Essa é uma verdade incontestável, admitida até por gente reconhecida e sábia como Cacá Diégues, mas algumas criações recentes vão deixando nódoas criativamente negras, nessa história de assombrosa brancura.
Aguns especialistas em “Historia da arte” sustentam que uma obra artística é duradora quando o seu autor consegue captar um momento de mudança histórica e dá a este instante um significado especial através das obras, usando habilidades e apuro estético singular. Não sei se concordo muito com tal idéia, porque ela descarta o aspecto relacionado das convenções que regem a avaliação da obra artística. De todo modo, Jennifer de Renato Candido, ao que parece, apresenta tal capacidade.
Trata-se de um enredo singelo, mas seu desenvolvimento escapa ao clichê e capta um certo movimento, uma mudança, um deslocamento bem atualizado do debate sobre identidade negra no Brasil. Esta é a principal característica e ao mesmo tempo o grande mérito do Filme. O seu autor certamente tem muito mais para nos apresentar, sendo apenas questão de tempo.
O filme contou recursos para lá de parcos (menos de 100 mil reais), considerando os orçamentos dos maiores arrecadadores da indústria do cinema no Brasil em 2011, argh!!!! Tropa de Elite, com zilhões de dólares.
Deixem-me dizer de forma sintética como foi que vi o filme. Renato generosamente me doou um copia e em retribuição fiz um almoço no quilombo da Serra, minha M’Goma. Assisti Jennifer na companhia de minha mulher Cristina e minha filha do meio, Luiza. Isso ocorreu no último domingo friorento, depois de muito trabalho braçal. Fim de tarde e eu descansava para mais uma semana de “eterna labuta”, como diria meu filho Gabriel.
Com uma agenda despretensiosa e um elenco enxuto, o jovem cineasta negro paulistano, Renato Candido com sua Jennifer plasmou em imagens digitais o momento em que o discurso de identidade do movimento negro é deslocado por novos agentes sociais do seu caráter autoritário e essencialista anterior, para uma dimensão mais dinâmica e plural, no qual a identidade negra brasileira se submete as noções de processo, construção e diversidade.
Calma que eu vou explicar... Nos anos 1970 o Movimento negro era profundamente marcado pelos limites de um debate que se arrastava desde os anos 1930 e os grupos negros organizados estavam concentrados no sudeste, com organizações esparsas e frágeis no Nordeste e Sul. Tentava atacar simultaneamente a invisibilidade do racismo e cunhar uma noção de pertencimento, onde a percepção conectada a cor da pele e a raça negra fossem os agentes aglutinadores. Crente na idéia de que toda ação política depende de uma vanguarda, o Movimento Negro Unido (MNU) buscava, desde 1978, construir uma frente capaz de mobilizar a população negra, para o que se imaginava ser uma ação nacionalmente articulada e de “massas”.
Nesse núcleo discursivo do ativismo político negro de 1970-1980, havia pouco ou nenhum espaço para um pertencimento que levasse em consideração as trocas culturais, a miscigenação e ou o duplo pertencimento. Ainda assim vozes dissonantes se apresentavam, apontando o dedo para exclusividade do masculino negro e retinto que, ao que parece, dominou a cena nesse tempo imprescindível de denúncia, filiação partidária e reelaboração ideológica.
De fato predominava um caráter urbano e universitário nos grupos negros nesse período. Designados “elitistas” pelos detratores, não era essa uma acusação totalmente infundada. Entretanto é necessário salientar que tal problema era alvo de reflexão e debate no próprio interior do MN. Não obstante as dificuldades de ampliação somente puderam ser relativamente ultrapassadas com a ajuda dos partidos políticos e da Igreja Católica, que aquela altura, tinha um grupo barulhento de ativistas antiracistas negros inseridos nas fileiras. No início dos anos 1980 PT, PDT e PMDB trataram de acomodar algumas demandas do Movimento Negro. Alguns dos seus membros assumiram pastas e postos de pouco prestígio nos governos estaduais recém eleitos. Em 1989 Erundina criou a CONE em São Paulo.
Entretanto na década de 1990 a música Rap e o movimento Hip Hop já haviam solapado e redimensionado o discurso de negritude, dando-lhe uma dimensão contundente e periférica. Talvez a música Rap tenha alcançado um publico e desenvolvido uma reflexão pública sobre racismo anti negro e exclusão social de causar inveja a alguns ativistas mais antigos. Não tardou para que algumas aproximações ocorressem. Salve Levi e Sueli Shan, entrincheirados em Diadema.
A estética Rap se nacionalizou e o Mundo Hip Hop rapidamente se expandiu e diversificou, assumindo novos textos e abrindo contextos. Racionais a frente do processo amenizou ao acento negro, assumindo a periferia, violência e exclusão como eixos identitários. A emergência do mercado paralelo de consumo de Rap e Pagode, no Brasil no fim dos anos 1990, muito provavelmente já era um prenúncio da crise que daria fim a indústria fonográfica nos anos recentes e, que já foi tarde.
Acredito que essa digressão é necessária porque o filme Jennifer nos estimula a olhar a História das rupturas, ambiguidades e continuidades da luta negra antiracista no Brasil em geral e as estéticas negras em específico. A estética negra no cinema é, sobretudo, a mais descontinua e tênue, entre todas as linguagens artísticas. Nosso cinema tem sido caro, claro e branco. As imagens de brancura se reproduzem na tela, detrás delas e na sua assistência. Exceções existem desde os anos 1960, mas negros raras vezes são protagonistas nessa área de saberes e fazeres, que combina entretenimento e arte, consumo e política, cultura e banalidades.
