tradição e na sacralidade ancestrais e que deve por isso ser tratada com profunda reverência e gratidão.

Esse vai ser o dia do atabaque.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Maria Luiza, tem 17 anos, nasceu na cidade de São Paulo, Jardim Ângela zona sul.

HINO NACIONAL

Esse é o hino que deveriam colocar atrás dos livros de história:


Ouviram do Ipiranga as margens plácidas

Um povo chicoteado a todo instante

E o sol sem liberdade, em raio fúlgidos

Brilhou no céu da África naquele instante 


E o senhor dessa desigualdade

Cortou o braço do negro mais forte

Em teus seios sem liberdade

Desafiaram Dandara, até a morte


Ó pátria África

Escravizada

Sofre, sofre 


Brasil, no tronco ainda me sinto 

De ódio e sangue a terra pedesce

Se em teu estranho céu, cinza e ríspido

A imagem de um navio negreiro negreiro aparece


Mestre ensinou capoeira 

Zumbi resistiu com um Quilombo

E em meu D.N.A tem essa grandeza


Terra ensanguentada 

Entre outras mil 

És tu Brasil

Escravizou a África 


Índios morreram nesse solo hostil 

Pátria escravizada,

Brasil!


Maria Luiza @poeta_malu



HINO NACIONAL

Esse é o hino que deveriam colocar atrás dos livros de história:


Ouviram do Ipiranga as margens plácidas

Um povo chicoteado a todo instante

E o sol sem liberdade, em raio fúlgidos

Brilhou no céu da África naquele instante 


E o senhor dessa desigualdade

Cortou o braço do negro mais forte

Em teus seios sem liberdade

Desafiaram Dandara, até a morte


Ó pátria África

Escravizada

Sofre, sofre 


Brasil, no tronco ainda me sinto 

De ódio e sangue a terra pedesce

Se em teu estranho céu, cinza e ríspido

A imagem de um navio negreiro negreiro aparece


Mestre ensinou capoeira 

Zumbi resistiu com um Quilombo

E em meu D.N.A tem essa grandeza


Terra ensanguentada 

Entre outras mil 

És tu Brasil

Escravizou a África 


Índios morreram nesse solo hostil 

Pátria escravizada,

Brasil!


Maria Luiza @poeta_malu


Maria Luiza, tem 17 anos, nasceu na cidade de São Paulo, Jardim Ângela zona sul. Menina isolada, começou a escrever Poesia em um momento difícil aos 9 anos e encontrou nas palavras um abrigo seguro. Atualmente faz parte do núcleo de jovens políticos, organização de jovens do extremo sul afim de concientizar moradores sobre assuntos necessários. Começou a participar de slams com 16 anos, hoje é poeta, slamer, palestrante, articuladora de projetos e faz mediações em oficinas de poesia.

marialuizalucas336@gmail.com

quarta-feira, 17 de junho de 2020

LEVANTE MULHER 3

Naruna Costa em Buraquinhos na tela da Irmandade.


Ela fez muita coisa nesses anos que nós a acompanhamos. Na descida do morro lado esquerdo do Taboão para a beira do córrego Pirajuçara quase nunca andou de salto alto e fino. Seus pés são pranchas de deslizar em águas que transbordam. Mas, seus veículos de deslocamento em espaço inóspitos são sua voz, braços e mãos. Inteligência aguda e seca. Com tais armas, ela entra e sai bem de qualquer sinuca. E quando não podemos apalpá-la nas magrezas, basta ler na tela suas pálpebras alquebradas e costelas sob a pele fina e preta. Ela é muita treta. E escureceu por dentro na medida em que foi tisnada e denegrida na rua e na beira do córrego que deságua na USP.


Afoíndia digna arriba toda nossa larga família cantando e semeia versos, sustentando vergas. Não é de carregar cruzes que lhes são impostas, mas tem lá seus sacrifícios suspensos e diminutos pecados. Agora na tela da tv e smartphones, não mais sem fala. Tá tudo lá: olhos, boca, tetas, testa proeminente e lisa, nariz, cabelo, imagens de couro corpóreo. E textos cheios de buraquinhos. Irmandade Netflix. Embora sejam as mesmas narrativas de sempre, nós precisamos vender nosso trabalho para os homens brancos dos bancos e das empresas para entreter. Nesse ponto não cabe ilusão, nem tolices de empreendedorismo sem recurso financeiro. Nosso trabalho é nossa criatividade e nossa inteligência limpa. Tem por esse fato novo, algum deslocamento ascendente no sentido da autonomia. Ou de subir para alcançar o poder da escolha. Saber dizer sim, saber porque dizer não. Não é representatividade porque é pouco. Porém, deve haver algum propósito nessa nova etapa, onde a mídia branca já não pode mais nos enredar nas suas teias de estereótipos e estigmas eternos. Tomara seja um bom agouro.
























No roteiro não há que novidade.. Nós nem queremos saber disso. Tempo há que tento puxar na memória em que momento a estética de Glauber foi substituída pela de Padilha. Talvez tenha havido uma passagem em Hector Babenco. Mas realmente tenho dúvida. Glauber e Babenco ainda nos deixavam entrever alguma dialética, algum afeto, alguma crítica as elites e antes que fossemos configurados definitivamente como os inimigos naturais. Gente perigosa, maus e violentos por Padilhas e Afins. Nós os “Inimigos de porta adentro”. Cujas vidas quase nada valem quando estamos fora do nosso distrito de trabalho, sem salvo conduto.
Naruna Costa é atriz de teatro, televisão e cinema. Composição musical, cantorias e estripulias dramatúrgicas.










