SOBRE
A MISSÃO DO COLETIVO LEGÍTIMA DEFESA
Vicente
Pereira Jr.
(Doutorando em artes cênicas pela
UniRio)
I
Legítima Defesa, coletivo artístico que emergiu na cena teatral paulistana
durante a 3ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), em 2016. Seu
surgimento está atrelado a negociações quanto à realização da polêmica
instalação Exhibit B[1]
naquele evento. Quando do cancelamento dessa última na programação oficial,
performers envolvidos na sua realização protagonizaram um ato a que chamaram Legítima Defesa, invadindo as salas de
espetáculos após apresentações e interpelando o público da mostra
internacional.
Como ocorreu após o espetáculo Revolting Music - Inventário das Canções de
Protesto que Libertaram a África do Sul, de Neo Muyanga, no Centro Cultural
São Paulo, ocorreu também após 100% São
Paulo, do grupo alemão Rimini Protokoll, apresentado no Theatro Municipal.
Após assistir e aplaudir fortemente esse último espetáculo, no melhor estilo
teatro pós-dramático[2],
o público se levantava confortavelmente dos suas poltronas de veludo, na
majestosa sala, e já se preparava para solicitar um táxi, um uber, caminhar até
o metrô, o bar, para certamente discutir pontos de vista sobre um espetáculo
internacional de um grupo artístico importante, em um festival de teatro
importante, no interior de um edifício teatral centenário. O corpo relaxado
após a imersão no ritual artístico e já preparado para um retorno aos rituais
sociais banais é então interpelado por um “arrastão” de corpos negros que
impedem a saída da sala e ocupam, numa espécie de “sequestro”, o avião que
acaba de aterrissar. “Senta e escuta!”, “Senta que quero falar!”. Nas palavras
de Miguel Arcanjo Prado (2017), “ao som dos versos ‘A cada quatro pessoas
mortas pela polícia, três são negras’, de Capítulo 4, Versículo 3 do grupo
Racionais MC’s”:
O som ensurdecedor de bombas e aquela visão arrebatadora, praticamente um levante negro, paralisou a plateia. Tratava-se, sem sombra de dúvidas, de um enfrentamento. Logo, aqueles artistas negros deram início a um discurso que desvelou o racismo institucionalizado na sociedade brasileira, presente inclusive nos campos ditos progressistas da cultura e também naquela plateia na qual negros podiam ser contados nos dedos da mão.
Questionaram não só a morte de negros pelo Estado, como também sua ausência nos palcos e nas plateias de teatro, e a indiferença de muitos brancos para a questão negra. Ao fim, de punhos cerrados, os atores se posicionaram ao fundo do teatro, muitos com lágrimas escorrendo pela face, e uma expressão de dignidade e dor ao mesmo tempo, no que foram seguidos pelos poucos negros presentes na plateia e raros brancos, naquela que foi uma das performances mais impactantes da história do teatro brasileiro recente.
A Missão em Fragmentos: 12 cenas de descolonização em
legítima defesa
foi um espetáculo apresentado na 4ª Mostra Internacional de São Paulo (MITsp),
em março de 2017, trazendo os mesmos artistas referidos acima, sob direção do
mesmo Eugênio Lima, que dirigira a performance do ano anterior. A peça é
baseada no texto A missão: lembranças de
uma revolução, do alemão Heiner Müller (1929-1995).
II
No
tempo da traição.
As paisagens são belas.
(Heiner Müller)
A crítica do jornalista Miguel
Arcanjo Prado, quando da estreia de A
missão em fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa, no
Auditório Ibirapuera, registra seu “susto e desconforto” mediante uma
representação “dilatada”, “menos potente” e “condescendente” com a ideologia da
“sofisticação europeia teatral”. Ao comparar esta realização com a performance Legítima Defesa, realizada na mesma
Mostra Internacional de Teatro, no ano anterior, ele percebe que o fato de ter
conquistado um espaço mais “legitimado pela curadoria”, um “palco nobre”,
resultou em uma “cooptação” por parte do Coletivo Legítima Defesa, abdicação da
tentativa de buscar “um lugar de fala para o negro brasileiro”, não assunção da
“primeira pessoa [frente] a efervescente questão negra brasileira”, o que
resume como um espaço “desperdiçado”.
Um dos aspectos que mais parece ter
incomodado o jornalista, além do uso de um texto dramático de Heiner Müller -
um autor europeu branco - e da “gritante ausência de percussão” dentre os instrumentos
musicais empregados em cena, foi a projeção da frase: “Somos todxs negrxs”. A
respeito dessa última, Miguel Arcanjo clama pela diferença insuperável entre
brancos e negros na sociedade brasileira, que ele entende ter sido mascarada
pelo espetáculo.
A peça escrita por Heiner Müller, A missão: lembranças de uma revolução, é
de 1979 e, como característica da obra desse autor, marcada pela
intertextualidade. Nasceu de uma novela da também alemã Anna Seghers
(1900-1983) chamada A luz sob a forca, publicada
em 1961. Na novela de Seghers, três emissários do governo revolucionário
francês, no inverno de 1798-1799, são enviados à Jamaica para organizarem uma
revolta de escravos. Em Seghers, esses emissários são Debuisson, branco, filho
de um senhor de escravos jamaicano, Galloudec, camponês da Normandia, e
Sasportas, um judeu espanhol. Na peça de Müller, Sasportas é transformado em um
negro revolucionário haitiano: “Fugindo da vitoriosa revolução negra do Haiti,
me juntei ao senhor Debuisson, porque Deus me criou para a escravidão. Sou
escravo dele” (MÜLLER, 2017, p. 22).
Mal desembarcam na Jamaica e já
recebem a notícia do Dezoito Brumário na França, o golpe de Estado que
dissolveu o governo revolucionário e colocou Napoleão Bonaparte no poder. As
conexões entre o golpe de Napoleão e o recente golpe vivenciado pelo Brasil
sobre o governo da presidente eleita Dilma Rousseff são bastante evidentes e
esse paralelismo será explorado de modo irônico durante todo o espetáculo, sem
no entanto ocupar um ponto central no discurso da encenação. Acreditando que a
ação na Jamaica não contaria com apoio do General, o branco Debuisson trai seus
companheiros, entregando-os à Coroa Britânica. Para Müller, conforme Storch (op. cit., p. 51), o momento que antecede
a traição de Debuisson é constituído por uma contemplação da beleza da paisagem
jamaicana e pelo vislumbre da possibilidade de se constituir senhor daquele
território, reassumindo o controle das riquezas e dos escravos de sua família,
daí a oposição percebida pelo autor entre apreciação estética e revolução ou
entre beleza e traição.
