Salloma Salomão Jovino da Silva
Em abril de 2008 morreu o percussionista João Grandão (João Batista Mendes dos Santos), percebo que se passaram exatos 20 anos, desde o tempo em que participamos juntos na culminância musical do trabalho da Banda Tribbu e quase três trinta que nos conhecemos. Enfim, faz um bom tempo, o bastante para que nossos filhos estejam bem crescidos e seguindo seus caminhos.
É, portanto, um momento adequado para um balanço e certamente é um balanço. Balanço arbitrário e capenga, porque eu o faço unilateralmente. Este é um texto/tributo à memória do músico, artesão e percussionista João Grandão, meu companheiro musical, nesses anos agora vistos como bons tempos.
Que cidade voce habita? Que cidade te habita? Que sonho de cidade se configura dentro de voce? Nas vielas, fimbrias da urbe, na Urbana Quimera fomos parceiros de música e festa, projetos e sonhos, desenredos e desilusões. Como em toda relação verdadeiramente humana, experimentamos laços de carinho e desencontros, solidariedades e desafeições tão agudas, quanto tolas.
Tudo era intenso no processo de auto-construção dentro das musicalidade-urbanidades nossas e nos arredores e miolos da megalópole. "Voce está entrando" na seletiva narrativa que pretende repor o passado vivido, forma de elevação do grau de subjetividade, razão e emoção conjunta. Ensaio sem banda, sujeito a equívocos, ausências, omissões, erros de datas, lugares, nomes e outros vexames, que podem ser parcialmente superados com alterações, revisões e adendos posteriores. Além disso, peço que entendam as eventuais inverdades e falseamentos (não intencionais) como compensações para casos mais graves de impotência diante da realidade. Fatos políticos e sociais tidos relevantes, aqui são apenas “pano de fundo”. Uma contação da história não linear, que tem lá seus marcos próprios e começa nos início da década de 1980, sob o governo do último general/presidente, João Figueiredo.
Nós protagonistas ouvimos ao longe os ecos do Movimento pelas Diretas Já, passeamos pela Sé em dias ordinários. Eu fazia e vendia roupas e João artesanato em metal, nos arrebaldes do Largo 13 de Maio e do Colégio Alberto Conte, em Santo Amaro.
Eu no Brooklin, bairro mais ao centro, Colégio Oswaldo Aranha, onde estudante de Ensino Médio. Flertamos com a política via UNE e cultura de favela . com o Movimento Eclesial de base, mas o prefeito biônico da cidade, Mário Covas, mandou seu secretário de cultura, andar pela vidade, nós oa avistamos em Santo Amaro.
Era o Dramaturgo e ator Gianfracesco Guarnieri ( esse cara escreveu Arena Conta Zumbi , com Augusto Boal) e fez filmes sobre operários em greve. Ele e Beth Mendes eram ícones . Nessa época nossa principal onda eram os festivais estudantis de música. Tinha de tudo
Tocamos durante o strip-tease de uma escultural atriz negra no prédio da atual Universidade Livre de Música, que na época chamava-se Centro Cultural Mário de Andrade. Freqüentamos palcos periféricos e centrais, quase sempre com equipamentos de som péssimos, inclusive quando do último comício para campanha a prefeitura da mais importante e a mais digna pessoa que comandou a cidade, a mulher nordestina Luiza Erundina.