 Mas há uma coisa bacana no triângulo dos 3 irmãos. Há uma estranheza na adequação do corpo, da postura do Seu Jorge...na paisagem social do filme... São Paulo ...anos 1990....acho realmente louvável essa tentativa de contar uma história de gente pobre e preta...pode ser pura implicância...de homem velho e rabugento que acha que os brancos nos roubam até nossas narrativas..... Mas vamos falar de você e sua interpretação fora da sua caixa preta e segura. Você mais contida... Com a voz assentada na primeira pessoa do singular....com registro médio. Muito charmosa naquela roupa. Até nas cenas em que dirigiu e estacionou em cima da guia.... Uma fotografia que favoreceu o escurecimento leve do seu tom de pele. Segura, altiva e cheia de nuances.




sábado, 13 de junho de 2020

REPRESENTAÇÕES E ESTEREOTIPIAS NEGRAS CRUZAMENTOS (IM)PROVÁVEIS ENTRE O FOLCLORE HOLANDÊS E O TEATRO PAULISTA



https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/27129


REPRESENTAÇÕES E ESTEREOTIPIAS NEGRAS CRUZAMENTOS (IM)PROVÁVEIS ENTRE O FOLCLORE HOLANDÊS E O TEATRO PAULISTA

Salomão Jovino da Silva, Patricia Schor

RESUMO


Autores: Salloma Salomão Jovino e Patricia Schor.

Resumo: Versa sobre culturas negras e a emergência de protagonismo socioculturais em torno de novas formas de ativismo negro e antirracista em São Paulo e nos Países Baixos. Levanta questões sobre permanência de regimes de representação racializada e estereotipias raciais em diferentes geografias do colonialismo. Aproxima e procura singularizar estratégias de lutas por cidadania e representatividade em diferentes quadrantes da sociedade contemporânea.  Toma o fenômeno conhecido como Blackface em duas sociedades onde se podem verificar diferentes formas de ativismo negro e busca reconstruir a historicidade do racismo antinegro como desdobramento do colonialismo e suas dinâmicas e permanências na longa duração, em dois pontos que cruzam o Atlântico.

Summary: This article focuses on urban black cultures and the emergence of novel socio-cultural practices around black anti-racist activism in São Paulo and the Netherlands. We raise questions about the resilence of racialized regimes of representation and racial stereotyping in different geographies of colonialism. We then zero in on strategies of struggles for citizenship and representation in different realms of contemporaneity. The article presents an analysis of the phenomenon known as Blackface in two societies where different forms of black activism are found. It seeks to reconstruct the historicity of anti-black racism as the unfolding of colonialism, revealing its mechanics and continuities in the long run, in two points crossing the Atlantic.

PALAVRAS-CHAVE


Negros e negras, racismos, diversidade, blackface, antirracismo, cidadania, Brasil e Holanda.