Quando a peça de Müller se inicia, o
negro Sasportas já foi enforcado em Port Royal e o camponês Galloudec já
faleceu, com uma perna amputada, em um hospital “meio prisão”, em Cuba. A notícia
chega por uma carta entregue por um marinheiro a um certo Antoine, em Paris.
Possivelmente, trata-se de uma alusão a Louis Antoine Léon de Saint-Just, um
dos líderes da Revolução Francesa, radical defensor da política do Terror,
guilhotinado em 1794. Embora a data de sua morte seja anterior ao período em
que se passa a peça, é importante lembrar que a ordem cronológica não é um
elemento estruturante nesse teatro, dada a “falência da esperança de Müller em
uma história progressiva” (KOUDELA, 2003, p. 29).
A carta entregue em Paris é o ponto
de partida para uma revisitação aos acontecimentos ocorridos na Jamaica, das
expectativas da revolução à traição de Debuisson e morte de seus companheiros.
Nas palavras de Ruth Röhl, “experiência de crise do pensamento revolucionário
num tempo de estagnação e restauração”, “reflexão sobre (...) a viabilidade da
exportação ou importação de modelos revolucionários ou civilizatórios” (2003,
p. 37).
Se
a possibilidade de uma revolução descolonizadora nas Américas chafurda pela
traição do branco Debuisson, a expectativa que paira sobre essa montagem do
Coletivo Legítima Defesa é a de que seus artistas operem uma traição ao
“escrevinhador” (como Müller - herdeiro de Brecht - prefere ser referido)
europeu bem como uma traição à lógica política dos palcos teatrais brasileiros,
hegemônica e historicamente dominados por artistas, produtores e gestores
brancos.
A primeira experiência nesta A missão em fragmentos... é a de um coro
ritmado de vozes e de pés numa marcação sincrônica sobre a madeira do palco. Ao
entrarmos em um dos grandes teatros da capital paulistana (o espetáculo foi
apresentado no Auditório Ibirapuera, com capacidade para 800 espectadores e na
Sala Jardel Filho, do Centro Cultural São Paulo, para 321 espectadores), encontramos
a cortina erguida a poucos centímetros do palco. Uma luz vermelha dá a ver o
conjunto de pés pulsando. Os pés estão calçados, mas não é possível identificar
o que calçam. Algumas canelas estão descobertas, outras vestem calças. Uma
delas, uma calça saruel branca. Essas canelas e esses pés movimentam-se em
conjunto rapidamente de um lado para outro. Estão de perfil para a plateia e
bastante próximos entre si. É difícil saber ao certo quantos são. Uma fila de
cerca de sete pessoas na frente, uma ou duas filas paralelas, na direção do
fundo do palco, com mais ou menos o mesmo número de pessoas. Não são filas
regulares, mas também não se amontoam. Existe uma regularidade em manter a
mesma distância entre si, mesmo quando se movem. Deslocam-se em quatro tempos
em direção ao centro do palco e voltam em quatro tempos para frente, bem atrás
da cortina que fecha a boca de cena. Passos curtos. Os quatro tempos têm uma
marcação firme e vigorosa. O quarto tempo tem a marcação mais forte. É essa
marcação que traz os pés na direção do ponto inicial.
À medida que o nome da peça é
anunciado nos alto-falantes, o som e o movimento sobre o palco continuam e é
possível perceber que os pés não estão meramente indo e voltando, mas que eles
estão “abrindo”, ou seja, cada vez que vão em direção ao centro do palco, seu
deslocamento é um pouco maior, há um avanço espacial. Percebe-se finalmente que
o grupo se encaminha para uma rotação de noventa graus. É possível então vê-los
de frente e seus pés se abrem cada vez mais. Eles já ocupam uma porção
importante da frente do grande palco. O som das vozes tem a mesma pulsação dos
pés, mas não é possível saber se vêm das pessoas sobre a cena ou de uma
gravação. Trata-se de uma espécie de urro monossilábico. Grave. Uma voz que provém
do ventre. Até agora veem-se apenas os pés. Uma batida eletrônica começa, traz
com ela uma voz aguda, cantando um refrão, em um idioma que se parece
português. É possível entender as palavras “senhor e senhora” [um sample de uma música do grupo pernambucano
Nação Zumbi]. A luz vermelha passa a contrastar com um estrobo cintilante. Ele
dá a ver agora grandes tênis, tênis de basquete, tênis de street dance, tênis brancos, uma calça saruel branca. Ainda se veem
somente os pés. A batida eletrônica acelera. O estrobo não permite ver o
momento em que a cortina se abre. E, de repente, o palco vermelho está aberto e
é possível ver um grupo de 10, 12, 15 pessoas. Homens e mulheres, torsos
masculinos nus, cabelos black power,
uma mulher com cabelos azuis, roupas pretas justas ou esvoaçantes. Mas a cortina não está completamente aberta.
Mais aberta em baixo e menos aberta no alto, ela forma um grande “V” invertido,
uma fenda através da qual olhamos e que ainda oculta as laterais esquerda e
direita do palco. O desenho da cortina fechada faz lembrar uma grande oca. Uma
oca vermelha. Uma leve fumaça. O brilho do estrobo. A pulsação dos pés é agora
uma dança fortemente ritmada que toma os corpos inteiros e ocupa o centro do
palco. Leva o grupo de um lado para o outro. Um grupo de homens negros e
mulheres negras. O movimento ainda em quatro tempos converte-se numa corrida,
que traça uma diagonal no palco. Os passos largos. Os braços imensos recortam o
ar, impulsionando o movimento. Um feixe de luz estreito se acende no meio do
grupo e uma batida da cantora Karol Conka se sobrepõe à batida anterior, sem
anulá-la. Os corpos negros, o hip-hop e o movimento coreografado compõem uma
cena de baile, que os espectadores espiam pela fresta.
