CATIVEIRO DAS BRANCAS
Os pesquisadores interessados em
fontes da história da escravidão brasileira costumam se deparar com o livro O Cativeiro (1938) do abolicionista maranhense Dunshee de Abranches de Moura. Um dos
principais registros memorialísticos sobre a luta pela abolição no nordeste do
Brasil. Assim, quando tive a oportunidade de assistir ao polêmico filme Vazante imediatamente me veio à mente um
dos capítulos mais interessantes destas memórias intitulado “O Cativeiro das
Brancas”. O texto é dedicado às humilhações e à opressão das mulheres
pertencentes à classe senhorial, que assim como Beatriz, personagem principal
de Daniela Thomas, eram negociadas e trocadas nas tratativas entre seus pais e
os futuros consortes. Um dos depoimentos mais interessantes, relatado pelo
abolicionista, é o de D. Emilia Branco, mãe dos escritores Arthur e Aluízio
Azevedo, que relatou com forte emoção os infortúnios do seu primeiro casamento.
Segundo ela, uma das razões para as desditas das senhoras, era o caráter
fechado, endogâmico, do sistema de casamentos no topo da hierarquia social, em
especial, entre os portugueses de nascimento. Segue o relato:
Tidos
os naturais da terra como peraltas, madraços e pelintras não lhes era permitido
levantarem os olhos para as descendentes diretas dos lusos que, em último caso,
importavam noivos para elas dentre os seus parentes das aldeias de além-mar. E,
se as pobres vítimas ousavam revolucionar-se contra esses éditos paternos, metiam-se em surras como perfeitas escravas
ou eram postas na rua como indignas e perversas. Esses castigos tocaram
certas vezes a proporções de crudelíssimos assassínios[2].
É interessante como o excerto
mobiliza a própria hierarquia da escravidão, através da associação com a
inominada cor branca, para sensibilizar o leitor. Um dos aspectos mais
degradantes da experiência da violência paterna e, depois, junto aos maridos,
para essas moças de estirpe, era sentirem-se como que assimiladas à condição de
“perfeitas escravas”, humilhadas como se fossem negras. O depoimento continua
esse jogo de associações:
Não
escapei eu também, disse-me D. Emilia, a esse verdadeiro tráfico de esposas brancas reduzidas a objetos de mercancia entre
os sócios, interessados e caixeiros, para consolidarem casa mercantis,
perpetuarem firmas comerciais, garantirem heranças e sucessões e não diminuírem
capitais realizados. (...).
O
meu noivado foi curto mas torturante. Tive que tratar com uma criatura brutal,
concupiscente, viciada na linguagem da gentalha da sua laia, proferindo a cada
instante palavrões indecorosos não mantendo a maior atenção e o mínimo de
recato diante uma adolescente, educada em rígidos princípios morais e
cuidadosamente instruída. Até as vésperas do casamento, fiz de tudo para
desmanchá-lo (...). Esse marido imposto à força de ameaças e castigos, fez logo de mim uma pobre escrava,
brutalizando-me de momento a momento...[3]
O ângulo sobre o qual Vazante lança um olhar sobre o Brasil da
escravidão é esse da mercancia de mulheres brancas. Embora a acalorada recepção
do filme tenha se concentrado imediatamente na questão racial deu-se pouca
atenção aos problemas de gênero. Ou melhor, ao modo como o gênero, a
perspectiva das senhoras e moças violadas, inflexiona os significados culturais
de raça.
No começo da trama o tropeiro Antonio
(Adriano Carvalho) sofre a perda da mulher e do filho num parto aparentemente
mal realizado. O acontecimento expõe ao personagem e ao expectador todo o
absurdo daquela vida. Ele era um senhor de terras e de pessoas, dono de todo um
novo mundo e, paradoxalmente, não tinha nada. Dessa perspectiva, a da casa-grande, a
reconstituição do sentido da vida passa pelo desejo de constituir uma família e
gerar um herdeiro de sua linhagem. O filme narra a frustração desse projeto a
partir da transgressão sexual de Beatriz (Luana Nastas), segunda esposa do
tropeiro português. Ela engravida de um garoto negro da senzala, o personagem
Virgílio (Vinicius dos Anjos), possivelmente um filho bastardo de seu marido
com a mucama Feliciana brilhantemente interpretada pela atriz Jai Batista.