Este breve ensaio visa confrontar a construção da alteridade negra herdada dos colonialismos europeus, enfocando nas performances dos corpos negros na cultura nacional. Esta reflexão estará alicerceada em casos concretos da contemporaneidade. Tomamos como ponto de partida a reflexão pontual de Salloma Salomão Jovino da Silva no debate sobre o blackface em peça de teatro a ser encenada pelo Grupo Os Fofos. O evento deu-se a 12 de Maio de 2015 no Instituto Itaú Cultural de São Paulo, com a presença do grupo, assim como de intelectuais/ativistas negrxs. Esta reflexão serviu de convite à colocação, que faremos a seguir, de pontos comparativos com a prática do blackfacing nos Países Baixos, dada a dimensão do fenômeno naquele país e a saliência e eclosão da crítica antirracista ao mesmo nos recentes anos. Esta reflexão faz-se ainda relevante sendo que há, entre estes pontos geográficos distantes, Brasil e Países Baixos, histórias entrelaçadas banhadas no oceano Atlântico, que nos junta-separa.
Ainda, este número dedicado a Stuart Hall nos serve de licença para pensar o que o autor cunhou “regime de representação racializada”3 que também caracteriza o blackface, nesta ampla geografia da diáspora africana. O ensaio fecha no território do teatro brasileiro. Conquanto Hall tenha vivido e refletindo em uma condição e situação diferentes da nossa, guardamos com ele o fato de sermos herdeiros de sociedades coloniais e seus desdobramentos contemporâneos. No caso brasileiro tem sido extremamente difícil ao seguimento negro fazer valor o da diferença, uma vez que o discurso de identidade nacional funciona como ordenador da realidade em que, um seguimento social ao se pronunciar negro, dispara automática e imediatamente a rede discursivo-ideológica da brasilidade unívoca. O mito da brasilidade tem sido tramado e ressignificado desde o início do século XIX, mas adquiriu novos contornos na atualidade devido às crescentes demandas sociais, políticas e, sobretudo, culturais das populações indígenas e de origem africana. O evento supracitado tomou forma de resposta corporativa do Instituto Itaú Cultural de São Paulo à rejeição pública - por iniciativa de Stephanie Ribeiro via as mídias sociais - ao blackface nesta peça, primordialmente por negrxs brasileirxs. Segundo Salloma: em função desse evento, a classe artística e intelectual branca paulista foi impelida a participar dos debates sobre raça, racismo, etnia, identidade e sociedade em rede no Brasil. É importante lembrar que há uma história que precedeu e informou este evento. Em 1969, após Wilson Simonal lançar a canção “Samba do Crioulo Doido” de Sergio Porto ou Stanislaw Ponte Preta, no Rio de Janeiro, um grupo de artistas ativistas negrxs lideradxs pelo 
compositor Martinho da Vila, reagiu delicadamente. Elxs entenderem que o conteúdo sofisticado da canção construía uma imagem negativa do compositor e do sambista negro. Criaram um anti-evento chamado “Nem todo crioulo é doido”, redigiram um manifesto público, no qual refutaram toda forma de estereótipo racial antinegro, e abriram um debate quase mudo sobre este aspecto silencioso e cruel da sociedade brasileira. Grosso modo, a canção joga com a projeção imagética degradante de um compositor negro que, ao ser desafiado a compor um samba com teor histórico sobre a política nacional, enlouquece e, misturando tempos e personagens da História Oficial do Brasil, gera um samba sem sentido. A canção parodiando um enredo de escola de samba tornou-se bastante conhecida, mas o evento que o contestou não e, desde então, quando se está diante de algo que parece mal feito, mal organizado, ou de alguma ideia sem pé nem cabeça, a designação racista “samba do crioulo doido” emerge naturalmente. O fato de que a linguagem anda de mãos dadas com o racismo sistêmico e o (re)produz, é notório. Este casamento deu-se tanto nas sociedades coloniais assim como nas antigas metrópoles. Em ambas, as línguas estão permeadas pelo medo do negro, que produz termos lingüísticos associados à rejeição e ao escárnio. No artigo Ordem Branca, Egbert Alejandro Martina e Patricia Schor (2016) analisam a associação entre a cor preta e sujeira - a partir de argumento de Frantz Fanon - e, por extensão, ao termo “estrangeirx” (ou “não-nativx”) nos Países Baixos, sendo que x negrx é, invariavelmente, identificadx como sujeito/objeto estranho ao corpo (branco i.e. limpo) da nação.
Nesta gama de termos racializados, é o que está associado ao burlesco que escapa à qualificação de racista. O humor, uma eficaz ferramenta de cristalização da hegemonia através da solidificação da categoria do “normal” e portanto, aceitável ou passável, sugere, insiste, impõe a ideologia do racismo antinegro em todos os quadrantes geográficos decorridos da cultura colonial. Afinal o que é loucura endêmica dxs negrxs (“doidxs”) mestiçxs, senão sinal mais potente da degeneração, tal como pressupunham xs racialogistas? O desajuste social mental associado à raça negra, e em particular à mulher negra, havia ingressado em todos os tecidos da criação (Gonzaguinha ainda teria tematizado uma “Negra maluca desfilando nua pelas ruas de Madureira”, nos anos 1970). Os manicômios brasileiros do século XX, e xs médicxs/antropólogxs que os criaram e dirigiram, tem muito a nos dizer sobre racismo e cultura negra, por exemplo: Ulisses Pernambucano, Raimundo Nina Rodrigues, Artur Ramos e finalmente René Ribeiro, o menos refinado e mais francamente racista de todos. Remotamente Roger Bastide (1994) analisou, com brevidade, os altos índices de violência e suicídios entre os negros, assim como conferiu ênfase à religiosidade e à produção cultural e deteve-se nos estereótipos antinegros em São Paulo no segundo quartel do século XX. Ao que parece, entendeu que a forte pressão social que xs negrxs passaram a sofrer no pós-escravidão advinha, sobretudo, do fato novo. O estatuto de cidadania formal e republicana estendida axs brancxs pobres, estabeleceu um novo paradigma com o qual xs negrxs tiveram que lidar. A parcela branca da população reagiu sistematicamente para restabelecer sua condição social superior. Ou seja, o racismo antinegrono Brasil do século XX assumiu contornos tanto mais agressivos, quanto mais complexos. Quais sejam: importação massiva de mão de obra europeia, casada com discriminação negativa na contratação de negrxs e outrxs trabalhadorxs nacionais; utilização de técnicas construtivas urbanas que alijaram do mercado os trabalhadores negros altamente especializados na área da construção civil; uso de formas seletivas dissimuladas e em testes de hereditariedades eugênicas como formas de aptidão para a escolarização pública dxs filhxs dxs trabalhadorxs urbanxs; critérios eugênicos também aplicados na saúde mental e na seleção de funcionários para serviços públicos. Em alguns casos, selecionadxs tinham que comprovar que não pertenciam a ramos familiares portadores de sinais de degeneração, degeneração racial evidentemente. São os diários íntimos de Lima Barreto que nos informam que, nas vezes em que esteve internado em manicômios, respondeu a questionários onde figuravam esses quesitos de hereditariedade e degenerência. Assim, naquele novo contexto, a disputa aberta por colocação no mercado de trabalho, na espacialidade citadina e na hierarquia institucional, conduziu as elites brancas e os medianos urbanos, à criação de novas formas de exclusão, confirmadas pelos discursos e testemunhos de exclusividade, apartação e violência. As categorias raciais de outrora receberam sentidos inéditos. O termo “negro-boçal” de outrora cedeu lugar à ideia de que xs negrxs eram inaptos ao trabalho livre. A negra sensual e sexualizada do passado imediato cedeu lugar àquele das mulheres loucas, agora locus da efetivação da profilaxia do discurso médico-sanitário e médicopsiquiátrico. Os poetas e médicos-psiquiatras se especializaram emantropologia física e deslizaram rapidamente para os estudos naturalistas de cultura. Essas práticas racializantes se sofisticaram e migraram para as representações imagéticas e textuais, espetaculares e performáticas. Não sem embates, o teatro urbano abriu um campo fértil para restabelecer proeminência civilizatória da parcela branca da