Surpreendentemente eleita, tudo parecia realmente promissor. Debatemos com equipe da Secretaria de Cultura ao longo dos anos temas como apoios, cachês, espaços. Misturamos anseios com a inércia da maquina pública, sonhos com as acrobacias partidárias, ativismo cultural com a luta pela sobrevivência. Depois, um pouco estarrecidos com a pirotecnia dos gabinetes deslumbrados, em meio a contratos milionários, fomos publico de eventos elitistas e discurseira academicista. Calamos e saímos juntos de cena, nós e os donos da bola. Mais significativo para mim foi “Primeira Lavagem da Rua da Mentira”, a rua Treze de Maio no Bexiga. Uma demonstração de organização, unidade e força do Movimento Cultural Negro da cidade de São Paulo. Aos poucos foram se aproximando as figuras Históricas do Movimento Negro Unificado. Nosso guru era o Lumumba. Contatos visuais com Geraldo Filme que trabalhava na autarquia Anhembi Turismo. A emblemática Teresa Santos e a os tambores de afoxé da Banda Lá na quadra da Escola de Samba Peruche. Euforia na chegada de Moa do Catendê, um dos fundadores de Male Debalê. São Paulo, as vezes, parecia uma Cidade Negra . O saber/fazer musical de João Grandão, que se desenvolveu nesse contexto é um mote adequado para compreender a mudança do papel dos músicos responsáveis pela presença dos tambores na cultura musical urbana brasileira e mundial nas décadas finais do século XX. Mais que isso, esse foi um tempo em que se descortinou para nós questões que relacionavam música e a diáspora africana. Aliás, esse termo, diáspora entrou definitivamente em nosso repertório pela boca do rasta Ivan.
Era um horizonte de valores negrocentricos velhos demais, mas totalmente novos para nós. A gente via se descortinando um mundo negro onde figuravam Marcus Garvey e a Black Star Line, Edward Dubois e a Unidade Africana e termos como Pan-Africanismo, Cristianismo Copta, começaram a fazer sentido. Tudo isso podia ser desencadeado por um vídeo de Bob Marley e os Waillers no evento de um ano de Libertação do jugo colonial de país remoto da costa leste africana, que em São Paulo era nome de uma equipe de baile e depois gravadora, Zimbabwe. Um reportagem em vídeo, sem tradução para língua inglesa seria inacessível, se não fossem as imagens das crianças ( Demian e Ziggy) de Marley dançando em torno do caixão dele defunto, em funeral colorido e comandado pelos sacerdotes coptas.
Na vida real a gente acompanhou e fez de dentro esse processo de democratização politica e acesso a a informação em meio a muita música ouvida, criada, tocada, grava em K7, sentida no corpo e nos consumimos nas bordas e centros de uma cidade árida e cada vez mais voraz. Mas a cidade, ela é nada, nós somos a cidade, mesmo que ela nos seja negada. Se fosse tão somente ruas e avenidas, casas, barracos, edifícios e objetos mecânicos mas inanimados, a grande São Paulo, nossa megalópole, simplesmente não existiria, ela é campo, território de conflitos. Ela é uma plataforma de visibilidade e uma maquina de invisibilidades. Palco de encontros, estranhamentos e trocas.
Eu havia encontrado jovens baianos de madeixas enormes e grossas nas proximidades do Colégio Equipe da Martiniano de Carvalho, isso ainda no início dos anos 1980, mas ao fim daquela mesma década esse seria apenas um dado visual, atrás do qual se desenvolvia um mundo de idéias e atitudes sobre negritude, absolutamente novas para nós. Inicialmente inscritos nas vielas e bairros do extremo sul, João e eu afro-brasileiros mineiros, nos fizemos teimosos em frustrar as estatísticas de drogradicção, violência, encarceramento e recalque social que poderia nos ter confinado no gueto sócio cultural, comum àqueles que tem as nossas mesmas marcas.
