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O Instituto.
"Nem o frio distante de Lyon
nem o olhares frescos das cortesãs saciadas
nem a brisa imberbe durante a febre terçã
tem a voragem definitiva do arco em chamas que te alocará do chão."
Sanderval de Lancaster. (1356)
nem o olhares frescos das cortesãs saciadas
nem a brisa imberbe durante a febre terçã
tem a voragem definitiva do arco em chamas que te alocará do chão."
Sanderval de Lancaster. (1356)
Como de costume tomamos café no pátio. Assim eram todas as manhãs, a não ser quando chovesse. De tudo a gente comia, queijos variados, frutas secas, bolachas recheadas. Todos meio-nus no átrio sacro e no mais puro silêncio. O barulho do sapato dele fazia um eco tão forte no corredor, que dava a impressão de que mil homens, em trajes de guerra entrariam por aquela porta. E se viessem, certamente eles entrariam armados. Mas não, nunca, somente gente pura e casta entrava e saia daquele lugar. A cruz de malta ficava lá, centro do jardim, uma velha senhora, guardiã atemporal.
Desde a adolescência nossa rotina s elaterou pouco. Para alguns de nós permaneceu mesmo depois da desinternação. Acordamos, oramos, fazemos o serviço de quarto, descemos para o salão e novamente oramos. Depois é que vamos para pátio esperá-lo. Nos últimos tempos começaram a deixar que troxessemos coisas de casa, as vezes até incentivavam, eu trouxe um velho terço e uma guia de Oxalá. O primeiro herdei de minha mãe e o segundo de meu irmão inciado na Umbanda.
Certo dia após a oração matinal nos autorizaram a vestir nossas roupas, inclusive roupas étnicas. Uma outra vez, há quase dez anos ele, em pessoa, nos surpreendeu ao dar uma aula sobre Legbará e Sumé. Imagine só, ele sabia de tudo, conhecia muito bem alguns segredos, cantigas, orações, sinais de buzios e risco no ar.
Na maioria das vezes ele chegava calmo, normal, magro, quase franzino. Mas era gigante quando emergia da penumbra do seu escritório. Primeiro deixava que a luz projetasse uma sombra do tamanho da porta no corredor. Parava um pouco, depois ingressava performático. Antigamente aquela me parecia uma porta enorme, talvez a maior porta do mundo, menor apenas que a porta da Igreja da Penha e por sua vez era menor, talvez um pouco menor, que a famosa porta do céu. Que nunca vi, mas imaginava, quando cria.
Quando eu cheguei ao Instituto imaginava ele e deus, juntos conversando. Deus, grandalhão e velho, branco e barbudo e ele com seu queixo fino, a cara sem pelo, a pele lívida dos santos de madeira policromada e as mãos de limpas de um intelectual, mais macias que couro de peixe sem escama.
Lá estava ele, tranqüilo, branco, médio e educado. Falava com todos em público, fazia questão de se dirigir a cada um pelo nome e sobrenome. (Desgraçado, cínico, monstruoso).
Quando em vez escolhia alguém. Era sempre o mais cheiroso, alvo e limpo e cochichava. Ele chegava bem perto e cochichava o apelido que ele mesmo nos deu. E por vezes ria, mas ria comedido. Punha a mão no rosto para se esconder, mas ria. Era então quando pronunciava nosso nome secreto, era nosso segredo, ele brincava. Lembro-me que falava manso no pé da orelha e isso em mim dava um tremendo arrepio, eu já não era mais um menino. (tarado sádico, excomungado).
O reitor fazia uma prelação breve. Retirava dois ou três de nós para uma oração mais longa em seu escritório, que ficava no terceiro andar do prédio. E somente os escolhidos, o bem escolhidos, os escolhidos a dedo podiam entrar em outra sala contigua ao seu escritório. Eu nunca fui lá. Quem já foi nunca me contou nada.
Naquela manhã chegou mais cedo que de costume, veio como pisando em plumas, não fez barulho. Apenas eu notei, notei não, senti, senti seu peito que ofegava, enquanto ele ficou um longo tempo nos observando por entre as folhagens. Pensei. Qual seria o motivo? Cansaço, medo, angustia? Sei lá. Era um homem encantador, previsível, meticuloso e tão estranho. Não dizer sei se era seu sotaque do sul meio cantado, ou quem sabe os resquícios de latim.