Nesse sentido, o modo como o mundo
social de Vazante intersecciona
gênero e raça remete à famosa passagem de Gilberto Freyre no capítulo inicial
de Casa-Grande & Senzala: “Com
relação ao Brasil, que o diga o ditado: “Branca para casar, mulata para f...,
negra para trabalhar”; ditado em que se sente ao lado do convencionalismo
social da superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a
preferência sexual pela mulata.”[4]. A
interpretação do escritor de Apipucos é conhecida e sua ênfase recai sobre a
combinação entre violência e troca cultural na qual as figuras da mulata e do
mulato, produtos da miscigenação, se sobressaem como símbolos maiores da
identidade brasileira. Entretanto, conforme observou Lilia Schwarcz, no filme
de Daniela Thomas, aquele mundo desencantado e brutal não permite imaginar a
nação como fábula de três raças harmoniosamente unidas pela mestiçagem[5]. Sobre
as relações entre a casa-grande e a senzala não repousa, na atmosfera árida e
cinza de Vazante, qualquer
expectativa de civilização. Assim, o filme é também, para lembrar o subtítulo
do famoso livro de Paulo Prado, um ensaio sobre a tristeza brasileira.
Mas o dado que me parece
francamente original e completamente inesperado no mundo social do filme é que
a grande artífice das trocas e mediações culturais entre casa-grande e a
senzala é a mulher branca. A personagem Beatriz, concebida como ser plástico,
moleca doce e algo selvagem, lambuzada de terra, trepada em árvores, brincando
no mato, sendo o elo entre a natureza e a cultura, ela é a única que consegue
atravessar e conectar aqueles mundos de incomunicabilidade e violência. Seja
como peça de negócio matrimonial entre os homens, unindo casas e sobrenomes,
seja transgredindo as regras de posse sobre o seu corpo junto com um homem
negro.
Estranho que justo a crítica
interessada na relação entre racismo e representação no cinema e na arte em
geral passou ao largo desse elemento que me parece a coisa mais original desse
filme quando confrontado com a chamada questão racial brasileira. Assim, as
leituras de Vazante apresentadas pelo
crítico Juliano Gomes no Blog Cinética e, depois, pela escritora Ana Maria
Gonçalves e o cineasta Joel Zito Araújo no programa de televisão dirigido por
Pedro Bial exibido em 9 de novembro de 2017, me contemplaram parcialmente. Concordo
com a análise do lugar mal colocado dos personagens negros em certos momentos
da trama, mas não porque o filme devesse destacar a luta, a resistência ou a
agência negra pois a irritante beleza de Vazante
é revelar com diferentes matizes como esta tem sido esmagada. E essa é
parte fundamental da história brasileira que temos para contar a despeito de
Zumbi dos Palmares. Daí que soe mesmo estranhíssima aquela passagem do filme em
que ocorre uma rebelião de escravos sem qualquer sentido ou peso no
desenvolvimento da narrativa. Descompasso reforçado pelo brilhante desempenho
dos atores que deixam no espectador um gostinho de quero mais. Por outro lado,
compartilho com esses críticos e artistas a frustração pela ausência de sólidos
espaços de produção e visibilidade para formas alternativas de representação
capazes de mergulhar na multiplicidade das experiências, histórias e vida da
gente negra do Brasil. Afinal, para citar apenas um exemplo:
Daria
um filme,
Uma
negra,
E
uma criança nos braços,
Solitária
na floresta,
De
concreto e aço,
Então
veja,
Olha
outra vez,
O
rosto na multidão,
A
multidão é um monstro,
Sem
rosto e coração,
Hey,
São
Paulo,
Terra
de arranha-céu,
A
garoa rasga a carne,
É
a torre de babel,
Família
brasileira,
Dois
contra o mundo,
Mãe
solteira,
De
um promissor,
Vagabundo,
Luz,
Câmera
e ação,
Gravando
a cena vai,
O
bastardo,
Mais
um filho pardo,
Sem
pai
Esse filme brasileiro e outros
tantos que estão na fantasia de nosso povo, filmes vários, múltiplos, que vêm
sendo dançados, cantados e sonhados por tanto tempo nunca passam no cinema. E
quando te informam que está em cartaz, geralmente não é um longa metragem, as
temporadas são curtas, muitas vezes restritas ao circuito de alguns festivais,
a produção é barata e compromete os resultados, a visibilidade na imprensa é
baixa e tudo corrobora para que você perca as sessões. O Encontro Zózimo Bulbul de Cinema Negro – Brasil, África e Caribe, organizado
pelo Centro Afro-Carioca de Cinema na deliciosa e antiga sala do Cine Odeon no
centro do Rio de Janeiro, em agosto de 2017, revelou que esses obstáculos eram
compartilhados por atores, produtores, diretores, críticos e espectadores
negros de diferentes partes do país e do mundo, flagrando assim toda uma
criatividade sufocada pelas condições desiguais de financiamento, produção,
circulação e distribuição no mercado globalizado de filmes.