Ainda que sem grandes alternativas, com a música, criamos rotas de fuga a tais tipos de refração citadina. O apelido dele, depois nome artístico, João Grande, depois João Grandão, era referência cruzada a sua estatura física diferenciadamente alta, personagens de filme e desenho animado e um famoso capoeirista baiano. Além de uma verve carregada de ironia, estratégia de enfrentamento aos preconceitos vários, João era uma bela figura masculina. Um negro-mestiço de boa estatura que cultivou a vasta cabeleira cacheada e preta, depois transmutada em longos dread-locks. Tinha dois irmãos e duas irmãs, era filho de pai baiano, seu João Mendes e mãe mineira, Dona Tereza Santos. Nasceu em Careaçu Minas Gerais e migrou com a família para São Paulo e boa parte de sua infância e adolescência transcorreu no Parque Fernanda na região do Valo Velho, zona sul da capital paulista. Estudou o ensino formal até a 8A série e era musicalmente autodidata. Teve dois filhos, Atauê e Iatã com sua primeira mulher Roseneide Brandão Lopes, que conhecera ainda adolescente, quando ela freqüentava o colégio Alberto Conte e ele expunha suas peças nas imediações do Largo 13 de maio, no centro de Santo Amaro. Eu havia recém retornado a São Paulo no começo da década de 1980 e o calçadão do Largo 13, se transformara também em local de encontro de neo-hyppies, roqueiros, regueiros, artesãos, sindicalistas, ativistas sociais, lideranças estudantis e músicos. Ali ficávamos horas, na sexta e sábado ao fim da tarde, em bate- papo sobre artes, música, cultura, elevação espiritual e é claro experiências psicodélicas.
No começo, apenas eventualmente tratávamos de política partidária, até veio o PT. Fora isso eram viagens físicas e astrais, a cultura etílica sempre amolecendo as convicções mais rijas. Festas nas imediações na Granja Julieta, na Chácara Flora, no Jardim São Luis, Valo Velho, apesar dos resquícios de repressão no fim do “regime”, com gente a não tinha tempo ruim. Anarco Punks amigos, cabeludos chegados, um barzinho chamado “Sei Lá”. As festas na quebrada eram a s mais livres e doidas. Como também eram os acampamentos em Paraibuna, Paranapiacaba, festival de verão no Guarujá, shows na praça da Paz no Ibirapuera. Alguns violões, colchonetes nas mochilas, um pouco de comida, um pouco de canábis e um grande amor.
Músico e exímio artesão em madeira, couro e metais, revelou ter um tino especial para pequenos empreendimentos. Primeiramente montou uma mini-fábrica de artesanato em metais nos fundo na casa dos pais. Todas as maquinas e equipamentos adaptados, improvisados. Dali, fornecia objetos de adorno para lojas de importantes centros comerciais de São Paulo. Com igual sucesso ingressou na atividade de confecção com uma de suas companheiras. Mais tarde, desenvolveu outras habilidades na construção de instrumentos e estojos para seu transporte. Ganhou notoriedade no circuito alternativo de música de São Paulo e se aproximou dos músicos da Banda de Alceu Valença com os quais deu canjas. Trabalhou, como técnico de som, rouding (responsável pelo transporte, guarda e afinação, montagem e desmontagem de instrumentos musicais). Tocou na segunda turnê brasileira da banda advinda do Suriname, a Duhesmo Syndicate, uma das primeiras bandas internacionais de reggae a fazer o circuito brasileiro. Somente muito anos mais tarde vieram, Peter Tosh, The Waillers e UB-40.
A Banda Tribo formou-se entre 1985 e 1987 (como era grafado antes do estudo numerólogico de uma fotografa amiga de percussionista Nobuga, cujo nome não me lembro). Com Telmo Anun-percussionista, Mauro Nobuga- percussionista, João Grandão-percussionista, Artur Tchalekian-Contra-baixista e Carlos Mariya-guitarrista. A proposta inicial era elaborar uma sonoridade própria com base nos Tambores. Ainda não havia grande projeção dos grupos afros da Bahia e a percussão não era alvo de apelo na mídia. A Tribbu pretendia não fazer concessões aos covers, uma imposição das casas noturnas naquela época, bastante difícil de ser contornada. Havia evidentemente outros espaços para atividade musical profissional na cidade, como docência precária nas escolas de música, normalmente sem vínculo, sem equipamento pedagógico e metodologia. Existiam também hotéis e restaurantes de luxo nas imediações da Augusta, Paulista e nos Jardins, mas este campo era disputado como reserva de excelência. Espaço de músicos do disco e do rádio que já não gozavam do mesmo prestígio mas conseguiam manter contratos razoavelmente estáveis e pagamento nos níveis da tabela da Ordem dos Músicos do Brasil.