população. O entretenimento urbano, contudo, foi um campo do trabalho de baixo prestígio, que de imediato não interessou aos setores brancos médios. Mas quando a invocação da tecnologia da radiofonia começou a conferir visibilidade e permitir acúmulo social e financeiro axs negrxs nas artes musicais, ameaçando o domínio racial, novas barreiras se interpuseram axs artistas negrxs. Vislumbramos justamente a documentação sonora da disputa desleal que se deu no âmbito social e imaginário e que fez transformar o gênero, antes marginalizado e negro, em símbolo da cultura brasileira. O Samba se tornou também local do conflito e reafirmação da hegemonia cultural branca, como ensejou a pesquisa de Joana Lopes Acuio.4 Talvez o gênero musical não se tivesse tornado ícone da brasilidade, caso sua negritude estética fosse mantida. Uma história exemplar vela por esse conflito desencadeado no bairro de Vila Isabel na cidade do Rio de Janeiro, na qual se enfatiza a silhueta do compositor carioca branco e médico não formado Noel Rosa, em contraste com a omissão da figura do compositor negro Wilson Batista. Voltando à negra maluca e ao Samba do Crioulo Doido, não se tem conhecimento generalizado das inúmeras outras canções de compositorxs negrxs feitas nos anos posteriores e que igualmente contestam tal imagem-síntese do “crioulo doido” cunhada por Ponte Preta. Ile Aye (1974) Bahia, por exemplo, “Somos criolo doido somo bem legal, temo cabelo duro, somo breque pau”. Ou ainda Jansem Rafael (1970) Minas Gerais, em O caçador de cabeças: “Stanislaw que deus o tenha, mas este é o samba do crioulo que realmente endoidou, ao tentar entender a passada, a atual e futura conjuntura. E aderiu a um antigo costume de seus ancestrais, caçar cabeças brilhantes...”. Essa canção evoca um imaginário antropofágico associado axs negrxs e ironiza o autor do “crioulo doido”. São desconstruções como essas que passaram a disputar o imaginário brasileiro ante a persistência dos estereótipos racistas antinegrxs. Em função do poder racial aprendemos que, a um só tempo, negros e negras, devem estrategicamente esconder suas capacidades cognitivas, se quiserem sobreviver ao racismo e adular brancxs benevolentes em nome da conquista de espaço social próprio, ou da manutenção da harmonia social.
A primeira publicação de “Reflexões sobre o racismo” de Jean Paul Sartre no Brasil é justamente de dois anos antes, 1968. Sartre, em diálogo crítico com Frantz Fanon e a poesia da Negritude inaugurada por seu mentor Aimé Césaire, investe sobre a origem e natureza do antissemitismo moderno e do racismo antinegro, e dedica especial atenção ao papel das projeções de imagens estereotipadas na construção do medo e da ojeriza antissemita e antinegra no imaginário da Europa moderna, assim como à sua diferença fundamental. Ora, no caso não há escapatória nem subterfúgios, nem “passagem de linha” a que possa recorrer; um judeu, branco entre os brancos, pode negar que seja judeu, declarar-se homem entre os homens. O negro não pode negar que seja negro, ou reclamar para si esta abstrata humanidade incolor: ele é preto. Está pois encurralado na autenticidade: insultado,avassalado, reergue-se apanha a palavra “preto” que lhe atiraram qual uma pedra; reivindica-se como negro perante o branco, na altivez.5 O pós-guerra colocou setores específicos da intelectualidade ocidental frente-a-frente aos fenômenos do racismo e do antissemitismo. Em simultâneo, neste mesmo pós-guerra, impérios europeus mantiveram investimentos simbólicos e materiais na luta armada pela manutenção de “seus” territórios coloniais. Esta cisão entre o verdadeiramente humano, e o não-humano (nonbeing, segundo Frantz Fanon em Black skin, white masks) se mantém na contemporaneidade, em ambas as margens do Atlântico. As figuras do negro e da negra construídas na forma do grotesco, da caricatura, do ridículo, da estereotipia, da jocosidade, com estigmas associados à raça/cor negras podem ser encontradas em um longo espectro temporal da produção dramatúrgica, teatral, cinematográfica e televisiva brasileira e mundial. Essa teatralidade racista e depreciativa tem como fonte a experiência global do tráfico negreiro e a escravidão, suas modulações criativas se desdobram efusivamente após o século XVIII, até ontem e hoje. Segundo Elikia M´Bokolo (2003), na história cultural da Inglaterra e França, há registros fragmentários da encenação de Oroonoko, um príncipe africano. Trata-se de Oroonoko, or the Royal Slave, peça teatral de autoria da britânica Apha Behn, composta na segunda metade século XVII, e muito popular ao longo do século XVIII, na qual atores brancos eram pintados de preto, para protagonizar a saga do homem africano tentando escapar a escravidão (na colônia de hegemonia britânica, e mais tarde holandesa, do Suriname). Não é possível afirmar que esta prática seja a fonte precisa do fenômeno que se alargou Europa ocidental e posteriormente pode ser visualizado em diferentes espaços da dominação colonial, inclusive, nos EUA e Brasil. Não queremos localizar uma matriz unívoca para um fenômeno racista global, mas é importante considerar que um dos aspectos recorrentes e estruturais da dominação colonial e pós-colonial, tem sido a inserção de conteúdos desumanizadores na representação das populações subsumidas. Stuart Hall (1997) elucida que tais estereótipos reduzem x negrx ao que a hegemonia branca considerava sua essência, um sujeito determinado pela Natureza, desprovido de Cultura. Assim surgem tipos ritualizados dx negrx a partir de sua degradação, idealização, sentimentalização ou infantilização. A cada tipo corresponde um leque de características daquelx que deve – porque é perigosx - e pode ser escravizadx/subalternizadx– porque é “naturalmente” servil. O “corpo racializado” serve de prova cabal daquela natureza animal (244). É em São Paulo, onde o capitalismo brasileiro se mostrou mais inserido e global, que xs negrxs sofreram também uma segunda diáspora com o tráfico interno de escravizadxs e ainda um terceiro deslocamento interno, com fluxo reduzido, não cessou desde a década de 1940. Aqui onde o poder, a renda e o prestígio mostram sinais de exuberância, pompa e gala, que os contrastes sociais assumem imagens e tonalidades de dramaticidade, revolta calada e o negro drama. O grupo de música negra Racionais define o negro drama (2002): “Eu visto preto. Por dentro e por fora. Guerreiro, Poeta entre o tempo e a memória. Ora, Nessa história, Vejo o dólar. E vários quilates. Falo pro mano. Que não morra, e também não mate”.
Percepção das desigualdades e constante frustração mediante a concentração de poder, prestígio, mando e recursos materiais prioritariamente entre xs brancxs de elite, tem produzido na juventude negra um outro tipo de atitude que não apenas conformismo e medo. A cultura artística tem sido um campo explorado pelxs ativistas negrxs em São Paulo desde o século XIX. Por volta de 1870, o ex-escravizado Luiz Gama mobilizava atores, músicos e declamadores negros, para realização de performances públicas, cujo objetivo era sensibilizar a opinião pública para a pauta da abolição da escravatura. Também a Frente Negra Brasileira, organização política da década de 1930, lançou mão de saraus, bailes e bandas musicais como forma de sociabilidade na organização da luta contra o racismo em São Paulo. Aqui se trata de uma outra sensibilidade para além da organização política. Entender o lugar que as representações ocupam na manutenção do racismo antinegro. Combater as formas negativas de representação significa levar o embate antirracista para um campo onde predominam as sutilezas e complexidades. Esse lugar marcado por subjetividades e formas aparentemente inofensivas de discriminação, tem sido explorado pela psicologia social do racismo, que nos informa sobre o desdobramento do sofrimento psíquico em adoecimento mental e físico. Estas caricaturas e representações racializadas foram grandemente difundidas no século XIX e, apesar de contestação recorrente, persistiram de forma mais ou menos ostensiva até meados do século XX. São notórias tais representações populares estereotipadas no Reino Unido (Golliwog) e nos Estados Unidos (Sambo), porém elas também se encontram