SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Bio-caminho

salloma Salomão Jovino da Silva, "Salloma Salomão é um dos vencedores do CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA RUTH DE SOUZA, em São Paulo, 2004. por dez anos foi Professor da FSA-SP, Produtor Cultural, Músico, Dramaturgo, Ator e Historiador. Pesquisador financiado pela Capes e CNPQ, investigador vistante do Instituto de Ciências Socais da Universidade de Lisboa. Orientações Dra Maria Odila Leite da Silva, Dr José Machado Pais e Dra Antonieta Antonacci. Lançou trabalhos artísticos e de pesquisa sobre musicalidades e teatralidades negras na diáspora. Segue curioso pelo Brasil e mundo afora atrás do rastros da diáspora negra. #CORRENTE- LIBERTADORA: O QUILOMBO DA MEMÓRIA-VÍDEO- 1990- ADVP-FANTASMA. #AFRORIGEM-CD- 1995- CD-ARUANDA MUNDI. #OS SONS QUE VEM DAS RUAS- 1997- SELO NEGRO. #O DIA DAS TRIBOS-CD-1998-ARUANDA MUNDI. #UM MUNDO PRETO PAULISTANO- TCC-HISTÓRIA-PUC-SP 1997- ARUANDA MUNDI. #A POLIFONIA DO PROTESTO NEGRO- 2000-DISSERTAÇÃO DE MESTRADO- PUC-SP. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- CD - 2002 -ARUANDA MUNDI #AS MARIMBAS DE DEBRET- ICS-PT- 2003. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- TESE DE DOUTORADO- 2005- PUC-SP. #FACES DA TARDE DE UM MESMO SENTIMENTO- CD- 2008- ARUANDA SALLOMA 30 ANOS DE MUSICALIDADE E NEGRITUDE- DVD-2010- ARUANDA MUNDI. Elenco de Gota D'Água Preta 2019, Criador de Agosto na cidade murada.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Ocupação Cartola no Itaú Cultural

Ocupação Cartola no Itaú Cultural em São Paulo.