Salloma, Edu Schltz e João Grande, evento no Largo São José por volta de 1982.
Embora um tanto autoritário na minha visão, João Grandão tinha senso raro de liderança musical e uma noção prática desenvolvida ao longo dos anos 1980. Havia adquirido uma grande experiência, gravando em estúdios e tocando diferentes tipos de sons, principalmente rock com sotaque de Forró e outros elementos identificados à música de origem nordestina (a Banda Fim da Picada se intitulava Banda de Forrock). O FIM DA PICADA, por onde também passei a seu convite, foi sua primeira banda, onde inicialmente teve a função de vocalista. Nos conhecemos nessa época, durante um festival de música estudantil em Santo Amaro, São Paulo, Capital e ainda naquele ano colaboramos na organização dos nossos primeiros eventos.
Salloma e Clelington Ferreira- Tribbu e Wlaking Lions no Centro Cultural São Paulo em 1988. By Soso.
Em termos de formação instrumental a Tribbu inovava, mas não rompia como o modelo configurado a partir dos anos 1950, qual seja, voz, Guitarra, Baixo e Bateria. Essa padronização se deveu a vários fatores ligados ao desenvolvimento de tecnologias que permitiam a amplificação do som dos instrumentos musicais, eletrificados e microfonados permitiam a audição de um público cada vez mais amplo. Mercados que se alimentavam mutuamente, da industria de equipamentos e instrumentos eletrificados, fomentando a expansão da indústria de entretenimento, que envolvia rádio, disco, espetáculo. Este formato já era comum no Brasil nos anos 1960, já verdade tinha sua origem nas primeiras Jazz Band brasileiras surgidas em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre na remota década de 1920.
Meu ingresso na Banda Tribo ( gradafo assim naquela época) foi seguido da saída e emigração de Telmo Anun para a Suíça, mas isso não modificou o objetivo inicial, quanto a uma estética que valorizasse elementos musicais africanos e especialmente a percussão. Eu tinha uma modesta experiência de letrista e vocalista, pela passagem pelo grupo Fé, Circo Novessência e Na Corda Banda, onde havia atuado. Naquela época trabalhava com musicalização na FEBEM Tatuapé e estudava o bacharelado em música na Faculdade Alcântara Machado (FAAM). A Tribbu abriu minha percepção das potencialidades dos tambores como instrumentos solo em uma formação convencional no qual fazem um papel terciário, já que as cordas, ou melhor a harmonia, tinha espaço secundário. Contudo, a meu ver, tal pesquisa estética nunca foi muito a fundo no propósito.
Salloma, Edu Schltz, Luis Rosa e João Grande, evento no Largo São José por volta de 1982.
Tendo em vista a atuação de percussionistas de renome internacional como Djalma Correa, Airton Moreira, Repolho e Marçalzinho, acatou-se uma convenção no formato e nos elementos, qual seja, um par ou trio de congas, um bongó e sino de vaca (Cow Bell) ou gonguê e uma mesa de efeitos (apitos, cincerros, carilhoes, caxixís, réco-réco) raramente pandeiro e cuíca e outros tambores de sons médios e graves. Quero dizer que os timbres explorados ficaram em uma região médio aguda, nas congas, timbales, bongos, gongues, caxixis. Raras vezes exploramos os timbres graves, as notas longas, as possibilidades das membranas com fricção. Para se produzir uma sonoridade coesa em termos de banda, sabemos que é necessário um nível técnico elevado, mas sua ausência pode ser compensada por muitos, rigorosos e disciplinados ensaios, ficamos no meio. Havia constantes modificações no time, provavelmente causadas por dificuldades mais variadas, como cachês baixos, poucos locais para shows de bandas com som próprio, falta de um empresário profissionalizado. Após a saída de Artur Tchalekian, passaram pela Tribbu baixista como Cidão, Bob de Souza, Lula Barreto e por fim Gilberto Assis. Ainda em 1988, ingressaram Cida-Saxofone alto, André Urbano- Saxfone Alto e Tenor e Ricardo Dardes Dardes- Trompete (responsável pelos primeiros arranjos escritos) e por fim Mario Checheto . Ainda neste ano entraram também no time Gerson Surya, tecladista negro paulistano, que regressara depois de passar alguns anos em Salvador, onde, segundo seus depoimentos, tinha tocado com Lazzo Matumbe e participado ativamente da cena de Reggae de Bahia. Suriya no entanto foi precedido pela tecladista Kakaia, segunda mulher a participar da Tribbu. Além dos já mencionados, outros músicos passaram pela Tribbu, mas os que ainda guardo memória pessoal ou algum registro escrito são: Mede Parsifal- baterista, Julio Versolatto- trompete, Marcelinho da Dutra- trompete, Cliff Portugal- bateria, Marcelo Tai- teclado e Chulapa- contrabaixo.