para além do espaço anglófono, como por exemplo, na Alemanha (Sarotti-Mohr), e nos Países Baixos (Zwarte Piet).6 O Zwarte Piet (Pedro Preto) é comumente “encenado” por umx brancx pintadx de preto, com forte batom vermelho nos lábios, uma peruca de cabelos negros crespos, brincos “de mouro” e vestimenta de um serviçal. Na época da emergência desta caricatura nos Países Baixos (século XIX), a escravidão ainda não tinha sido abolida nas colônias holandesas, e x “escravx domésticx” era um importante símbolo de status no império. A figura do Zwarte Piet mudou desde então, de um malvado punidor de crianças mal comportadas a um alegre entertainer, amigo das crianças. No século XX esta figura foi recorrentemente contestada por negrxs holandesxs, porém se manteve firme e forte, para se tornar o elemento medular do folclore holandês até os nossos dias. Como David Goldberg (2014) afirmou, uma das particularidades mais salientes do racismo nos Países Baixos é que lá o mascote nacional é um blackface. Esta caricatura protagoniza a maior festa nacional. Ao lado e além da tradicional festa natalina como a conhecemos no Brasil, nos Países Baixos há outra festa correlata, na qual o ancião branco Sinterklaas (São Nicolau) chega ao país após longa viagem de navio com partida na Espanha, trazendo presentes para as crianças, que serão distribuídos por seus “ajudantes negros”, os Zwarte Piet. Esta é a grande festa pela qual as crianças holandesas aguardam o ano inteiro, ansiosamente. Ao atracar nos portos das cidades holandesas, Sinterklaas desfila pelas cidades, montado a cavalo, com seu séquito de centenas de Pedros Pretos, que o acompanham a pé, alegres, atrapalhados, engraçados, dóceis e servis. Sinte Pedros permanecem em terra firme holandesa entre Novembro e Dezembro, quando retornam à Espanha, após semanas nas quais o país se empanturra com o ritual de racialização. Durante este período os Pedros Pretos se encontram nas vitrines das lojas, nas escolas, em programas diários de televisão, são tema de música, forma de doces e chocolates, enfim, dominam o espaço público e adentram o espaço privado – primordialmente o infantil, mas não só. Apesar e, por causa de, já canonizado como folclore nacional, o Zwarte Piet tornou-se o catalisador da militância antiracismo nos Países Baixos nos últimos anos. Esta performance antinegra tem sido alvo de sólida crítica e militância do ativismo antirracista – com amplo uso das mídias sociais - que aponta para o silenciado passado escravocrata do imperialismo holandês, e a continuidade de percepções e práticas racistas na contemporaneidade holandesa. No Brasil, onde representações caricaturais racializadas abundam, das mais sutis às mais grotescas, um fenômeno correlato são os Blocos “Nêga Maluca” – além de tema musical como abordamos acima, esta representação ganha corpo também. Para além do Carnaval, a sátira da pedinte negra está presente em programas televisivos, a exemplo de quadros interpretados pelo ator Rodrigo Santana em Zorra Total. No interior da normatividade hegemônica racializada, tais formas de representação quase nunca causam espanto, porém já não passam incólumes. Evidente que x negrx-forma, negrx folclore, negrx arcaicx da cultura popular, sugere a existência de um manancial aparentemente inerte de conteúdos simbólicos, que muitas vezes tem sido explorado pelo teatro nacional, o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna pode ser um exemplo clássico. Em função de um limite cognitivo gerado pelo enraizado racismo que contamina os juízos (não apenas de brancxs), algumxs estudiosxs do teatro creem firmemente que essx negrx-forma é vazix, por isso pode ser preenchidx com os imaginários de brancura supra-humana, pretensamente incolor e universal. Embora saibamos que a cor e o sexo que subjaz à ideia de homem universal, seja masculina e branca. Em tese, a forma máscara do teatro paulista recente, pintada, ou ensejada dx negro-negra, não está diretamente ligada com os seres humanos negros, os descendentes de africanxs, ou aos seres humanos de pele escura no Brasil. Disso, nossos doutos professores de História do Teatro e outras artes são primorosos defensores, e não conseguem conceber teatro e dramaturgia que transversa a fonte grega. Nem sequer ousariam se aproximar de uma “História mundial do teatro” de Margot Berthold (2014), conquanto não perca a perspectiva evolucionista e mantenha a espinha dorsal eurocêntrica, ao menos consegue extrapolar a geografia ocidental. A mesma fantasia de superioridade cultural, que é construção ideológica, circula na Europa. A recente produção holandesa da obra Shakespeareana “A Tempestade” (2014) pelo prestigioso grupo Het Nationale Toneel (O Teatro Nacional), carrega a emblemática personagem Caliban (“um escravo selvagem e deformado”)7 , encenada por um ator branco em dreadlocks, corpo e cara pintados com talco branco, reforçando ainda a falsa premissa da simetria entre o sujeito branco e o negro, como se todas as máscaras tivessem o mesmo valor simbólico na escala do H/humano. Assim apaga-se, em um só ato, a associação escravidão e raça negra, em voga ainda no início do século XVII, quando Shakespeare escreveu a peça, e nos dias de hoje. Sistematicamente, estx negrx-forma é preenchidx em um movimento pretensamente a-político e pós-racial. A estereotipia, dir-se-ia, não é tão importante quanto a morte sistemática de jovens negrxs nas periferias dos grandes centros urbanos onde a diáspora africana se encontra, porém a comparação é falsa. Não há como dissociar a violência cognitiva da física. Os índices de assassinatos deste contingente populacional no Brasil são assustadores. Segundo o Mapa da Violência 2014, “do total de 56.337 homicídios ocorridos no Brasil em 2012, 57,6% tiveram com vítimas jovens com idade entre 15 a 29 anos. Destes, 93,3% eram homens e 77%, negros”8 . Ao se produzir ou perpetuar a desumanização dx negrx brasileirx, potencializa-se e se naturaliza o genocídio. A morte simbólica dxs negrxs no teatro coincide com sua morte física e social pelas forças de segurança pública e privada, efetivadas por milícias e grupos de extermínio. Ainda no Brasil, um teatro sobre negrxs sem negrxs ou com apenas um negrx, também se pode ver na recente produção de Antunes Filho, tematizando Lima Barreto. Desde 1905, com publicação de “Os negros” de Lima Barreto, se pressupõe uma escrita para corpos e mentes negras em cena. Desde lá há uma escrita e uma cena teatral brasileira e negra, invisibilizada por uma história-memória europeizante, de uma Europa supostamente unicamente branca. No entanto, temos uma criação dramatúrgica e teatral negra ao longo do século XX e ainda hoje há uma produção vigorosa, embora de pouca proeminência midiática. Pistas a seguir são os escritos sobre Thereza Santos, Eduardo Oliveira, Raimundo Souza Dantas, Guerreiro Ramos ou Abdias do Nascimento. Recentemente pode-se também acessar o site da Revista Menelik 2 Ato, ler os livros “(Em) Goma- dos pés a cabeça, os quintais que sou” das Capulanas, Cia de Artes Negras. Ainda se pode pesquisar temas correlatos na recém publicada revista do grupo teatral negro Crespos, que seja, “Em Legítima Defesa”. Ainda, a saber as produções teatrais protagonizadas por grupos como Coletivo Negro, Quizumba, Cia dos Comuns, Bando de Teatro Olodum, entre outros. Estes são indícios de que a brancura do teatro brasileiro está com os dias contados. Entretanto a classe artística paulista, acomodada em sua condição de exclusividade, como elite intelectual branca e brancocêntrica estará disposta a fazer contato? Quando a intelectualidade brasileira terá a coragem para mergulhar verdadeiramente nesse campo tão delicado e, ao mesmo tempo, tão violento, da construção cultural da nossa sociedade? Há que se ter audácia para confrontar seus privilégios construídos histórica e diariamente; há que se ter humildade e disposição para se abdicar deste lugar referencial. Refletindo sobre as máscaras, a dos Fofos em particular, em termos teatrais, podemos definir tais representações negativas dxs negrxs como tradição? Em sendo uma tradição, deve por isso ser perpetuada? Enquanto escrevemos este ensaio, na outra margem atlântica, o Comitê para a Eliminação de Discriminação Racial das Nações Unidas, afirmou no âmbito de sua avaliação sobre os Países Baixos, que a persistência do blackface holandês não se justifica simplesmente por ser tradição, já que é uma caricatura racializada.
