FOTOGRAFIAS DE JOÃO CLAUDIO DE SENA; MESA DA FELIZ E CIA SANSACROMA
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2016-
Reflexões assistemáticas sobre os corpos negros nas culturas dançantes
brasileiras.
O
sujeito emocionado e o objeto emocionante estão unidos numa síntese
indissolúvel. A emoção é uma certa maneira de apreender o mundo. Jean Paul
Sartre
O
corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para o ser vivo, juntar-se
a um meio definido, confundir-se com certos objetos e empenhar-se continuamente
neles.” Merleau Ponty.
Este
texto é uma tentativa de sistematização de meus encontros com dançarinxs profissionais
que moram e trabalham em São Paulo. É também resultado de leituras de
bibliografia especifica sobre o tema, análise de catálogos de eventos e
vídeo-documentários sobre práticas de dança. Trata-se da observação crítica,
mas sem matiz etnográfica, de grupos negros de dança, que desde os anos 1980
acompanho em sua habitação ou simples passagem por São Paulo. Por uma mania
aprendida na escola, tento refletir sobre, o que posso definir provisoriamente
como: História de repertórios gestuais e coreográficos de matriz africana no
Brasil.
Não
sou dançarino, mas tenho a expressão dançante como parte da minha vida, desde
que comecei a ser socializado fora do meu grupo familiar. Dancei as primeiras
vezes na infância, em festas familiares e comunitárias na periferia de São
Paulo. Canções afro-brasileiras de Martinho da Vila, Originais do Samba e
Aparecida e, cantigas estadunidenses de Stive Wonder, Bee Gees e Ray Charles
transitam na minha memória corporal e auditiva deste então. Nessa época, nossos
heróis dançantes eram também grandes bailarinos das quebradas do Parque Santo
Antonio: Dona Marlene e seu companheiro Tisnau e sua filha Bete, namorada do
Neguinho do Samba. Esses dois casais paravam qualquer festa onde estivessem.
Dançavam muito acima da média dos demais corpos negros, gêneros conhecidos
naquela época como: Gafieira, Samba-Soul, Rasqueado, Samba e Sambarock.
Nos
anos 1980 durante minha passagem pela Banda Tribbu, experimentei alguns gestos
apreendidos nos “bailinhos de fundo de quintal” (festas familiares que reuniam
dezenas de jovens do bairro, que dançavam ao som de sistemas eletrônicos de
sons, comandados por um Dj. Por vezes eram também realizados em sedes das
Sociedades Amigos de Bairro, com cobrança de ingresso) e usei aprendizagens
periféricas e escolares de teatro de forma intencional para enriquecer minha
performance. Nos finais da década de
1980 e início dos anos 1990, de maneira bastante desorganizada, frequentei
aulas de afro-dança e capoeira.
Luciane
Ramos e Debora Marçal têm sido duas amigas queridas e também profissionais da
dança, que desenvolvem trabalhos acadêmicos, formativos e práticos. Parte dessa
reflexão devo a elas. Também sou grato a Emile Sugai, Jó e Daniel Koteban, Flávia Mazal, Anninha Koteban, Firmino Pitanga, Elis Sibere Monte e
Deise Brito.
Num
dos eventos recentes da Feliz, Feira Literária da Zona Sul, Luciane indagava o
público presente sobre porque a gente dança? Traduzo para: Porque os humanos
dançam? Porque xs negrxs brasileirxs dançam?
Refletimos sobre a persistência do gosto pela dança entre populações negras, ao mesmo tempo em que
há quantidades desumanas de corpos negros descartáveis (aprisionados,
abandonados ou abatidos ainda bem jovens nas ruas das grandes cidades).
Porque
então a gente dança por gosto e dança profissionalmente?
Os
corpos de bailados, ou companhias tradicionais de dança, muitas vezes têm
nenhum e em geral têm poucos, bailarinxs negrxs. Por razões simples, a dança profissionalizada
também pertence à reserva racial branca. Dito de outra forma, a exclusividade
social e cultural, originaria da exclusividade de poder, prestigio e mando, ou da
hegemonia branca, se reproduz também no âmbito da dança, como atividade
profissional. Mas não como campo expressivo.
As
histórias de vida e profissionalização de bailarinxs escolares negrxs no Brasil
são, em geral, marcadas por quedas, negações, preterimento e desgosto. Mas,
isso não é exclusivo da dança, mas de qualquer outra área profissional
racialmente exclusiva ou de elite. Contudo, algumas também são narrativas de
reversão e encontro com as origens africanas como forma de emancipação estética
e de imaginário. As mais incríveis e conhecidas nesse campo são de Mercedes
Batista e Ismael Ivo.
Para
falar sobre danças negras contemporâneas não seria necessário
escarafunchar as longas histórias dos
corpos negros desde a expansão do ocidente. Não seria necessário lembrar como os
operadores do capitalismo mercantil tentaram transformar nossos ancestrais
africanos, de corpos sequestrados e vendidos, em corpos maquinas produtivas, e
depois como corpos abjetos, corpos animalescos ou de sub-humanidade. Também não
preciso lembrar os corpos irreversivelmente racializados pela pseudo-ciência
das raças, a Eugenia.