É importante frisar a entrada de Ninho, baterista de minha antiga Banda. Ele deixou o trio rítmico mais consistente e metronomicamente preciso. Como se sabe a kaia, diamba, cannabis, altera toda a percepção, inclusive o senso rítmico. Esse era um fenômeno não raro durante os ensaios e apresentações, alvo de tensão constante entre os músicos. Com essa formação, qual seja, João, Salloma, Nobuga, André, Ricardo, Ninho, Gerson, Mariya, Gil, Mário, percorremos as casas noturnas que organizavam festa de quarta a domingo no triangulo compreendido entre Pinheiros, Barra-Funda e Paraíso. O Centro Cultural São Paulo organizou alguns shows através da Rádio-Atividade, coordenado pela jornalista Magali do Prado e multi-média China Ken, ele mais tarde co-produtor de Jay Mahal no Porgrama Reggae Raiz na Brasil 2000 Fm. Essa programações reunia em apresentações coletivas bandas de diferentes tendências, com Walking Lions, Sinsemila, Tc e Banda Zion, Vultos, Peixes do Tiete. Em todos estes casos, o cachê não ultrapassava 40% da bilheteria, numa época de inflação alta e voracidade dos donos de casa noturna, era evidentemente muito difícil sobreviver apenas de apresentações musicais, todos tinham atividades paralelas a música.
Os ensaios eram regularmente realizados no período noturno. Na praça João Mendes, defronte o Fórum e ao lado do Palácio da Justiça, havíamos alugado uma sala, no sótão de um prédio do início do século. Como os ensaios terminavam tarde, logo, tínhamos por afinidade senso de sobrevivência uma boa coletividade com as prostitutas, traficantes, policiais, vendedores ambulantes e bombeiros. O estúdio da Tribbu passou a ser um ponto de referência para bandas que não tinham seus próprios espaços de ensaio, assim começaram a transitar por lá não apenas os parceiros de shows, assim como a negada que via naquele espaço um pólo aglutinador dos amantes da música negra. Lumumba, Luis Wagner, Tc, Músicos da Banda Lá, Dago Miranda, Pacíficos da Ilha, Sensimila, Banda Derepente, ensaiaram ou chegaram para tomar um café. Embora não me lembre da passagem por lá de figuras do reggae como Jay Mahal, certamente me lembro dos irmãos Pedro e Marcelo Mangabeira, seus parceiros. No final dos anos 1980, bons equipamentos e instrumentos musicais eram extremamente caros. As melhores marcas de cabeçotes, captadores, guitarras, guitarras e contrabaixos norte americanos enfrentavam uma burocracia intricada e um sistema alfandegário incerto e o mesmo acontecia com os discos. Por isso quem tinha disco de música negra do caribe e música africana, quase era nunca lançadas aqui, era tratado do deferência. O Guitarrista Carlos Maryia de origem coreana, era um dos poucos a ter discos de musica africana contemporânea como dos grupos Kassabe, Toure Kunda, e artista como Miriam Makeba, Felá Kuti e Manu Dibango.
