Ocupação Cartola no Itaú Cultural em São Paulo.
extraída do site- Milton Montenegro
Meu filho mais velho se casou ao som de Cartola, ao invés de
uma valsa vienense. E foi por escolha dele e Marta. Desde que conheci suas canções, em meados dos
anos 1970, me encantei sem bem saber como e porquê. Agora imagino, que pela suavidade e
autocontrole de sua voz e de seu verbo. Entrou em mim um desejo secreto por uma
poética bem submissa aos contornos da melodia.
Abrindo uma brecha na ideia. Justifico minha percepção de
canções exatas: São especialmente aquelas que constroem imagens surpreendentes
ou outras em que as palavras ou fonemas não sobram em relação a simultaneidade
das notas. Por vezes não dá empate,
sobra ou falta uma coisa ou outra, como se fosse uma roupa comprada no
estrangeiro, para dar de presente a alguém que se quer, mas não tem as medidas.
Fui ver e explorar a exposição CARTOLA no Instituto Cultural Itaú por três vezes. Cada uma
saboreei detalhes que haviam ficado para traz na pressa, na taquicardia e
ansiedade de chegar a uma impressão, um veredito. Cada vez que fui, encontrei
um tipo diferente de gente na visitação, a julgar pelas aparências. Mas quase
nunca a tipologia caraterística de certos eventos culturais de elite, gente
branca alternativa, estilo Perdizes e Vila Madalena. Gente que fala difícil e
nos olha com curiosa complacência.
Efetivamente considero que há uma intensa mudança cultural em
curso, algo além daqueles dados mais salientes, que a mídia ressalta, com o
código cifrado “Nova classe C”. Um desarranjo conceitual que já vem ocorrendo
há algum tempo no país, parafraseando Caetano sem ser rígido, isso muito me atrai,
intriga e estimula.
A exposição, tal como aquela passada e dedicada a Dona Ivone
Lara, é bonita e simples, resume e também abre uma perspectiva abrangente sobre
a vida-obra do artista. Uma mistura de museu antropológico, instalação e
espetáculo ou cenografia de teatro. Um forma de jogo de cena sem ação humana
evidente, os visitantes sãos personagens e atores. Os funcionários uniformizados
parecem colados nas paredes, quase imóveis,
mas não invisíveis.
A exposição sim. Produz encantamento, interesse,
deslocamento. Sim. Traz memória e nos induz a identificação e estranhamento,
revolta e carinho.
É estranho ver naquele lugar relativamente elitizado, aquelas
imagens fotográficas, cinematográficas e televisivas de alguém de uma obra tão
singular e longeva, hoje aparentemente reconhecida. Contudo, por quase quarenta
anos Angenor foi mantido à margem do mercado de produção e consumo de música.
Agora ali, tridimensional e tão suave. Aliás como devem ser os mortos. Ele já se
vai tão longe estando ainda vivo.
A exposição nos ajuda a constatar ou confirmar o já sabido,
da condição miserável com as quais o excepcional compositor e cantor negro teve que lutar durante toda sua
vida, para somente no final gozar de alguma visibilidade e prestígio. Eu sou pleno de Revolta e
indignação.
A desigualdade e racismo típico são introduzidos na cena, apenas
por um detalhe. A exposição de duas fotografias
irônicas de Walter Firmo. Perspectivismo curioso e machadiano, duas imagens
retidas por entre buracos e frestas das latas e madeiras velhas, no morro da
Mangueira, restos de casas, barracos. Não sei se propositais ou por acaso. Não
sei se acerto da algum preto sacana infiltrado na equipe. Ah essa maldita
consciência negra. Empatias boas vinicianas.
Caramba, essa é nossa memória e legado. A experiência negra
na formação concreta e imaginada da sociedade brasileira contemporânea é feita
dessa contradição tensa e quase sempre negada. De um lado tudo é exclusão,
exclusividade e permanência. Do outro quase tudo é feito de recriação, criatividade
e resistência. Isso é encantamento
Digamos estamos assistindo a uma espécie de irredutibilidade
das culturas negras, em todos os microespaços da vida social, isso apesar do
racismo sistêmico antinegro, que nos acompanha e se acirra mais ou menos,
dependendo das circunstâncias, espaços e condições gerais. Podemos chamar isso de deslocamento.
Conversando com funcionários de baixo escalão da ilustrada
casa, é evidente que Cartola, Dona Ivone Lara e outras figuras negras de
proeminência, atraem um público que escapa ao perfil mais enobrecido e
tradicional dos centros culturais que ficam no entorno da Avenida Paulista e
Jardins. Mas também é bem verdade que os mais pobres e menos escolarizados tem
avançados para as áreas nobres de cultura, entretenimento e lazer que eram
antes mantidas exclusivas, com aplicação prática de sutilezas discriminatórias.