Esse balé intenso toma cerca de sete
minutos, intervalo de tempo que parece muito maior para a percepção do público
de um espetáculo. Ele é a introdução, o descortinar do palco para a
representação de doze cenas, as quais poderíamos facilmente chamar de doze
movimentos para assim diferenciá-las do sentido de cena empregado pelo drama
burguês europeu e brasileiro, fragmento de espaço e de tempo que compõe a
totalidade de uma trama ilusionista, ou mesmo das cenas do teatro épico
brechtiano, espécies de prismas ou de pontos de vistas sobre uma situação
social. Nem a identificação burguesa, nem a exposição narrativa racionalista
brechtiana, estamos diante de outra coisa.
A missão em fragmentos... faz jus à intertextualidade, à multiplicidade de
referências, à justaposição de elementos de cena de maneira des-hierarquizada[3],
à fusão de gêneros, à recusa a uma explicação unificadora do mundo, pontos que
ainda fazem com que as formas do teatro de Heiner Müller tenham sentido
político e sejam desafiadoras do ponto de vista de sua realização cênica. Lembro-me
de uma fala dos artistas da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, coletivo
com 40 anos de existência e referência para a prática de teatro de grupo e
teatro político no Brasil, que também realizou uma montagem desse mesmo texto
de Müller, onde eles disseram que encontrar a obra desse “escrevinhador” foi
desvendar as possibilidades de um teatro que faz convergir os legados
aparentemente tão díspares de dois gigantes do pensamento teatral moderno:
Bertolt Brecht (1898-1956) e Antonin Artaud (1896-1948).
Há que se lembrar que Heiner Müller
é filho de mãe operária e de pai socialista, o qual foi prisioneiro dos
nazistas. Müller foi recrutado pelo exército do Reich em 1944 e acabou como
prisioneiro do exército americano, no fim da Segunda Guerra Mundial. Viveu a
maior parte de sua vida na República Democrática Alemã, na Berlim Oriental,
atuando como jornalista, escritor e dramaturgo, alcançando, graças ao seu
prestígio no Ocidente, produzir com relativa liberdade, sob a vigilância do
regime comunista. Embora gozando de reconhecimento internacional, especialmente
nos Estados Unidos, recusou-se a deixar a RDA e, assim, vivenciou de dentro os
últimos anos da Alemanha dividida. Seus textos empregam personagens e
referências da cultura clássica europeia, além de Shakespeare e outros, para
refletir sobre a polarização política mundial e sobre a condição do Terceiro
Mundo. Testemunham, por um lado, o fracasso de um comunismo de Estado, as
desilusões com a perda do seu ímpeto revolucionário, a fetichização dos
líderes, a burocratização do Partido; por outro lado, são trabalhos
profundamente críticos à pauperização e à massificação do mundo, provocadas
pelo avanço do capitalismo. Para além das divisões da Guerra Fria, Müller
estava atento ao Terceiro Mundo. Segundo ele: “Eu estou esperando pelo Terceiro
Mundo. Ambos os lados estão esperando pelo Terceiro Mundo. É a grande ameaça
para o Ocidente e a grande esperança para o nosso lado” (apud KOUDELA, op. cit., p. 82). Em 1992, três anos
antes de sua morte, tornou-se diretor do Berliner Ensemble, a célebre companhia
teatral fundada por Bertolt Brecht e sua esposa, a atriz Helene Weigel, em
1949.
Dialogar com as cenas apresentadas
pela A missão em fragmentos..., do
Coletivo Legítima Defesa implica em confrontar-se com uma multiplicidade de
referências históricas e contemporâneas do pensamento e da cultura, onde a obra
dramatúrgica de Heiner Müller torna-se apenas mais um retalho alinhavado em uma
imensa colcha. Isso já começa pelo nome do coletivo, que dialoga com a revista
publicada em Paris por um grupo de jovens intelectuais antilhanos, no ano de
1932, Légitime Defense, tornando-se
uma referência quanto à questão da identidade do povo negro caribenho frente à sua
assimilação violenta pela cultura e pelos interesses da metrópole francesa.
Os campos visual, sonoro e verbal na
peça constituem, assim, um
entrecruzamento coabitado por atrizes e atores, por projeções sobre o imenso
ciclorama do fundo da cena, por uma banda com piano, instrumentos de cordas e
metais, e pelas pick-ups do diretor e
DJ Eugênio Lima. Entre os músicos, o sul-africano Neo Muyanga, autor do
espetáculo Revolting Music, ao fim do
qual, em 2016, se deu a primeira aparição da performance Legítima Defesa, referida no início deste artigo. Todos esses
artistas, com seus corpos plenos de experiências singulares, com suas
expressividades e com o apoio desses múltiplos suportes e recursos descarregam
na cena, de modo convergente (harmônico, sintético) ou divergente (conflituoso,
justaposto), referências diversificadas a autores negros, símbolos da cultura
negra, de processos de libertação colonial e da violência epidêmica contra a
população negra.
Quem, como eu, não o reconhece, é
obrigado a pesquisar quem foi Amílcar Cabral, que aparece em imagens e em
discurso, descobrindo-o um herói da libertação de seu país, a Guiné-Bissau.
Homem negro assassinado como o jovem rapper americano The Notorious B.I.G., que
aparece glorioso em uma imensa projeção, ostentando uma coroa dourada. Vê-se
obrigado a pesquisar o que foi a Revolução Haitiana, processo de sublevação
negra, que culminou com o primeiro país americano independente das metrópoles
europeias, triste e contraditoriamente o mais pobre do continente, nos dias de
hoje. Esse espectador não detentor do conhecimento de uma história e de
personagens que passam à margem do veiculado pelos livros escolares, deixa
escapar muitas referências. Quantas leituras, quanto conhecimento é necessário
para absorver completamente o que nos é apresentado neste espetáculo?
O espectador mediano identifica
referências obrigatórias como a escritora Carolina Maria de Jesus e a ativista
e intelectual norte-americana Angela Davis, cuja imagem e cujas palavras
aparecem em um dos momentos mais poéticos da peça, quando um coro de percussão
de pés é acompanhado por um piano nostálgico, os quais dão a base para a voz da
atriz Palomaris Mathias ao microfone, em primeiro plano: “O que aconteceu com a
mulher negra, pobre, da classe trabalhadora? O que aconteceu com as mulheres
que não escreviam? Existe alguma forma de retomar a contribuição dessa mulher?”