Ao se manter tais tradições e alimentarmos formas de representação racializadas, estamos dispostos a admitir que, efetivamente, somos sociedades racistas? Isso, ao contrário do que sustentam, no caso brasileiro, Ali Kamel (2006) e Demétrio Magnolli (2009), e seus adeptos? A mesma mitologia do não-racismo está arraigada tanto na cultura popular como acadêmica holandesa. Esta ignorância convicta e pretensa inocência são sintomáticas da hegemonia branca. No Brasil, um discurso recorrente destinado a manter essa dominação intacta, tende a acusar ativistas negrxs de estarem constituindo um tribunal racial via mídias sociais. Esta evocação de uma mobilização negra fora de controle atualiza um temor social surgido no contexto da escravidão racial.9 A onda negra virá em forma de tribunal racial? Algumas dessas perguntas devem ser feitas à classe intelectual e artística nacional, logicamente sem esquecer o quanto esta é, ela mesma, hegemonicamente branca. Qual lugar o racismo antinegro ocupa na produção cultural contemporânea? Até quando a classe artística e intelectual dominante, por vezes não branca no tom de pele, mas na forma de conceber arte e cultura e também o mundo, vai reagir de forma infantilizada e se fechar sobre si mesma? Uma vez acuada no alto do seu castelo transparente, vai gritar a plenos pulmões que sua liberdade criativa está em risco, que a rua e a internet agora estão cheias de negonas e negões raivosos querendo seu escalpo ou seu lugar na cena? Há aqui uma reprodução daquela mesma fobia antinegra que transborda na linguagem, emerge na máscara, e expulsa a bala da arma.
Ou será essa classe, na contramão da herança histórica, capaz de abrir um debate franco sobre a ausência de negros e negras nos espaços de criação, produção, veiculação e gestão de arte e cultura? Admitirá que alguns dos seus pressupostos estéticos contém equívocos, distorções e maniqueísmo raciais? Os gestores de cultura e a classe artística irão se abrir para entender o fenômeno novo do ativismo negro em rede e seu impacto sobre as formas de propagação das representações racistas antinegras? Será que isso, como foi alegado, é “o mesmo que censura”, ou seja, uma experiência política de controle de informação exercido por um órgão do poder estatal, tal como foi nas Ditaduras? Quando setores sociais tradicionalmente excluídos utilizam as formas de comunicação e pressão que estão ao seu alcance para denunciar ou coibir algo “normal”, porém moralmente condenável, estão efetivamente censurando? Miriam Garcia (1993) no desvelador e inaugural “O negro no teatro brasileiro”, nos informa como personagens negras foram entrando (sem estar) na produção teatral brasileira, desde as obras de Joaquim Manoel de Macedo e Martins Pena. Onde negrxs apenas eram sombras, figuras sem nome de escravizadxs que sequer recebem uma rubrica, mas tão somente menções vagas e desqualificadoras nas bocas de personagens humanxs (quer dizer, brancxs). Há, de um lado, uma história gloriosa e evolucionista do teatro universal (ocidental) que é ensinada nas escolas e universidades brasileiras. De outro lado, há uma narrativa que prima pela imagem da cultura brasileira como lugar de ausências e incapacidades, nesse caso o “Panorama do teatro brasileiro” de Sabato Magaldi (1962), é um verdadeiro testemunho de complexo de inferioridade. Uma escritarebuscada e melancólica tipicamente presente em certas produções e memórias daquele brasileiro branco, que alimenta a percepção de si como sendo “europeu no exílio”. Atualmente em São Paulo, até mesmo dramaturgxs negrxs situadxs nesses lugares parecem impotentes, insuficientemente eficazes na menção às criações dramatúrgicas negras e incorporação ao seu repertório, ou para trazer à escolarização artística as reflexões poucas, mas importantes sobre o tema, como por exemplo, Roger Bastide (nos anos 1970) a ideia de que há um teatro negro popular no Brasil, que pode se configurar nos dramas encenados nas festividades natalinas, como Congados, por exemplo. Talvez, no futuro, algumxs professorxs incorporem, ainda que tardiamente, ao menos um universalismo revisto como de Margot Berthold. Não causa espanto a reação emocionada de produtorxs culturais brancxs normalmente favorecidxs por uma visão distorcida de mérito, que produz e circula com apoio do mecenato público (leis de renúncia fiscal) e privado, de institutos e fundações de corporações financeiras. A normatividade social e política também se expressa no campo da produção, circulação e gestão da cultura. Parece natural a invisibilidade da população negra quando se trata de habilidades consideras exclusivas das elites. Aqui então se encontra uma mudança significativa, um sinal de novos tempos. Setores da juventude negra urbana cada vez mais escolarizada e cosmopolita, proficiente em circuitos da cultura digital e intrigada com a permanência do racismo, começam a cavoucar as camadas duras do conformismo. De outro lado, o sistema simbólico de enunciação identitária negra elaborado pelos movimentos negros nocampo da arte e da política, por vezes em ambos, nos transcursos do século XX, começa a ser reconfigurado pelas demandas de cidadania de um espectro muito mais amplo da sociedade brasileira, negra em sua grande maioria. Nesse sentido, o desconforto da elite branca paulista é apenas sintoma, prenuncio reativo e precoce, das mudanças estruturais que serão demandas, mais adiante. Até recentemente, o ativismo negro brasileiro fundamentou-se, grosso modo, na relação direta no interior dos partidos políticos e apostou na integração progressiva e gradual da população negra, por meio das instituições, na sua assimilação nas estruturas estatais e da escolarização. Funcionou como mediador entre os anseios das velhas e novas elites políticas pós-ditadura e a população negra, que a cada ano e eleição transcorrida percebe como o jogo da tradicional democracia se serve da manutenção racial da exclusividade e hegemonia das elites brancas. Obviamente há alternância de prestígio, poder e mando, mas aos descendestes de africanos as barreiras cedem um espaço aqui e logo se erguem novas discriminações acolá. Justamente porque nesse caso ao racismo antinegro, além de ser um desdobramento da cultural colonial e escravista, fez por se tornar um dos pilares estruturais das desigualdades. Parece que não há mágica capaz de fazer desaparecer o racismo antinegro, sem mudar as formas basilares que constituem a ordem dessa sociedade. Por quase meio século xs democratas negrxs no intestino dos grêmios políticos de orientação ideológica ambidestra, seguiram carregando seus anseios integracionistas para dentro das instituiçõesfragilmente democráticas, até que uma mentalidade racista reemergiu de forma desavergonhada e ameaçadora. Cremos, contudo, estarmos agora diante do que Clovis Moura (1989) em “Sociologia do negro brasileiro”, designou “dinâmica sociopolítica negra”, uma nova forma de articulação política e social que oferece um desafio para o racismo antinegro e também coloca em cheque as velhas formas do ativismo negro do século XX. Um ativismo negro descentralizado e múltiplo, que aparentemente alimenta certo descuido proposital para com as formas institucionalizadas de agir e pensar, não estando atrelado às fundações, governos, ONGs ou Partidos Políticos. Suas lideranças fazem ampla utilização das ferramentas digitais e, em sua maioria, parecem ter formação escolar formal. Seus discursos evidenciam acessos a diversas fontes enunciadoras de pertencimento, seja religiosidades ou artes, sejam fontes oriundas dos EUA, África, Europa, Salvador ou São Luis do Maranhão. Nos Países Baixos, simultaneamente, e de maneira correlata – digital e face-a-face, inovadora e fiel ao arquivo anticolonial e antirracista global, desobediente da institucionalidade - a militância negra está instituindo novos modos de afrontar a racialização da estereotipia antinegra, tirando máscaras, desvendando a violência cognitiva e física, com altivez, não docilmente.