Mas
isso não é possível justamente por quê? Porque ao refletirmos sobre corpos
negros dançantes não é possível apartamos para o canto da tela, outros tantos
corpos negros sendo abatidos em caçadas espetaculares na TV. Talvez, porque a
dança profissional ou de lazer, urbanas ou tradicionais sejam, justamente as
expressões máximas da não aceitação da desumanização recorrente. Quando nossos
corpos dançam, celebramos nossa existência e frágil presença num mundo, que o
tempo todo teima em nos negar.
Nesses
corpos negros em movimento criativo e elaboração estética, habitam tantos
outros que não têm condições de esperar a total reversão de genocídios,
encarceramentos massivos, estigmas e estereótipos, para então assim, terem
oportunidade de entrar na cena existencial de maneira digna e humanizada.
Para
conseguir ter uma expressão, devemos nos tornar especialistas em superação e
campões de autoconstrução. Algumas bailarinas que conheço, são mulheres negras que se fazeram a si mesmas e ao
mesmo tempo conseguiram manter a doçura no olhar, que em geral carregam desde a
adolescência.
Não
é simples preciosismo buscar nas memórias da infância negra, urbana e
periférica o surgimento da dança como forma de expressão. Demonstramos que embora
nossos corpos negros não estivessem lá no bombardeio de branquitude, nas figuras
televisivas branquelas e sulistas com as quais fomos educados, tínhamos algum
alento nos bailes periféricos , onde a dança se converteu na principal forma de
sociabilidade desde os anos 1970.
Fazer-se
negra ou negro, passa necessariamente por estas experiências de convivência e
trocas estéticas e políticas. Fora da
ideia essencialista de que para ser negra já se nasce, vamos modulando e mostrando
que para ser negro ou negra, constrói-se.
Nossas consciências negras são os primeiros saltos cognitivos, vem ao percebermos
que, embora aqueles corpos brancos normativos, negassem veementemente a existência dos nossos, isso não nos imobilizou em definitivo.
Refletir
um pouco sobre as efetivas culturas corporais africanas, significa que podemos
sim, buscar referências naquelas de origem Ioruba-Fon-Nagô, que tem ver com sua
pertença religiosa atual (Candomblé) de muitxs dos dançarinxs negrxs
contemporâneos. Mas também é bom lembrar
que essa não é a única, para não cair na soberba nagocêntrica (que só vê África
dentre os cultos Iorubá no Brasil), algo muito comum no meio negro ativista.
Certxs
dançarinxs profissionais ao adentrar a experiência religiosa, ou mesmo por
força do imaginário ioruba-fon, que se tem construído no âmbito das artes
negras a partir da segunda metade do século XX, por vezes perdem de vista a
questão central, a dança. Numa atitude profundamente reducionista, transformam
sua estética em um arauto do proselitismo canônico em detrimento da elaboração estética.
De
outro lado o universo da cultura dançante negra urbana em diálogo com aquelas
da tradição religiosa sofre com outro reducionismo ainda mais grave, que é a
reprodução sem crítica de uma pequena parte do conjunto de coreografias extraídas do Candomblé,
ainda na década de 1970 por Cleyde Morgan.
TEXTO EM CONSTRUÇÃO.
FOTOGRAFIAS DE JOÃO CLAUDIO DE SENA;
Fragmento de uma mensagem enviada a pesquisadora Deise Brito em fins de setembro de 2016:
Tudo movimento é dança , ou algo assim.
Fiquei pensando sobre isso. Talvez tenha sido algo relacionado ao que falei
sobre Dança tradicional e dança voltada para o mundo do espetáculo.
De fato creio que seja importante para quem pesquisa
observar não apenas o conjunto expressivo ao qual se dedica a estudar, mas também
o contexto e a cultura. Nesse sentido os estímulos e motivações para a dança
dos orixás em uma Casa de Santo sejam muito diferentes daqueles de estudantes
de dança de uma academia, grupo ou universidade.Onde os alunos se prepararam durante meses ou anos, dentro de
uma série de exercícios repetidos até a exaustão e depois, são colocados sobre
uma tablado, para se apresentarem para uma platéia devidamente educada. Platéia
que detentora ou não dos códigos daquela forma se expressão, deve se comportar
assim ou assado diante desse ou daquele repertório apresentado.
O mesmo se pode aplicar as motivações e
determinações econômicas e culturais do espetáculo, como uma atividade
artística, já devidamente catalogada, previsto nas modalidades de consumo
urbano.
Imagino que seja importante ter uma olhar
subdividido. Um olho voltado para as protagonista e as linguagens que eles
operam, outro voltado para a sociedade e a cultura na qual eles atuam. Como
eles operam com determinados conteúdos extraídos de contextos outros, que não
aquele no qual estão inseridos, mas também, como acumulam aprendizagem e elementos que não
existiam antes, e só podem ser encontrados naquele contexto específico.
Quem dançava no Brasil na década de 1930? dançava como, onde e o que?
Danças de salão, de rua, de entretenimento e
diversão, dança de festa e dança sagrada.