Palavras que terminam engolidas por uma iluminação azulada e por um canto coral
telúrico, num idioma incompreensível, música que demanda as palmas e convoca os
corpos dos artistas a performar mais uma dança ritual. Também são convocados sujeitos
negros extirpados de suas famílias pela violência do Estado, os inesquecíveis
Amarildo Dias de Souza e Cláudia Ferreira Dias da Silva (sempre presentes!),
além de outros nomes de negros assassinados que desconheço e que são como
pequenos grãos num grande monte atroz. Uma voz feminina anônima testemunha a
violência obstetrícia de que foi vítima em sua adolescência, pelas mãos de um
Estado que não lhe prestou a devida assistência no momento do parto, levando à
morte de sua filha. As batalhas de hip-hop ou os ringues de boxe são empregados
para estruturar os embates entre os três emissários do texto de Müller, e suas
condições de raça e de classe. O chão do palco é marcado com um dialeto
desconhecido e com ideogramas que lembram os pixos hieroglíficos das nossas
selvas de concreto.
A missão em fragmentos do Coletivo Legítima Defesa revela-se assim um mosaico
complexo de referências históricas e existenciais, cores, formas, sonoridades e
idiomas, num jogo polifônico entre os artistas e as ideias mobilizadas pela
obra dramatúrgica. Penso ser extremamente importante referir-se aqui ao
brilhante “operador conceitual” cunhado por Leda Maria Martins (2006, p. 69-70)
- a noção de “encruzilhada”. De acordo com a autora, conforme concepção
filosófica nagô-ioruba, a encruzilhada é o “lugar sagrado das intermediações
entre sistemas e instâncias de conhecimento diversos”, noção adequada para se
pensar algo tão plural como o “tecido cultural brasileiro”, formado por
culturas e sistemas simbólicos diversos:
No âmbito da encruzilhada, a própria noção de centro se
dissemina, na medida em que se desloca, ou melhor, é deslocada pela
improvisação. Assim como o jazista retece os ritmos seculares, transcriando-os
dialeticamente numa relação dinâmica, retrospectiva e prospectiva, as culturas
negras, em seus variados modos de asserção, fundam-se dialogicamente, em
relação aos arquivos e repertórios da tradições africanas, europeias e
indígenas, nos volteios das linguagens, nos ritos e em muitas outras práticas
performáticas que instauram.
A encruzilhada não fecha a
interpretação em uma noção essencialista da cultura negra, pelo contrário,
afirma um modo de agir historicamente construído, derivado da resistência dos
negros mediante os sofrimentos infligidos, sua capacidade de transmissão da
experiência e do conhecimento e seu diálogo com as diversidades presentes no
caldeirão cultural brasileiro, resultando em modos particulares e complexos de
interpretar e de atuar sobre a realidade, donde soa descabida uma crítica sobre
a perspectiva de utilização do texto dramatúrgico alemão pelo coletivo negro
paulistano. Além disso, complexifica a abordagem daquele texto, o qual passa a
ser mero pretexto para o enfrentamento da existência contemporânea dos negros
no Brasil, sua relação com a divisão internacional do trabalho, e seu confronto
com o sistema hegemônico e racista das artes no país. Não permanecendo refém da
beleza e da força da dramaturgia mülleriana, não se contentando com a
pluralidade de vozes já apresentada pelo autor alemão, o Coletivo ensaia trair o
autor, enxertando em sua obra, outras vozes, outros ruídos, outros olhares,
outras paisagens. Teria sentido para o nosso teatro, para a nossa sociedade, a
revolução que o texto de Heiner Müller propõe? E teria A missão em fragmentos... obtido sucesso em trair tal modelo em
nome de uma nova experiência teatral?
III
Quero agradecer o convite para participar deste evento e dar
os parabéns à classe artística e intelectual branca paulista, que, em função
desse evento, está sendo impelida a participar dos debates sobre raça, racismo,
etnia, identidade, sociedade em rede no Brasil (Salloma Salomão, durante o debate
Arte e Sociedade: a Representação do Negro, Itaú Cultural).
A ideia de que A missão em fragmentos... consiste numa experiência menos
impactante do que a performance Legítima
Defesa realizada em 2016 é bastante óbvia, tendo em vista que essa última
apresentava um formato menos convencional, o de interpelar o público antes da
saída do espetáculo e realizava uma ação bastante provocadora, que era contar o
número de espectadores negros na plateia. A constatação - já esperada - de que
esse número era bastante reduzido presentificou e comprovou, de modo brutal, “o
racismo institucionalizado na sociedade brasileira, presente inclusive nos
campos ditos progressistas da cultura” (PRADO, 2017).
Deve-se acrescentar ainda que essa
performance guarda uma atitude marginal. Utilizei no início deste texto as
palavras “arrastão” e “sequestro de avião” para descrever aquele ato, pois foi
justamente a força que ele me transmitiu. Por um momento, foi como se aqueles
artistas negros usassem um rótulo que a mídia hegemônica, o Estado e o
preconceito velado da sociedade brasileira associam a indivíduos negros. Pois
se não podiam estar nos palcos e nas plateias eruditas da cidade, seria
justamente como assaltantes ou como homens e mulheres-bomba que iriam adentar
esses espaços para reivindicar e para apresentar aos brancos uma verdade
inegável, que a arte feita por eles e para eles não poderá mais se imbuir de um
pretenso caráter universal.
E agora, voltando a 2017, quando
esses mesmos artistas assumem o palco nobre e a grade de programação da
concorrida Mostra Internacional de Teatro, ganha sentido especial a metáfora e
a estratégia da cortina semiaberta entre a plateia e o baile dos negros,
cortina que ao mesmo tempo vela e revela. A plateia, maiormente branca, só pode
assistir à distância, como voyeur, essa enorme “onda negra” [4],
sacolejada por vivos e por mortos, onda de um oceano profundo de sofrimentos,
mas também de extrema beleza, intempérie que nos perturba por ter estado sempre
aí, testemunha dos crimes dos nossos antepassados, testemunha da tentativa de
seu aplacamento, vítima dos esforços para o seu apagamento da história[5].