Nossas sessões de ensaio eram intermediadas por outras de audição. Mais tarde descobri que Mariya que era técnico em informática, consumia boa parte do salário entre instrumentos, equipamento e discos de música africana, importava tudo dos EUA e da França. É provavelmente que isso fosse realizado em meio ao desespero dos pais, ligados a cooperativa agrícola de Cotia. Um parceiro importante nesse contexto foi o Jornalista Otavio Rodrigues. Tinha uma visão ampla sobre cultura musical diaspórica e uma análise otimista da influência do reggae na música brasileira dos anos 1980. Organizou um programa que foi ao ar pela Tv Cultura de São Paulo, no qual apresentava reportagem primorosa sobre política e cultura da Jamaica e do espraiamento do gênero Música Reggae na África, no Brasil e no mundo. Nessa ocasião, nos apresentamos ao vivo no palco do auditório da Tv Cultura, juntamente com as Bandas Reggai Funkai, Pacíficos da Ilha e Sinsemilla. Teatro Mambembe no Paraíso e Aero-Anta eram boas casas de shows, tinham equipamento de áudio e equipe técnicas de som e divulgação bastante profissionalizadas, além de um público garantido e uma programação variada. Em ambos espaços artístico-culturais a Tribbu tocou alternadamente com as Bandas Luni, Skova e a Máfia, Chico César, Grupo Rumo. Posteriormente todos ingressaram em um mercado mais amplo do espetáculo, disco e rádio.
Simbolicamente talvez, o evento mais importante que participamos, naquela ocasião tenha sido o Programa Perdidos na Noite com Carlinhos Trompete. Era o lançamento do Disco Alma Negra, que reunia a nata do soul music brasileiro, entre os quais Toni Bizarro, Carlinhos Trompete, Tony Tornado, Lady Zu e Luis Wagner. Nesse momento e por conta desse e outros poucos eventos se pode falar na conexão entre duas temporalidades diferentes da música negra urbana em São Paulo. Os bailes blacks dos anos 1970 eram realizados na maioria dos casos com musica mecânica, um pick-up ou toca disco comanda por um Dj, mesmo no Rio de Janeiro a conexão entre bandas de soul e bailes soul não se processava com facilidade. A visibilidade de Tim Maia, Jorge Ben, Cassiano, Carlos Dafé e Hyldon tem mais a ver percursos singulares de compositores/cantores desfiliados das principais correntes musicais afinadas com a produção e consumo do disco e entretenimento, do que com um movimento coletivo em busca de uma estética musical negra e cosmopolita, embora este aspecto também exista. A questão nada tem a ver com autenticidade, mas é necessário grafar que em parte a memória do que seria um movimento do gênero Música Soul é sobretudo uma construção posterior, um anacronismo simplório e corriqueiro.
Gravamos em 1988 a trilha sonora dos spots de rádio da campanha da fraternidade da CNBB. Isso foi uma troca por alguma horas de gravação no Studio Verbo Filmes na Chácara Santo Antonio com Zezinho e Jacaré. Este talvez tenha sido nosso único registro sonoro em condições técnicas razoáveis. Poucos ensaios, muitos erros e excesso de reverb, mas faz parte da História e deu início a uma parceria que se transformou em outros registro como disco ( Lp) Negros Africamos, no qual Jansem Rafael, meu irmão falecido em 2004, interpretou Rei Congo, Rei Cego, Rei Negro. Canção minha em pareceria com Satranga de Lima ( Ourival Carolino, hoje morando na França) com a arranjos do Grupo Fé. No Estúdio Verbo Filmes gravei ainda Vândalos de Chocolate e The Pênis S.A. no começo dos anos 1990. Fora uma ou outra apresentação esporádica nas festas estudantis em remotas cidades nas fronteiras de Minas e São Paulo, não fomos muito além do circuito paulistano em termos geográficos. Eventos para pequenos públicos, exceto no ultimo comício de Erundina na Praça da Sé, quando candidata a prefeita da Cidade de São Paulo. Outra exceção ocasional foi a participação em um festival de Reggae no Projeto SP, localizado na Barra Funda. Era uma da grandes salas de SP, com capacidade de abrigar um evento com bandas de projeção internacional , não era o caso, mas certamente se aplicava ao Duhesmo Syndicate. Houve um dado momento em 1989, em que a Tribbu abriu mão de um som fundamentado na percussão, para produzir uma sonoridade dançante, melodias mais pop, arranjos menos intrincados. Os arranjos de Gil Assis ajudaram aparar as arestas de harmonia e tornar as canções mais coesas e amarradas no contexto do repertório. Contudo. Dessa época não há registro de gravação em Estúdio, mas sim de apresentações ao vivo e outra aparição na Tv Cultura, na qual executamos cinco canções em programa comandado por Kid Vinil, cujo nome era Matéria Prima.