extraída do site- Milton Montenegro

Meu filho mais velho se casou ao som de Cartola, ao invés de uma valsa vienense. E foi por escolha dele e Marta.  Desde que conheci suas canções, em meados dos anos 1970, me encantei sem bem saber como e porquê.  Agora imagino, que pela suavidade e autocontrole de sua voz e de seu verbo. Entrou em mim um desejo secreto por uma poética bem submissa aos contornos da melodia.
Abrindo uma brecha na ideia. Justifico minha percepção de canções exatas: São especialmente aquelas que constroem imagens surpreendentes ou outras em que as palavras ou fonemas não sobram em relação a simultaneidade das notas.  Por vezes não dá empate, sobra ou falta uma coisa ou outra, como se fosse uma roupa comprada no estrangeiro, para dar de presente a alguém que se quer, mas não tem as medidas.
Fui ver e explorar a exposição CARTOLA no Instituto Cultural Itaú por três vezes. Cada uma saboreei detalhes que haviam ficado para traz na pressa, na taquicardia e ansiedade de chegar a uma impressão, um veredito. Cada vez que fui, encontrei um tipo diferente de gente na visitação, a julgar pelas aparências. Mas quase nunca a tipologia caraterística de certos eventos culturais de elite, gente branca alternativa, estilo Perdizes e Vila Madalena. Gente que fala difícil e nos olha com curiosa complacência.
Efetivamente considero que há uma intensa mudança cultural em curso, algo além daqueles dados mais salientes, que a mídia ressalta, com o código cifrado “Nova classe C”. Um desarranjo conceitual que já vem ocorrendo há algum tempo no país, parafraseando Caetano sem ser rígido, isso muito me atrai, intriga e estimula.
A exposição, tal como aquela passada e dedicada a Dona Ivone Lara, é bonita e simples, resume e também abre uma perspectiva abrangente sobre a vida-obra do artista. Uma mistura de museu antropológico, instalação e espetáculo ou cenografia de teatro. Um forma de jogo de cena sem ação humana evidente, os visitantes sãos personagens e atores. Os funcionários uniformizados parecem colados nas paredes,  quase imóveis, mas não invisíveis.
A exposição sim. Produz encantamento, interesse, deslocamento. Sim. Traz memória e nos induz a identificação e estranhamento, revolta e carinho.
É estranho ver naquele lugar relativamente elitizado, aquelas imagens fotográficas, cinematográficas e televisivas de alguém de uma obra tão singular e longeva, hoje aparentemente reconhecida. Contudo, por quase quarenta anos Angenor foi mantido à margem do mercado de produção e consumo de música. Agora ali, tridimensional e tão suave. Aliás como devem ser os mortos. Ele  já se vai tão longe estando ainda vivo. 
A exposição nos ajuda a constatar ou confirmar o já sabido, da condição miserável com as quais o excepcional compositor e cantor negro teve que lutar durante toda sua vida, para somente no final gozar de alguma visibilidade e prestígio. Eu sou pleno de Revolta e indignação.
A desigualdade e racismo típico são introduzidos na cena, apenas por um detalhe. A  exposição de duas fotografias irônicas de Walter Firmo. Perspectivismo curioso e machadiano, duas imagens retidas por entre buracos e frestas das latas e madeiras velhas, no morro da Mangueira, restos de casas, barracos. Não sei se propositais ou por acaso. Não sei se acerto da algum preto sacana infiltrado na equipe. Ah essa maldita consciência negra. Empatias boas vinicianas.
Caramba, essa é nossa memória e legado. A experiência negra na formação concreta e imaginada da sociedade brasileira contemporânea é feita dessa contradição tensa e quase sempre negada. De um lado tudo é exclusão, exclusividade e permanência. Do outro quase tudo é feito de recriação, criatividade e resistência. Isso é encantamento
Digamos estamos assistindo a uma espécie de irredutibilidade das culturas negras, em todos os microespaços da vida social, isso apesar do racismo sistêmico antinegro, que nos acompanha e se acirra mais ou menos, dependendo das circunstâncias, espaços e condições gerais.  Podemos chamar isso de deslocamento.      
Conversando com funcionários de baixo escalão da ilustrada casa, é evidente que Cartola, Dona Ivone Lara e outras figuras negras de proeminência, atraem um público que escapa ao perfil mais enobrecido e tradicional dos centros culturais que ficam no entorno da Avenida Paulista e Jardins. Mas também é bem verdade que os mais pobres e menos escolarizados tem avançados para as áreas nobres de cultura, entretenimento e lazer que eram antes mantidas exclusivas, com aplicação prática de sutilezas discriminatórias. Por exemplo, manter apenas funcionários negros nas funções mais subalternas e uniformizadas, funciona como um recado, de que os lugares de negros, mestiços e pobres nestes lugares se reserva apenas a condição de serviçais.  É muito difícil limpar os olhos educados com a codificação racial aplicada aos lugares e hierarquias. Isso é permanência estrutural de longa duração. 
O Itaú, parece ter realmente aproveitado ao evento do Blackface e desenvolvido um intenso trabalho de reavaliação do perfil de suas atividades e de seus frequentadores. Essa mudança na percepção das elites corporativas vem sendo ensejada por organizações negras desde a década de 1990, ou pelo menos, após o seminário coordenado por George Reid Andrews. Mas é justamente no núcleo duro das instituições e corporações onde há menos diversidade racial e maior rigidez na conservação do poder, prestígio e mando.
Desculpe. Voltando para exposição do Cartola no Itaú. Uma belíssima atualização da obra de Cartola com leituras de Jussara Marçal, Ellen Orélia, Raquel Virginia e Rico Dalasam. As letras das canções em natura, manuscritas, rabiscadas, em papeis reaproveitados com timbres de órgãos estatais desaparecidos, são registros históricos incandescentes, retidos em molduras envidraçadas.
Não pude deixar de memorizar a descrição preconceituosa típica da elite de esquerda brasileira ligada as artes, quando quer elogiar ou destacar alguém de origem negra ou pobre, ou como se prefere dizer, de origem humilde, para esconder concomitantemente as injustas desigualdades combinadas de raça e classe. O cineasta Cacá Diegues fala da participação de Cartola em Ganga Zumba, seu primeiro longa metragem de 1963. “Desconheço alguém na cultura brasileira, que tivesse uma atitude tão principesca diante da vida, uma posição tão altiva e até estoica.”
Essa ideia de nobreza ou fidalguia, de pretos e pobres, pode ser entendida como uma forma de dizer, que somente os especiais se destacam na paisagem extraordinária, de uma determinada área do conhecimento ou das artes. Especificamente estes seres especiais, aos quais são impingidas marcas comportamentais muito próprias as pessoas de alta estirpe.
Tipo alma não tem cor. Ou nobreza vem do berço. Algo sobre refinamento e polidez inata. Caramba. Isso é verdadeira negação de Norbert Elias e a negação da historicidade das culturas. É o cumulo dos valores aristocráticos e preburgueses. Diga-se de passagem, muito próprios da cultura elitista e neocolonialista brasileira. Uma saudade danada do império.
Quem entra numa loja de instrumentos musicais da LP, (Latin Percussion) instrumentos musicais ultramodernos de origem africana, não consegue ver ali, tecnologias sonicas ancestres. Mas são equipamentos musicais de alta performance, desenvolvidos por africanos, afrocaribenhos, afro-brasileiros e capturados por grandes corporações  capitalistas, que os retiram seletivamente do fabrico artesanal e os redesenharam para linhas de montagem industrial e comercialização global.
Os descendentes de africanos no Brasil, Argentina, Cuba, EUA, Colombia, França e Inglaterra, ao longo do século XX participaram ativamente na criação do mercado de produção e consumo de música, entretenimento e lazer. Raramente figuraram como donos de meios de produção e difusão, mas isso não quer dizer que sua atuação não contribuiu para formação de um universo novo de consumo, musicalidades e uma serie não comensurável de novos, valores, ideias e comportamentos, mas também tecnologias para criar, capturar e difundir música. Tudo isso teve nossa participação ativa.
É chegada a hora de valorização dessa participação, desse ativismo criativo, que foi abrindo caminho para um novo tipo de cidadania cultural, onde a memoria é tão importante, quanto a inserção profissional de jovens negros e negras em todas as esferas desse universo de beleza, poder e criatividade. Vida e obra de Cartola, mas também esta exposição nos serve como referência e alerta sobre as inúmeras formas de expropriação material e simbólica, como também de diálogo francoaberto e conflito ético. Hoje estamos bem atentos sobre nossos legados, diante dos usurpadores dos direitos reais já conquistados e daqueles de cunho subjetivo, que mantemos no horizonte. Isso é a verdadeira Modernidade Negra.

Sim. Em meio a todo debate sobre “origens” das musicalidades negras brasileira tem toda uma luta para se ter a acesso a memória cultural, para se poder acessar essa memória sem custo ante o flagrante avanço da mercantilização das memórias e práticas culturais negras. Há também diferentes gentes na luta pela repatriação de documentos sonoros levados para os EUA nos anos quarenta. Detalho aqui apenas uma tentativa de compreensão, de um mundo muito  complexo e rico da história dos processos de  identidades étnicas e culturas musicais na pós modernidade. Tudo visto por olhares negros e geografias externas.


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