Seu ruído é aquilo que a História tentou abafar. Como tebanos guardiões da
ordem estabelecida e do culto a um Panteão de deuses legítimos (leia-se a
conspurcada e incorruptível produção artística alternativa, crítica,
cosmopolita, tolerante e hegemônica de nossas cidades), espiamos por uma
fresta, detrás de um arbusto, o culto a um deus pagão, um balé frenético de
bacantes na escuridão da mata. Aguardamos perplexos pelo momento em que seremos
despedaçados.
Ao valorizar a cena negra que
vislumbrei, procuro não estar sendo guiado pelo desejo de encontrar nela um
segundo termo dialético a partir da experiência branca, um pólo negativo que
antecede uma síntese de valores humanos num futuro próximo onde a condição de
raça terá sido aniquilada (e talvez onde os privilegiados poderão novamente
reinar triunfantes), um lado irracional e sensível relativizado pelo
racionalismo branco. Como lembra Frantz Fanon (2008, p. 118): “Para os brancos
(...), os negros asseguram a confiança na humanidade. Quando os brancos se sentem
mecanizados demais, voltam-se para os homens de cor e lhes pedem um pouco de
nutrientes humanos”. Espero olhar para a singularidade deste trabalho não sob o
ponto de vista do que ele possa dar ao teatro que vimos construindo até aqui, mas
enquanto desestabilização dessa experiência, como proposição de uma nova cena e
um novo modo de estarmos juntos. A cena negra não vem para melhorar a cena
branca, mas para mostrar que essa não foi uma experiência feliz. E embora
muitos insistam em recusar, em negar essa verdade trazida por esses artistas em
sua “aparição” sobre a cena, embora um teatro alheio a tais revelações continue
insistindo em sobreviver, essa cortina semiaberta, a meu ver, aponta para o
futuro, um futuro que só pode ser negro. [6]
O teatro negro contemporâneo (e
também a dança) se estabelece na encruzilhada entre a cena (espaço branco,
europeu, local de reprodução e da produção de mundos) e a realidade, a história
a partir da qual se dá o seu florescimento. Não é apenas a necessidade de uma
nova lógica na ocupação desses espaços privilegiados de visibilidade que as
obras desses artistas faz ver, mas uma nova forma de ocupar e de compartilhar o
mundo. É um mundo claro demais, esclarecido demais, iluminado demais que
precisa ruir.
Quando, em 2016, o grupo de performers
invade o teatro e me interpela, torna-se evidente, para mim, algo que o
filósofo inglês J. L. Austin (1911-1960) abordou em seu livro How to do things with words, de 1962:
que algumas enunciações, mais do que declarar ou descrever uma realidade,
constituem em si uma ação (ou parte de uma ação). São os casos dos enunciados
performativos, quando dizer algo é fazer algo. Ao ordenar que eu fique, que eu
me sente, que eu os escute, esses artistas atuaram diretamente sobre minhas
atitudes e as de outros espectadores. A linguagem empregada pelos artistas é
dotada então de uma força, comunica antes um movimento do que um sentido e -
embora Austin (1962, p. 9-10) exclua do performativo as frases ditas em um
contexto ficcional, como um poema ou uma peça de teatro -, naquele momento, as
palavras utilizadas em um ato artístico soaram como ordens e quebraram a minha
inércia e a de muitos outros.
Durante o decorrer daquela
performance, eu pude distinguir momentos de enunciação forte, atos de fala, conforme
os já mencionados, de outros momentos, quando, por exemplo, os artistas
referiam-se a estatísticas ou relatavam fatos sobre discriminação, preconceito
e violência. Nesses casos, sua fala é portadora de conteúdos da maior urgência
e, embora estes sejam atirados como facas por artistas negros sobre uma
audiência branca, não são capazes de nos mover, nos deter. Sua fala está
imbuída de revolta, de agressividade, mas ela não faz mais, nesses momentos, do
que provocar em mim um sentimento de perplexidade e impotência. Ouso dizer que
ouvi-los aí não é muito diferente de ter acesso a essas verdades por outros
meios, escritos, audiovisuais etc. Como contemplar em um noticiário, a morte de
jovens negros, algo que tem feito parte do nosso cotidiano e a que reagimos com
maior ou menor letargia. Não basta um coletivo de artistas negros diante de mim
proclamando essas palavras para que o efeito da sua emergência me seja devidamente
transmitido.
Isso me conduz a pensar que a
“força” da performance, tal como referida no artigo de Miguel Arcanjo Prado, merece
ser relativizada, já que os artistas, ao invadirem o teatro, não o fizeram no
meio do espetáculo teatral do grupo alemão. Embora eles tenham interferido no
comportamento do público, obrigando-nos a permanecer nas cadeiras além do
requerido, eles o fizeram respeitando o término do espetáculo estrangeiro,
obedecendo à convenção do teatro “branco” que criticavam. Além disso, como sabemos
que se trata de artistas que estariam envolvidos na performance Exhibit B, que estaria presente na programação
da Mostra, há que se deduzir que a realização de Legítima Defesa deu-se em acordo com os curadores e coordenadores
do evento e até mesmo estimulada por eles. Isso minimiza, ao menos
parcialmente, o caráter intempestivo, espontâneo e contundente atribuído a tal
ato.
Sobre isso é importante dizer que a
presença deste ato e do espetáculo nas duas edições da MITsp inscrevem a
linguagem desses artistas negros em um texto que ultrapassa o de suas obras.
Eles instalam um discurso de diversidade em um grande festival internacional
brasileiro, patrocinado por grandes instituições. Assim como o debate de 2015,
ocorrido no Itaú Cultural[7],
por conta da acusação de uso de blackface
em um espetáculo, as apresentações do Coletivo Legítima Defesa no Centro
Cultural São Paulo, no Theatro Municipal e no Auditório Ibirapuera, ao mesmo
tempo em que impõem uma crítica ao modo de ocupação desses espaços também qualifica
esses últimos com um caráter de tolerância e de democratização. E aqui julgo
pertinente mais uma vez recorrer a Leda Maria Martins (1995, p. 40), quando, ao
analisar o teatro negro no Brasil, ela percebe dois aspectos: a invisibilidade
e a indizibilidade. Invisibilidade porque os negros foram representados nos
palcos enquanto um “retrato deformado”, “analogia com o branco, este sim, encenado como sujeito universal, uno e absoluto”.