A Banda Tribbu, antes mesmo que a idéia e discurso da diversidade étnica e cultural tivesse obtido adeptos, já tinha entre seus membros um exemplo prático. Descendentes de africanos, armênios, coreanos, japoneses, italianos e portugueses. A Banda era composta de gente ex-favelada como eu Anu, João e nossos amigos, filhos da gente branca classe média paulistana, formal e musicalmente educada em conservatórios da cidade. Formações musicais diversas e um vivo interesse pela cultura musical de origem africana, isso é o que tínhamos em comum. Era o que nos movia. A sociabilidade construída em torno da música, fazia com que saíssemos de pontos diferentes da sociedade e da cidade e nos colocava em contato de quatro a cinco dias por semana. Os ensaios que duravam 4 horas em média, depois tinha café nos botecos próximos, visitas de outros músicos, espiadas ocasionais de bêbados, curiosos, pesquisadores, fotógrafos e jornalistas sem pauta. Ocasionalmente as sessões de improvisos (jams) com a participação de músicos atravessavam a noite, a não ser quando uma viatura da policia civil parasse na porta do prédio. Os ensaios eram geralmente precedidos de sessões de improvisação, momento aquecimento, que permitia um diálogo livre entre os músicos, algumas canções surgiam desses improvisos. Iniciava-se com um grooving de contrabaixo e o seqüência de acordes de guitarra, seqüência executada a tomar um forma e definir uma tonalidade que poderia ser alterara por sugestão não declarada dos instrumentas, dependia bastante do estado de ânimo de cada ensaio, mas era um momento prazeroso que aos poucos tornava visível (melhor seria, audível ) as qualidades técnicas e nuances, mas também mostrava os limites, vícios e redundâncias individuais. Este aspecto um pouco chato de observador sonoro por vezes podia descambar para rotulação e se traduzir em preconceitos em relação a determinados fraseados, ostinatos, seqüências melódicas, levadas de bateria etc. Eu, que desde a minha chegada a São Paulo, sempre morei na periferia, tinha medo e encanto pela área central da cidade, aprendi a desvendá-la nessa ocasião. Por volta de 1992 quando a Tribbu se diluiu já transitava com desenvoltura pelo Vale do Anhangabaú, Bexiga, Liberdade, Santa Cecília, República, Paulista a qualquer hora, do dia ou da noite. Pode parecer romantismo bizarro, mas ainda assim vale o relato.