Ele vinha vigoroso naquela manhã. Algo maneira diferente de andar, na roupa tão bem passada, sempre escura, pesada. Parece que escondia alguma coisa por detrás das palavras e da roupa. Como posso explicar isso? Na maioria das vezes que o via e ouvia falar, sentia algo como ver um filme, cujas legendas expressam coisas totalmente divergentes das imagens, uma flagrante contradição entre gestos e expressões faciais dos personagens e o enredo da história.
Mas o que isso quer dizer?
É um estado da alma, como diria Lima Barreto, uma tecla sensível. Quando ocorre somos levados a desconfiar da nossa própria capacidade de tradução. Não sei se acontece com você, mas por vezes me vejo em situações desse tipo. Isso é muito diferente de assincronia, delay ou atraso, como as antigas transmissões de internet. Suas abordagens me davam esta sensação.
O desconforto que me causava, era muito maior, que assistir a uma técnica mal apurada. Por vezes penso que sou eu quem desconectava temporariamente. Surgia em mim uma espécie de desdém pelo tempo real da vida, um apego por fragmentos de segundos. Por exemplo fixação em uma cena ou uma frase.
Era tão repentino. Bum, uma imagem sem som, em slow. Depois voltava aos poucos até reencontrar o prumo e o sentido . Outras vezes via que as bocas se moviam, as línguas iam aos dentes, mas ficava um vácuo de semibreve, entre mim e as coisas, as coisas e o mundo.
Isso não importa, mas já que quer ouvir, vou contar mais. Ficavam e ainda fico fora de mim. É apenas meu corpo solto no mundo. Tenho quase sempre volume exato das coisas, mas não tenho as referências do som. O som é uma coisa esquisita. Me imagino como alguém que ficou sem ouvir nada a vida inteira e de repente, já quase idoso, pudesse ouvir. Ficaria louco?
A questão não é o som e a imagem, é a imagem e som do mundo. Esquece é muito delírio. Não vou contar mais, desculpe, vou retomar a tal história.
Aquela manhã ele parecia especialmente diferente. Não escondia os olhares como alguém falsamente tímida, não media as palavras como um orador profissional que era. Contudo falava diferente, dois tons mais alto, rápido e estridente. Quero dizer, um tanto mais agudo. Seus trejeitos não eram propriamente efeminados, mas menos contidos. Levava constantemente a mão esquerda ao cabelo e parava. Mexia no lóbulo da orelha carinhosamente, reflexivamente, olhava para nós, através de nós ou para o nada.
Sentou-se e repetiu a ladainha costumeira, monotônico e entediante. Estava como de praxe, no trono, ou melhor, na sua cadeira exclusiva, na qual ninguém se sentava sob o risco de não sei o que. Ditou mecanicamente a prelação matinal.
De repente começou a contar porque havia construído aquele lugar, o INSTITUTTO. Falou sobre suas atividades acadêmicas, lembrou-se de sua mãe. Do nada começou a narrar a última partida de futebol que jogou no fim da infância. Ninguém acreditou naquilo. Seria uma peça, um texto novo, uma pegadinha? Ele falava:
“Eu adorava jogar bola, o futebol, era única coisa que meu pai elogiava em mim, minhas qualidades de futebolista. Talvez por isso eu gostasse tanto de bola e ainda hoje gosto. Estranhamente meu pai percebeu em mim, o dia em que algo dentro mudou irreversivelmente, não sei como, mas ele percebeu. Minha mãe somente percebeu muito tempo depois, pouco antes de morrer.”
E seguia...
“Vocês que me vêm hoje, não têm idéia do quanto eu jogava bem futebol. Apenas eu, entre todos os moleques do bairro tinha uma bola de capotão, era assim que se chamavam as bolas de couro e a minha durou anos. Todo fim de jogo, eu a levava para casa, lavava e passava banha de porco, para conservar o couro. Naquele tempo era um brinquedo tão caro e raro, que muitos meninos ficaram meus amigos, somente em função dela. Da bola. Olhem só, uma esfera de couro, cortada em gomos, com uma câmara pneumática por dentro. Bendita invenção inglesa.”