Indizibilidade porque “a fala que o constitui gera-se à sua revelia,
reduzindo-o a um corpo e a uma voz alienantes, convencionalizadas pela tradição
teatral brasileira”.
Acredito que os artistas do Coletivo
percebem esses possíveis jogos e se mostram preparados para “trair” seus
patrocinadores, contribuindo efetivamente para uma mudança no curso da tradição
perversa revelada acima pela autora. Seu trabalho já revelou a capacidade de
imbuir o fazer artístico com a força crítica de seu pensamento e de suas
experiências de vida, pelo que julgo estarem confrontando não apenas alguns
mecanismos engessados e autoritários do sistema das artes, mas também
provocando uma crítica relevante no que respeita aos hábitos e ao “bom gosto”
teatral do país. No entanto, sabemos como a história é produzida. Basta citar
aqui dois artigos críticos escritos durante a 4ª edição da MITsp, em 2017. Em
um deles, sobre A missão em
fragmentos..., a jornalista da Revista Cult, Helô D’Ângelo[8],
escreve sobre o espetáculo sem citar uma vez sequer o nome de seu diretor ou de
nenhum de seus artistas. Ela não deixa de citar, no entanto, o coordenador da
MITsp, Antônio Araújo, um dos colaboradores do espetáculo, José Fernando
Peixoto de Azevedo e o curador do Centro Cultural São Paulo, Kil Abreu. Artigos
como esse deixam claro, além da péssima qualidade do jornalismo cultural em
nosso país, o fato de que outra história pode estar sendo escrita, à revelia de
alguns de seus protagonistas. Em outro caso, cito um renomado pesquisador da
USP, Luiz Fernando Ramos, que, ao analisar um controverso espetáculo também apresentado
na MITsp, Branco – o cheiro do lírio e do
formol, abordando a temática do racismo, mas curiosamente sob o ponto de
vista de artistas brancos, atribui tal transparência, tal onipresença e tal
poder de visão ao incensado dramaturgo e diretor paulistano Alexandre Dal Farra
(a jornalista da Cult não deixa de o citar), que chega ao extremo de
classificar o trabalho desse último como um “ drone (...) a voar sobre o
panorama da questão racial no Brasil”[9].
Curiosa essa surpreendente capacidade de retratar experiências, especialmente
quando a comparamos com a indignação expressa por muitos quando alguns
indivíduos negros requerem autoridade e mesmo exclusividade para falar sobre
racismo.
Voltando novamente para os modos como
a linguagem se faz presente nos trabalhos do Coletivo Legítima Defesa, percebe-se
que ela ora se apresenta como uma ação geradora de efeito imediato (a
interpelação ao espectador que se levanta da cadeira, que vai sair do teatro, a
contagem dos negros na audiência), ora esgotando-se enquanto repetição, enquanto
suporte insuficiente para os conteúdos que quer transmitir. Quando em uma das
cenas de A missão em fragmentos..., a
atriz Palomaris Mathias diz insistentemente ao diretor “Eu quero dirigir essa
cena, diretor!”, percebemos a artificialidade de algo previamente ensaiado, não
espontâneo. Fala sucedida por um subserviente “Posso começar, diretor?”. Ou
ainda, em uma das últimas cenas do espetáculo, quando o ator Luiz Felipe Lucas,
ocupando a plateia do teatro grita e gesticula intensamente, repetindo as
palavras do branco Debuisson, me questiona, em determinado momento, de modo
brusco, se eu estaria disposto a dividir com ele “minha fatia do bolo do mundo”.
Esse ato não me provoca. Por que aí não me sinto interpelado? Por que a
agressão verbal que ele me dirige não me afeta, como um ano antes no Theatro
Municipal, quando ele não me deixou levantar e ir embora?
A obra de Austin caminha na direção
da completa indistinção entre a linguagem constativa e a linguagem performativa,
com privilégio desta última, identificando a linguagem mais com uma ação do que
uma significação. Curioso é que, para ele, uma das características de um
enunciado performativo é o fato de que, por não ser uma descrição, uma
declaração ou uma constatação, ele foge às categorias de verdadeiro e falso (op. cit., p. 5). Tal enunciado
simplesmente opera. Independente de eu estar jurando em falso ou com intenção
de verdade, eu estou jurando. Contudo, no teatro, costumamos nos referir a uma
performance bem-sucedida, dizendo que tal atriz ou tal ator agiu “com verdade”.
Ao dizer isso, pensamos num sentido de correspondência entre os sentimentos e a
atitude de tal sujeito, os quais se unem no todo indivisível de uma ação, de
uma fala no tempo presente. E aqui é interessante trazer a crítica do filósofo
francês Jacques Derrida (1991, p. 351) à obra de Austin, quando ele nota que o
uso de uma metáfora para trazer a ideia de movimento ao performativo carrega
tal conceito (que se quer operativo) com significação. Além disso, Derrida
questiona a distinção que Austin faz entre uso “sério” da linguagem e seu uso
ficcional. Para Derrida, o uso da linguagem no teatro, que Austin considera
“anomalia”, “não-sério”, “citação”, é regido pelas mesmas condicionantes que
uma enunciado “performativo puro”, percebendo nesses últimos também a citação,
a iterabilidade, elementos que rompem com a singularidade, com a “pureza” de um
ato de fala, o qual se dá, não pela passagem de conteúdo ou de sentido, mas sob
a forma de “força por impulsão de uma marca” (op. cit., 363).
Na comparação entre ato de fala
“sério” e ato de fala por “parasitagem”, “citação” (caso da fala no teatro), o
que Derrida detecta é não a diferença entre um ato original e um ato
citacional, mas “marcas diferenciais” (op.
cit., p. 359). A fala teatral, com maior ou menor força, maior ou menor
verdade, revela, nessa perspectiva, o modo de funcionamento da língua enquanto
marca, rastro, citação. Impossibilidade de uma consciência plena de si em uma
performance “pura” ou absoluta, impossibilidade de um sujeito “transparente a
si próprio e aos outros”, sua fala traz sempre essa condição de uma citação,
representação, metáfora, que cinde com a suposta “singularidade pura do
acontecimento”.