Não sem razão, as primeiras
declarações públicas de Daniela Thomas sobre Vazante, assumidamente alheias a este aspecto das relações de poder
que permeiam o seu próprio campo de trabalho, sobretudo quando coladas a
pretensão do filme de ser obra crítica da formação nacional, chocaram alguns de
seus interlocutores. De qualquer maneira, penso que a performance da cineasta
na imprensa marcou excessivamente a reflexão sobre o filme e conferiu pouca ou
nenhuma atenção, por exemplo, para a voz dos atores, grande parte deles formada
por negros. E nesse ponto, a hierarquia que exalta os diretores e críticos de
cinema enquanto os pensadores por excelência da profissão – em contraposição
aos atores, vistos como trabalhadores manuais do ofício, com pouco espaço
quando se trata do debate de ideias – deveria chamar atenção daqueles que se
preocupam com o “lugar de fala”. Também exige alguma reflexão o fato de que no
Brasil um ator como Fabrício Boliveira após a magnífica interpretação do feitor
Jeremias em Vazante não possa viver
esse momento como ele de fato merecia: a consagração definitiva de uma grande
assinatura no cinema nacional.
Por outro lado, a perspectiva
dessas senhoras violadas na fúria patriarcal, o depoimento histórico da matrona
maranhense Emília Branco, e a transgressão sexual de Beatriz, nos dizem algo,
penso eu, sobre alguns dos sentidos difusos sobre gênero, raça e linhagem aristocrática
no Brasil. Em termos alegóricos, o mundo social da ficção informa que o
controle matrimonial sobre o corpo da mulher branca racializa a linha divisória
que distingue o filho legítimo daquele que é considerado bastardo. O cativeiro
das brancas, para usar a velha expressão, protege a produção social dos
herdeiros, dos futuros proprietários, dentro de linhas de cor e sangue
aceitáveis. Sob o corpo dominado da mulher branca repousaria o sonho de pureza
e aperfeiçoamento racial das elites a despeito do processo de miscigenação. O
hedonismo despótico dos patriarcas é assim sexualmente liberado em suas
fantasias de luxúria, desejo e poder para com as mulheres consideradas
racialmente inferiores. Razões que fazem da construção cultural do bastardo, esse
ponto cego sobre o qual se enfrentam e dialogam, Mano Brown e Gilberto Freyre,
uma figura chave do drama racial brasileiro.
“Onde está o negro? Onde está o
bastardo?” gritava ensandecido o personagem Antonio ao descobrir que sua mulher
e linhagem haviam sido definitivamente maculadas. Vazante possibilita uma interessante leitura pessimista (e
feminista?) de que mesmo quando não há saída para a coletividade, através da
subversão das normas, o poder patriarcal pode ser ferido no campo simbólico e
do desejo, porque jamais detém o controle absoluto sobre a sexualidade feminina
e nem sobre o sentimento de maternidade, fonte de solidariedades não planejadas
entre os grupos sociais. O descontrole senhorial sobre o corpo de Beatriz abala
a estabilidade do poder na ficção, retirando do homem branco o seu lugar
histórico na condução do processo de miscigenação. E o faz, como o dissemos
linhas acima, destronando o mulato e a mulata do seu posto imaginário de
mediador cultural entre diferentes classes e raças para aí colocar a mulher
branca.
No filme Linha de Passe, dirigido
por Walter Salles e Daniela Thomas, essa operação simbólica também havia
ocorrido, mas numa configuração particular que não se deixa notar facilmente. Na
bela história da empregada doméstica Cleusa, interpretada pela atriz Sandra
Corveloni, cabe à mulher branca, algo escurecida pela pobreza, articular
realidades e expectativas diferentes. A maternidade era a base não controlada e
tensa que viabilizava uma complexa teia de fraternidades e disputas entre os
seus meninos. A personagem possuía quatro filhos com cores diferentes e um
deles era negro (Kaique de Jesus Santos). Ao cruzar a cidade de São Paulo para
trabalhar em casas ricas – “casas de família” como ainda se diz no Brasil, sem
nenhuma intenção de disfarçar o tom aristocrático – bem como no presumido
envolvimento dessa mulher com homens de vários tons de pele e, talvez, de
variada condição social, ela era um grande mediador cultural. E outra
substituição se fazia notar, ao menos para as atrizes negras, pois, na ficção,
Cleusa preenchia um lugar social tradicionalmente ocupado por mulheres pretas e
pardas na sociedade brasileira. Entretanto, o mundo rebaixado de pobres, não
raro, capaz de “sujar” a cor dos brancos, deu grande efeito de realidade ao
filme que foi aclamado pela crítica como um retrato comovente e verdadeiro do
país.