Alguns garotos neo-facistas não tinham onde ensaiar e vez por outra eram obrigados botar o rabo entre as pernas e alugar o estúdio da Tribbu. Quero dizer que deveria ser para ele uma situação de abominável humilhação, ter que pagar (a um negro imprestável) aluguel de um estúdio mixo e deplorável para ter algumas horas de ensaio e criação militante. Me lembro de um deles, um garoto obeso com sotaque macarrônico, me parecia mais cômico e caricato, engraçado mesmo, a despeito do que pretendia não conseguia parecer realmente ameaçador. Procurou-me porque pretendia que produzir uma fita-demo de sua banda e me convidou ir a sua casa na região do Belém. Não me recordo dos detalhes, mas de um sobrado antigo e roto, uma sala modesta com poucos moveis e em uma das paredes a fotografia de Mussolini de um lado, fizera questão de detalhar com os olhos marejados o outro velhinho era seu avó italiano já falecido. Me explicou que o avó chegou jovem ao Brasil nos anos 20, mas se na Itália estivesse nos anos de revolução, teria sido um herói do Dulce. Ele herdou do amável vovó um uniforme dos integralistas brasileiros, com o qual gostava de cantar. Me segredou que “havia um força inexplicável naquela roupa verde”. A música seria a forma ideal, nos novos tempos, para propagar as idéias revolucionárias que defendia. Discursou longamente sobre importância da separação das raças, sobre o público que consumiria seu trabalho, sobre seu sentimento de pertencimento a “Grande e Vitoriosa Itália”. O projeto da fita-demo não se concretizou e hoje nem sequer me recordo seu nome. Havia uma inconsistência sadia nas ideologias político-estéticas que nos seduziam naquela época. Os jovens adeptos dos preceitos Rasta, talvez por falta de alternativa, também se viam obrigados a conviver conosco, digo com as Bandas de musica negra que tocavam música negra com elementos de Reggae, sem transformá-lo em emblema ou preceito religiosos.
Eu, como ascendi a condição de band leader da Tribbu, como porta voz era ocasionalmente criticado por minha postura cética em relação a entrada da cultura rastafari em São Paulo. Um jornalista chamado Jotabe Medeiros, ao perceber esta tensão, grafou uma nota na sua matéria publicada no Jornal O Estado de São Paulo, segundo a qual eu e Clelington líder da Banda Wilking Lions, seriamos inimigos mortais, isso rendeu muito pano pra manga e pouca música. Em 1990 formulei um pré-projeto que propunha a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo a ocupação dos teatros de bairros pelas bandas, que aquela altura se organizavam em torno da idéia genérica de musicalidades negras. Além das bandas citadas, havia também o Grupo Afro-Ori-Axé recém criado pelo percussionista Lumumba e os grupos Salada Mista, Dzara Banda, Banda Nem, Carlos Coelho e Banda Lua de Néon, entre muito outros. O projeto foi viabilizado em condições que até então não havíamos tido, como cachê fixo, equipamento de som, iluminação, divulgação, enfim começava a se configurar nessa época uma perspectiva de profissionalização musical. O evento de encerramento do projeto foi realizado auditório do Masp com participação de Itamar Assumpção e Banda, no entanto, A Tribbu, minha própria banda Tribbu ficou fora. O processo de seleção para essa, como as demais etapas consistiu em sorteio, e nós não tivemos a sorte. Isso não era tranqüilo, nem compreensível para meus os parceiros de banda e de movimento. Um adicional nisso era imperdoável, a banda sorteada para tocar ao lado do ídolo Itamar, era composta somente de garotos brancos, fazendo música de preto. Em função disso fui quase proscrito. O “Movimento Negra Música” acabou ali, a Tribbu ainda suspirava sofregamente. O projeto da Banda Tribbu somente parou de respirar, quando fechei a porta e entreguei minha copia de chave ao porteiro do Prédio da Praça João Mendes.
Ainda tem mais, mas paro por aqui......
querido salomão,
ResponderExcluiracabo de ver seu chamado por email.
vim um pouquinho ao seu blog só pra ver do que tratava esta sua postagem mais recente.
infelizmente vou ter que retornar ao que fazia, mas vou tentar vir de novo logo.
gostei de reler-ouvir você em suas estórias de música e arte ainda que por um segundinho.
bj, l.
Obrigado amiga
ResponderExcluirSeja bem vinda.
Abs
Leitura atrasada, mas para isso serve a permanência da internet, e muito atenta. Interessante o relato em sua forma e, claro, seu conteúdo. Obrigado por ensinar com um poico de sua memória.
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