Torna-se então o caso de buscar
perceber quais marcas caracterizam estes dois tipos de fala percebidos nas
obras artísticas investigadas, analisando-os mais quanto a graus diferentes de
citação do que em termos de oposição artificialismo e originalidade. A fala da
atriz ao diretor antes de demandar uma mudança efetiva na regra do jogo, ou
seja, a alternância de controle da aeronave cênica, busca sublinhar essa
possibilidade. Não temos como saber se a cena foi realmente dirigida por ela,
mas há um interesse em colocar para a plateia essa possibilidade. O gesto da
atriz, ainda que artificial, impõe um movimento forte sobre a cena, o que
contrasta com o momento subsequente quando ela proclama integralmente uma das
falas da peça de Heiner Müller. Aí, a beleza do texto do autor – “Nós o
condenamos à morte, Vitor Debuisson. Porque sua pele é branca. Porque seus
pensamentos são brancos debaixo de sua pele branca. Porque os seus olhos viram
a beleza de nossas irmãs” (MÜLLER, 2017, P. 30-1) – parece seduzir os artistas
e impedi-los de ultrapassar uma condição de citação reverente. São momentos
onde a forma como o texto é dito, sua marca no presente da cena, não se imbui
daquilo que ele busca transmitir. E a proposta da encenação, a meu ver, se
deixa trair pela pura poesia do “escrevinhador”, enchendo de beleza e de
contemplação um texto que é de confronto, de ataque.
Quanto o ator me interpela
utilizando o texto dos brancos Vitor Debuisson/Heiner Müller, ele está
repetindo essa fala na busca de alcançar a condição de seu pronunciamento,
caracterizar sua iterabilidade nos termos de uma ação concreta (são diversos os
momentos em que atores e atrizes repetem à exaustão alguns fragmentos da obra
dramática). A intensidade da voz e a força corporal impressa a tais falas buscam
imbuir o que é dito de confronto violento, um confronto que dá a impressão ser
muito mais entre os artistas e o texto do que entre artistas e público. Como
alguém que sacode um aparelho elétrico para que ele funcione ou empurre um
carro para ele pegar no tranco, eles agitam o texto mülleriano na tentativa de
que ele produza um efeito. E esse efeito é algo a ser produzido tanto sobre
eles mesmos enquanto enunciadores quanto sobre seus receptores. Parece que Luiz
Felipe fala o texto, tentando se livrar dele, expulsá-lo, o texto parece ser um
obstáculo entre si e os outros. Quando ele me pergunta se eu vou dividir com
ele minha “fatia do bolo do mundo”, ele parece não estar me questionando de
fato. É estranho ter a certeza de que não me sinto interpelado, não me sentir
interrogado. Seu olhar para mim não está em busca de uma resposta. Ele já tem a
resposta antes de me escolher na plateia. E ele toma o meu silêncio sorridente
como uma resposta, como uma recusa. Sinto-me como se eu estivesse ali como um
espelho, para que ele tomasse a réplica de si mesmo.
Pedir para assumir o controle de uma
situação. Solicitar o compartilhamento da autoria (da cena, da história).
Verificar se alguém quer abrir mão de um privilégio em nome do direito do
outro. São ações que A missão em
fragmentos... encenam. Em que medida são ações (questões) colocadas para a
plateia ou para os próprios artistas? E qual a medida que separa esses
enunciados sobre o palco dos enunciados que nos são colocados pelo presente, em
nosso cotidiano, nas ações afirmativas, nas representações culturais, sociais e
políticas?
Ruth Röhl (op. cit., p. 41) lembra que o teatro de Heiner Müller é destinado
“preferencialmente a grupos pequenos e com o objetivo de produzir espaços para
a fantasia, como uma ‘tarefa política’”. Que diferença entre este fato e as
grandes plateias do espetáculo A missão
em fragmentos... Talvez o grande interesse pela obra de Müller, o apelo de
um evento do porte da MITsp e o acirramento das discussões sobre racismo no
teatro, especialmente na cidade de São Paulo, tenham dado a esse espetáculo um status de super produção que interfere
no seu potencial de desencadear interferências micropolíticas, de interpelar
verdadeiramente seu público. E talvez venha daí a frustração e o tédio que
alguns espectadores com quem conversei mencionaram ao se referir à experiência.
Sentimentos que talvez sejam correlatos aos de muitos indivíduos acerca das
discussões sobre racismo e representatividade no país. Quando pensamos na
complexidade da questão do racismo, como o seu enfrentamento implica mudar
estruturas e modos de pensar enraizados, como ela lida com uma questão de culpa
coletiva que ultrapassa nossa mera existência individual, certamente não
podemos evitar um sentimento de cansaço, de frustração e de impotência. Por
outro lado, é preciso pensar também na importância de um trabalho como esse ocupar
tal espaço de relevo no mercado cultural da cidade pois essa talvez seja a sua
condição de chegar a determinados sujeitos e de se inserir em processos mais
amplos de participação política. Assume, no entanto, dessa forma, o risco de
não mais divisar seu público, de não assumir os indivíduos presentes como
interlocutores, mas de contemplá-los como massa homogênea e passiva. Outro
risco é de que o racismo apareça, por vezes, como um fantasma, como algo
genérico demais e, portanto, inacessível, contrastando com os momentos em que
ele aparece como um ator canastrão do velho teatro, que não esconde mais sua
obsolescência e que precisa ser varrido dos palcos, bem como quando aparece
como prática já banalizada em nosso cotidiano, que se esconde mesmo nas ações
simples de estar sentado, de entrar e sair de um teatro.
Referências
Bibliográficas
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do things with words. Londres: Oxford University Press, 1962.
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Sociedade: a representação do negro (2015).
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Torres Costa e Antônio M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991.