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SILVA, S. J. da. Polifonia do protesto negro: Musicalidades negras no Brasil, século XX. Dissertação de Mestrado em História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2000. 


Notas * Possui graduação (1997), Mestrado (2000) e Doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005) com estágio no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Atualmente tem contrato de trabalho por tempo indeterminado da Fundação Santo André e é Consultor da Secretaria de Educação do Município de São Paulo. E-mail: sallomasallomao@gmail.com ** Possui graduação na Escola de Administração de Empresas de São Paulo - Fundação Getúlio Vargas (1992), Mestrado no International Institute of Social Studies - Erasmus University Rotterdam (1996) e é doutoranda no Departamento de Humanas - Utrecht University, tendo sido pesquisadora associada ao Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa (grupo Deslocalizar a Europa). Trabalhou como Encarregada de Programas na África Lusófona, na Novib – Oxfam Netherlands. E-mail: p.schor@uu.nl 1 FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 108. 2 WALCOTT, R. The problem of the Human: Black ontologies and "the coloniality of our being". In: BROECK, S.; JUNKER, C. (Orgs.) Postcolonialtity - Decoloniality - Black Critique: Joints and Fissures. Frankfurt e Nova Iorque: Campus Verlag, 2014. p. 93.
3 HALL, S. Representation: cultural representations and signifying practices. Londres, 1997. p. 245. 4 ACUIO, J. L. Wilson Batista: relações na cidade e jeitos de fazer samba. Dissertação de Mestrado em História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012. 5 SARTRE, J. P. Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968. p. 108. 6 PIETERSE, J. N. White on black: images of Africa and blacks in western popular culture. New Haven e Londres: Yale University Press, 1992. 7 SHAKESPEARE, W. The Tempest. Londres: Penguin Books, 1995. p. 23. 8 PUFF, J. 'Genocídio' de jovens negros é alvo de nova campanha da Anistia no Brasil. BBC Brasil, 09/11/2014. 9 AZEVEDO, C. M. M. Onda Negra, Medo Branco: O Negro no Imaginário das Elites do Século XXI. São Paulo: Annablume, 2004.
Projeto História, São Paulo, n. 56, pp. 69-91, Mai.-Ago. 2016.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Jair Guilherme Refaz os caminhos da diáspora reversa.