Por exemplo, manter apenas funcionários negros nas funções mais subalternas e
uniformizadas, funciona como um recado, de que os lugares de negros, mestiços e
pobres nestes lugares se reserva apenas a condição de serviçais. É muito difícil limpar os olhos educados com
a codificação racial aplicada aos lugares e hierarquias. Isso é permanência
estrutural de longa duração.
O Itaú, parece ter realmente aproveitado ao evento do
Blackface e desenvolvido um intenso trabalho de reavaliação do perfil de suas
atividades e de seus frequentadores. Essa mudança na percepção das elites
corporativas vem sendo ensejada por organizações negras desde a década de 1990,
ou pelo menos, após o seminário coordenado por George Reid Andrews. Mas é
justamente no núcleo duro das instituições e corporações onde há menos
diversidade racial e maior rigidez na conservação do poder, prestígio e mando.
Desculpe. Voltando para exposição do Cartola no Itaú. Uma
belíssima atualização da obra de Cartola com leituras de Jussara Marçal, Ellen
Orélia, Raquel Virginia e Rico Dalasam. As letras das canções em natura,
manuscritas, rabiscadas, em papeis reaproveitados com timbres de órgãos estatais
desaparecidos, são registros históricos incandescentes, retidos em molduras
envidraçadas.
Não pude deixar de memorizar a descrição preconceituosa
típica da elite de esquerda brasileira ligada as artes, quando quer elogiar ou
destacar alguém de origem negra ou pobre, ou como se prefere dizer, de origem
humilde, para esconder concomitantemente as injustas desigualdades combinadas
de raça e classe. O cineasta Cacá Diegues fala da participação de Cartola em Ganga Zumba, seu primeiro longa metragem
de 1963. “Desconheço alguém na cultura brasileira, que tivesse uma atitude tão
principesca diante da vida, uma posição tão altiva e até estoica.”
Essa ideia de nobreza ou fidalguia, de pretos e pobres, pode
ser entendida como uma forma de dizer, que somente os especiais se destacam na
paisagem extraordinária, de uma determinada área do conhecimento ou das artes.
Especificamente estes seres especiais, aos quais são impingidas marcas
comportamentais muito próprias as pessoas de alta estirpe.
Tipo alma não tem cor. Ou nobreza vem do berço. Algo sobre
refinamento e polidez inata. Caramba. Isso é verdadeira negação de Norbert
Elias e a negação da historicidade das culturas. É o cumulo dos valores
aristocráticos e preburgueses. Diga-se de passagem, muito próprios da cultura
elitista e neocolonialista brasileira. Uma saudade danada do império.
Quem entra numa loja de instrumentos musicais da LP, (Latin Percussion)
instrumentos musicais ultramodernos de origem africana, não consegue ver ali,
tecnologias sonicas ancestres. Mas são equipamentos musicais de alta
performance, desenvolvidos por africanos, afrocaribenhos, afro-brasileiros e
capturados por grandes corporações
capitalistas, que os retiram seletivamente do fabrico artesanal e os
redesenharam para linhas de montagem industrial e comercialização global.
Os descendentes de africanos no Brasil, Argentina, Cuba, EUA,
Colombia, França e Inglaterra, ao longo do século XX participaram ativamente na
criação do mercado de produção e consumo de música, entretenimento e lazer.
Raramente figuraram como donos de meios de produção e difusão, mas isso não
quer dizer que sua atuação não contribuiu para formação de um universo novo de consumo, musicalidades e uma serie não comensurável de novos, valores, ideias e comportamentos, mas
também tecnologias para criar, capturar e difundir música. Tudo isso teve nossa participação ativa.
É chegada a hora de valorização dessa participação, desse
ativismo criativo, que foi abrindo caminho para um novo tipo de cidadania
cultural, onde a memoria é tão importante, quanto a inserção profissional de
jovens negros e negras em todas as esferas desse universo de beleza, poder e
criatividade. Vida e obra de Cartola, mas também esta exposição nos serve como
referência e alerta sobre as inúmeras formas de expropriação material e
simbólica, como também de diálogo francoaberto e conflito ético. Hoje estamos
bem atentos sobre nossos legados, diante dos usurpadores dos direitos reais já
conquistados e daqueles de cunho subjetivo, que mantemos no horizonte. Isso é a verdadeira Modernidade Negra.
Sim. Em meio a todo debate sobre “origens” das musicalidades negras
brasileira tem toda uma luta para se ter a acesso a memória cultural, para se
poder acessar essa memória sem custo ante o flagrante avanço da mercantilização das memórias
e práticas culturais negras. Há também diferentes gentes na luta pela repatriação de documentos sonoros levados para os
EUA nos anos quarenta. Detalho aqui apenas uma tentativa de compreensão, de um mundo muito complexo e rico da história dos processos de identidades étnicas e culturas musicais na pós
modernidade. Tudo visto por olhares negros e geografias externas.
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