O mundo social de Vazante, brutalmente divido entre a casa-grande e a senzala, exige que o
personagem de Beatriz, para transitar entre os polos, represente uma certa
ideia de infância, bem contemporânea para a obra ambientada no começo do século
dezenove, na qual a ingenuidade feroz e maliciosa da criança rompe, quase sem
querer, as regras sociais estabelecidas. Outro elemento importante é que, após ser
entregue pelo pai ao seu marido e a partida definitiva de sua família, o resto
de autonomia que a personagem possui reside em sua virgindade, preservada antes
da consumação sexual do casamento, o que na prática se tratava de um estupro
doméstico. O conjunto de violências a que Beatriz é submetida e a repulsa que
causam no espectador articulam o simbolismo da pureza perdida, tanto pela
criança quanto pela menina que existem nela.
Isso permite ao filme conceber o trânsito da personagem central ao “mundo
infantil dos escravos” onde conhece seu amante, espaço em que a hierarquia
social é relaxada; uma enorme contribuição da ficção para a mentira histórica. O
senso de distinção social, e mesmo certa crueldade, ontem como hoje, não é um
monopólio dos adultos.
O recurso a tal “licença poética”
nubla as relações de poder entre Beatriz e Virgílio aos olhos do espectador. E uma
cena é particularmente eficaz nesse sentido, aquela em que após serem
surpreendidos pelo feitor mantendo intimidades proibidas, ambos são amarrados
da mesma maneira, visualmente igualados na tela, e assim trazidos de volta para
a casa. Momento em que Vazante
completa, naturaliza, o jogo de associações que D. Emília Branco fazia entre a
sua condição e o cativeiro dos negros. Assim o filme logrou um grande achado ao
colocar em pauta o desejo feminino de mulheres pensadas para serem uma espécie
de mercadoria, mas, nesse mesmo movimento, sublimou a cor desse desejo. Entretanto, apenas à Beatriz cabe hesitar na hora
do medo e só a ela cabe querer na noite da vontade. Numa tarde, os olhos de
Virgílio pousaram fascinados, rendidos, submissos, ao vê-la na escada da
cozinha. O garoto negro é doce e, como
tal, seu escravo.
O filme que abordou densamente,
numa linguagem de silêncio, olhares e violência, o envolvimento entre senhores
e mucamas, não enfrenta a relação de preto com branca. No cinema brasileiro, há
pouca “febre na selva” para lembrar o clássico de Spike Lee. E recordo-me do
silêncio chocado da plateia com a bela foda encenada por Seu Jorge e Fernanda
Torres em Casa de Areia (2005), ao
que se seguiu, após a sessão, os comentários sobre os “excessos do filme”. Os conflitos desse outro casal inter-racial, diferente
do que perfaz o sentido clássico da miscigenação no Brasil, no amor e no
fetiche, ou tudo junto e misturado, permanecem soterrados. O casal diabólico
imaginado por Nelson Rodrigues em Anjo
Negro, no qual o papai negro pinga gotinhas de ácido nos olhos das filhas
brancas para que elas não vejam sua cor e a mamãe branca aborta os meninos
escuros, é uma obra que continua ímpar na dramaturgia brasileira. No filme Linha de Passe, esse conflito pertence
aos muitos silêncios que Cleusa oferta ao seu filho negro, quando o assunto é a
identidade do seu pai. Em Vazante, o
problema é suspenso no colo de Beatriz, quando colocou, pela segunda vez, na
última cena, outro bastardo da senzala, um bebê, para chupar seus seios e
aliviar a sua dor. Instante em que o filme se desfaz por inteiro do tema do
“cativeiro das brancas” para inaugurar um estranho monumento, jamais visto nas
ruas e praças do Brasil. O monumento à Mãe Branca.
[1]Doutor
em Sociologia pela USP. Bolsista de pós-doutorado da Fapesp. É atualmente
pesquisador visitante no departamento de história da Universidade de Harvard.
[2]
Abranches, Dunshee. O Cativeiro. São
Luís: Edições da Academia Maranhense de Letras, ALUMAR, 1993 p. 123.
[3]
Ibdem p. 123.
[4]
Freyre, Gilberto. Casa-Grande & Senzala In: Intérpretes de Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, p. 240.
[5]
Schwarcz, Lilia. “Vazante é um filme repleto de passado”. Link: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/10/1926284-vazante-mostra-um-presente-repleto-de-passado.shtml.
Acessado em: 08/12/2017.