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enfrenta-lo. Disponível em: http://centrocultural.sp.gov.br/site/dossie_branco/Acesso
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RÖHL, Ruth. “Heiner Müller na
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negro como arlequim: teatro e discriminação. Rio de Janeiro: Achiamé /
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STORCH, Wolfgang. “A força emancipatória da traição: alguns
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MÜLLER, Heiner. A missão: lembrança de
uma revolução. Tradução de Christine Röhrig. São Paulo: n-1 edições, 2017.
[1] Exhibit B, instalação controversa do
encenador sul-africano Brett Bailey, baseado na experiência dos zoológicos
humanos, quando indivíduos oriundos de tribos africanas eram sequestrados e
expostos para apreciação e entretenimento de europeus e americanos. Esse
procedimento grotesco, por vezes travestido de experiência etnográfica, por
vezes assumidamente freak show, foi
bastante comum entre o fim do século XIX e a Primeira Guerra Mundial. John
O’Mahony (2014) lembra o caso de Ota Benga, um pigmeu sequestrado no Congo
belga, que, no ano de 1906, foi exibido no zoológico do Bronx, em Nova York,
juntamente com macacos e girafas.
A
obra de Brett Bailey recria e “busca subverter” a experiência dos zoológicos
humanos, através de quadros vivos retratando imagens de racismo e colonialismo.
Para isso, trabalha em parceria com performers negros nas cidades onde tem se
apresentado, durante a circulação internacional do trabalho. Este trabalho não
por acaso tem gerado polêmicas por onde passa. Desde processos incendiários em
Londres e Berlim, até o fechamento da exposição em Paris. Muitos dos
manifestantes contrários ao trabalho, recusam-se a acessá-lo presencialmente,
afirmando que a proposta não é em nada diferente da experiência colonial a que
remete. Em 2015, Brett Bailey foi impedido de se manifestar em um encontro
promovido pelo Tempo Festival, no Museu de Arte do Rio de Janeiro. Em 2016, a
MITsp alegou problemas com orçamento para cancelar a realização de Exhibit B.
[2] Teatro pós-dramático, expressão
cunhada em um livro homônimo do alemão Hans-Thies Lehmann, buscando abarcar
expressões do teatro pós-moderno que se distanciam da noção clássica de drama,
bem como de alguns pressupostos do teatro burguês tal como a dramaturgia
escrita que antecede à cena, a presença de personagens, de conflitos
psicológicos e da narrativa.
[3] A esse respeito, deve-se notar que o
teatro burguês europeu assentou-se entre os séculos XVI e XX, na hegemonia do
texto escrito, o que não ocorria com as expressões teatrais de caráter popular,
como a commedia dell’arte, baseada no
virtuosismo dos atores e no improviso. O século XX, que vivenciou revoluções no
âmbito da estética e nos modos de produção teatral, ocupando o encenador, na
maior parte das vezes, o papel hegemônico outrora ocupado pelo dramaturgo. A
essa tendência, devem ser contrastadas as correntes teatrais que enfatizam o
protagonismo dos atores e mesmo os processos de criação coletivos, onde o grupo
ocupa o papel simultaneamente de dramaturgo, de intérpretes, de encenador,
assinando ainda outras funções do espetáculo.
[4] No debate Arte e sociedade: a representação do negro, realizado no Itaú
Cultural, em 15 de maio de 2015, o educador Salloma Salomão, em seus
comentários finais, revela: “Eu demorei muito tempo para entender que talvez os
brancos se sensibilizassem com o racismo anti-negro. É um início. Não fiquem
com tanto medo!” E responde a um artista e mestre pela USP, que questiona da
plateia as acusações ao uso de blackface
no espetáculo A mulher do trem, do
coletivo paulistano Os Fofos Encenam: “Professor, não fique com tanto pânico
porque a onda é negra mesmo”.
[5]
Em seu
ensaio O negro como arlequim, Flora
Sussekind investiga “Por que o escravo ocupou um lugar tão secundário na
literatura dramática brasileira do século XIX, quando era um dos sustentáculos
de nossa vida econômica?” (1982, p. 18). Até as últimas décadas do século XIX,
o escravo aparece como “coisa”, desprovido do estatuto de “sujeito”, sem falas
dramáticas, apenas como referência difusa, nas falas de seu senhor. Com o
fortalecimento dos discursos abolicionistas, o escravo ganha novo estatuto, mas
o escândalo da escravidão é aplacado com a utilização dos escravos nas peças
como uma espécie de “metáfora” para “falar da necessidade de autonomia nacional
(...) vínculo entre colônia e metrópole, entre o país e o estrangeiro” (op. cit., p. 38). A autora cita ainda
estratégias para aliviar na cena, o risco de uma possível revolta dos escravos
mediante sua exploração como a preferência por figurar escravos que realizavam
trabalhos domésticos, aparentemente mais “leves” do que o trabalho na
agricultura.
[6]
Ao fim do
espetáculo, brancos e negros na plateia são convocados a subir ao palco e a
performar um ritual junto aos artistas, um momento que é chamado de Quilombo,
“conceito científico, histórico, social”, momento que dialoga fortemente com a
tão criticada frase “todxs somos negrxs” projetada no espetáculo. Essa frase se
relaciona com o que o filósofo camaronês Achille Mbembe chama de “devir negro
do mundo”: “momento em que a história e as coisas se voltam para nós, e em que
a Europa deixou de ser o centro de gravidade do mundo” (2014, p. 9). Ainda de
acordo com Mbembe: “Pela primeira vez na história humana, o nome Negro deixa de
remeter unicamente para a condição atribuída aos genes de origem africana
(...). A este novo caráter descartável e solúvel, à sua institucionalização
enquanto padrão de vida e à sua generalização ao mundo inteiro chamamos o devir-negro do mundo (op. cit., p. 18).
[7]
Banco Itaú
que, contraditoriamente, tem reclamações constantes de indivíduos negros que
sofrem preconceito por parte dos vigilantes de suas agências.
[8]
D’ÂNGELO,
Helô. MITsp: Teatro, racismo e lugares de fala. Disponível
em: http://centrocultural.sp.gov.br/site/dossie_missao/
Acesso em: 21. jul. 2017 15:35
[9]
RAMOS, Luiz
Fernando. O racismo de cada um e os
riscos de enfrenta-lo. Disponível em: http://centrocultural.sp.gov.br/site/dossie_branco/Acesso
em: 27. Jul. 2017