Jair Guilherme Filho, São Paulo, 1963.
Artista visual e professor de arte. Mestre em Estética e História da arte pela USP.
Desenvolve pesquisas em arte africana, antropologia visual, arte barroca, fotografia e técnicas de desenho, pintura e modelagem em cerâmica no Balaio Ateliê situado em sua própria residência na periferia da zona sul de São Paulo. Acompanha as manifestações artísticas, sociais e culturais que acontecem nesse território e colabora para fortalecer as práticas antirracistas e combater aquela que são antidemocráticas na atualidade.

TINTA ACRÍLICA SOBRE TELA 2017 E 2018
100 X 150 CM
ACERVO SAMBA DO MONTE

IBEJI

EWA


IEMANJÁ


XANGO

OBÁ

OGUN

OSSAIN

OXALÁ

OXOSSI

OXUMARÉ

OXUM


NÃNÀ


EXÚ


Omolu. Jair Guilherme Filho. SP . A questão a ser colocada é como resinigficar com a devida atenção  e relevância os vários conteúdos trazidos dos mananciais civilizatórios, introduzidos por pessoas africanas no Brasil? Como fugir as convenções e clichês de negritude difundidos pela indústria do entretenimento nos últimos 80 anos? Como dar relevâncias e conceitos estético-filosóficos tornado menos importante, a partir de uma hierarquia de matriz eurocêntrica?
Jair Guilherme tem acesso a vários conteúdos das formas africanas de expressão plástica. Ascendeu de uma perspectiva escolar e eurocêntrica para uma quebra radical dos paradigmas nos quais foi formado. Recomeçou do zero e ainda assim tem tido tempo e energia para empreender praticas inovadoras não só no sue seu trabalho, como estender suas descobertas, como pratica educativa aos seus alunos/as da rede publica de educação da Zona Sul da Capital Paulista.  Essa condição assumida de intelectual orgânico e engajado, afro-diasporicamente posicionado, tal como sugerido por Stuart Hall em Da Diáspora. 
Uma arte negra é antes de qualquer coisa, fundamentada filosoficamente em uma percepção insurgente e insubmissa de criatividade. Não foi por acaso que artistas africanos e negros se aproximaram dos modernismos, sem ser plenamente absorvidos por ele. O modernismo, artisticamente situado a partir da Europa e EUA é ainda uma ruptura ensejada, mas no interior da própria expansão ocidental.
As filosofias religiosas africanas reconfiguradas nos quilombos e senzalas por africanos/as que professavam diferentes cosmovisões permitiu que recebêssemos potes arranhados, furados, quebrados, mas as recombinações dos cacos, qual seja, interpretações dos signos, provérbios, células rítmicas, cânticos, orações, invocações, instrumentos musicais, corpos e  objetos sacros têm nos levado a compreensões sofisticas e complexas, tão complexas quanto as próprias civilizações africanas, antes que fossem tocadas pelo colonialismo.
Então, visitar estes materiais construídos pelos espíritos originários e colocar em estado de alerta nossa capacidade de invenção de novos mundos. Contudo ao fazermos isso, também acendemos a ira do poder.
Jair trabalha com diversos materiais e técnicas: Pintura, colagem, escultura em madeira e modelagem me cerâmica. Com suas produções já participou de festival de Artes no Marrocos em uma primeira viagem ao continente africano.
Sua pesquisa passou nos últimos tempos por diferentes conteúdos advindos da museologia africana no Brasil, como os acervos do Museu Afro Brasil, MaSP e MAE-USP. Sendo sua preocupação quase que constantemente voltada as possibilidade de adequação de processos de autonomia criativa, para alunos/as do ensino básico público.

Nesse caso retornar ao aos velhos símbolos largamente conhecidos do candomblé de matriz Iorubá e lixar a superfície para obter novos contornos, relevos e cromatismos nos parece muito válido. Não é a mesma coisa já apostadas por prosélitos dessa ou daquela casa, nem é a velha ideia construídas por Raymundo Nina Rodrigues da existência de uma hierarquia civilizatória entre nagôs e bantus.               
Jaír merece nosso apreço,  nosso aplauso, nosso reconhecimento coletivo por tudo que já fez e faz pelas artes negras e da quebrada. Por mostrar um caminho de investigação constante, uma busca pela beleza de inspiração advindas dos complexos culturais dos quais somos herdeiros e sobretudo manter os pés sujos da lama da beira do rio Mboy.