Agora posso voltar para Filme? Sob pena de reduzir em excesso, vamos lá.
A narrativa fílmica de Candido tem como protagonista Jennifer, uma adolescente negro-mestiça da pele clara, moradora na Zona Norte da cidade de São Paulo. Estudante de ensino médio, ela divide seu tempo entre a casa, a escola de ensino médio e a lan house. Utiliza as ferramentas digitais para manipular sua imagem e parecer mais branca, mais velha e corpulenta nas fotografias postadas nos site de relacionamentos sociais. Seu drama maior é em relação ao cabelo, que vive alisando. Jennifer vive em uma casa térrea com quintal, com a mãe, uma mulher negro-mestiça jovem de pele mais escura. (É necessário mencionar diferentes tons de pele, porque são importantes na construção visual, fotográfica e textual do filme).
A narrativa fílmica de Candido tem como protagonista Jennifer, uma adolescente negro-mestiça da pele clara, moradora na Zona Norte da cidade de São Paulo. Estudante de ensino médio, ela divide seu tempo entre a casa, a escola de ensino médio e a lan house. Utiliza as ferramentas digitais para manipular sua imagem e parecer mais branca, mais velha e corpulenta nas fotografias postadas nos site de relacionamentos sociais. Seu drama maior é em relação ao cabelo, que vive alisando. Jennifer vive em uma casa térrea com quintal, com a mãe, uma mulher negro-mestiça jovem de pele mais escura. (É necessário mencionar diferentes tons de pele, porque são importantes na construção visual, fotográfica e textual do filme).
Tem uma rosa que surge sempre próxima de Jennifer, essa a é tal singeleza, poderia ser qualquer uma outra coisa ou símbolo. Há um mundo juvenil e periférico muito bem reconstruído no filme, é uma reconstrução humanizadora da nossa realidade social, na qual predominam a busca pela prosperidade, dignidade e inserção social. Embora as imagens midiaticamente projetadas insistam na estética da violência endêmica, no discurso da auto-exclusão e na reiteração dos sistemas de controle ( público e privado) das turbas mestiças e ignaras. Via de regra somos talhados como gente marrom, invasora dos bairros nobres, das praias, dos centros de compras e universidades públicas.
Jennifer não busca a brancura com desespero, mas sente a opressão da estética social embranquecedora e tenta da sua forma ultrapassar a “linha da cor”. Somente recobra a consciência negra adormecida em si, quando mãe ao perceber seu dilema evoca a figura da ancestralidade negra feminina representada pela avó. O desfecho não tem tiro, morte, nem separação, mas afeto e solidariedade.
Há uma delicadeza e sinceridade que transparece no filme, mas que também verifiquei em algumas canções dos Cds de Rap de Crioulo e Emicida, que me parecem ter ido muito além o enredo masculinizante e suicida, retoricamente viril que até então vinha seduzido socialmente homens e mulheres jovens. Enredos estes que são produzidos, em sua maioria, por homens maduros e brancos que controlam as empresas de entretenimento urbano (Cinema, Música e Espetáculo).O filme tem suas fragilidades aqui e ali, mas nem merecem registro.
Uma trilha que somente não é primorosa porque a captação de áudio foi um tanto precária. O elenco predominantemente jovem funcionou muito bem. A fotografia, o andamento, o som funcionam adequadamente. O enredo cumpre a meta e em algumas cenas familiares somos levados a uma empatia emocionante, como por exemplo a cena de Jeniffer respondendo a um cliente grosseiro, quando já havia conseguido o emprego de caixa.
Tenho agora 50 anos e, ao invés de outros homens públicos velhos mal humorados e com olhos fixados no passado, como o rabugento Antonio Abujamra, por exemplo. tenho visto e saudado o aparecimento dessas novas artes e ativismo negro, com um interesse e entusiasmo vivo. Viva Daniel Fagundes, Rogério Pixote e Renato Candido.
SILVA, Salloma Salomão Jovino da.
Média Metragem “Jennifer” - Vídeo 24p HDCAM
Realização: Odun Formação e Produção – Projeto VAI – Pró-Reitoria de Cultura e Extensão USP
Direção: Renato Candido
Com: Juliana Valente, Gabriela Balmant e Sidney Santiago
Sinopse: Jennifer, adolescente negra moradora de bairro periférico, utiliza recursos de edição digital de fotografia para tornar-se mais sensual e atraente a quem ela ama. Mas não conseguindo lidar com sua baixa auto-estima, Jennifer se dá conta de sua dificuldade entre ser e se simular.
Realização: Odun Formação e Produção – Projeto VAI – Pró-Reitoria de Cultura e Extensão USP
Direção: Renato Candido
Com: Juliana Valente, Gabriela Balmant e Sidney Santiago
Sinopse: Jennifer, adolescente negra moradora de bairro periférico, utiliza recursos de edição digital de fotografia para tornar-se mais sensual e atraente a quem ela ama. Mas não conseguindo lidar com sua baixa auto-estima, Jennifer se dá conta de sua dificuldade entre ser e se simular.