Ele se levantou enquanto foi crescendo no entusiasmo, estava quase gritando:
“O futebol, me deu ritmo certo para andar sobre a terra.”
Nisso já havia abandonado o tom inicial, falava apologeticamente, gesticulava, pregava, já era ali um homem de deus. Seguindo:
“Foi jogando futebol que ouvi pela primeira vez a voz da terra e seu chamado. Ao ir de encontro aos corpos dos oponentes em campo, meninos negros lindos, apenas garotos suados e puros, sonhei. Arcanjos de carapinha faziam milagres entre traves e riscos no chão. Aprender e sentir os limites do espaço e dos corpos que eles impunham no meu caminho e principalmente experimentar a queda, era como poder ler de uma só mirada todas as poesias bíblicas.
Nenhuma lição prática e filosófica foi melhor de que ralar face no chão e desfalecer na terra. Desfalecer com a face no chão e ver. Ver o mundo a partir dos olhos mergulhados na poeira, bem ali com o corpo esfrangalhado e os olhos rotos, rentes ao chão. Creio que foi essa experiência crepuscular, entre a dor e o insucesso, uma quase-morte, que me ligou definitivamente a terra e logicamente aos meninos.”
Silenciosamente pensamos: os meninos!??
“Sim, os meninos. Uma oportunidade para eles, um lar, um lugar sem dor, onde tivessem a chance de aprender e crescer. Os meninos são o sal da terra.
Falo verdadeiramente do pó da terra, dos pedregulhos, das plantas rasteiras, das arvores de galhos retorcidos e folhas grossas, essa dimensão da savana e do serrado, entre a exuberância e ausência de água e de mata e os seres humanos ali, mesmo depois de mortos. Falo sobre a terra, sobre nós e as outras coisas que brotam e morrem na terra inclusive as cidades, as idéias, as técnicas e as ideologias e os meninos.”
Estava com os olhos cheios d’água quando parou. Ficou ali parado em pé, alguns instantes se deixou cair no trono. E ficou assim tempos esquecidos meio largado, quase imóvel.
Ninguém de nós nunca havia pensado sobre isso, uma iluminação advinda de um jogo de futebol. Estávamos extasiados. Era arrebatamento puro. Podia ser um homem santo, um enviado no fim dos tempos para nos resgatar da nossa insânia coletiva, como um anjo vingador.
Mas algo me intrigava. Porque ele havia adotado aquela fachada de intelectual engajado? Ao mesmo tempo era o que se pode chamar de um grande homem de negócios, um tremendo empresário, um empreendedor, que sabia negociar magistralmente seus inúmeros contratos, como ninguém ele gostava de ganhar dinheiro. Percebíamos sem espanto, o quanto ele gostava disso. Já vi com bolos de dólares. Ele se torna mais excitado, amais ágil, mais falante, quase um moleque.
Com tempo nos acostumamos com suas aparentes contradições. Sentava-se com prefeitos, secretários de estado, ministros, reitores de universidade públicas e privadas, nacionais e estrangeiras. Porque se deixava fotografar entre agiotas, traficantes, juízes e políticos tão francamente corruptos e acadêmicos sem expressão?
Dizia sempre:
“Nesse país se você não se apresenta como empresário bem sucedido, ninguém, ninguém mesmo te dá ouvidos ou te abre as portas. Precisamos das portas abertas”! Usou como exemplo os grandes assaltos as joalherias e bancos da cidade.
Pensei então, é isso. Ele mantinha aquela estrutura e aceitava passivamente ser caluniado como usurpador, demagogo, libidinoso e até mesmo bandido, porque seu propósito era muito maior. Mas e os meninos, que será que ele faz com os meninos e porque será que ainda mantém esta entidade tão dispendiosa?
No exato instante em que fazia secreta e silenciosamente tais perguntas, ele se voltou para mim, exclusivamente para mim e fitando-me longamente, com doçura e voz materna, disse:
“Se você tiver coragem para me fazer tais perguntas, prometo que responderei sinceramente cada uma delas.”
Entrei em desespero, gaguejei, abaixei os olhos e comecei a suar. Ele insistiu, chegou bem perto e disse:
“Acalme-se, hoje vou te dar a chance de desvendar todos os mistérios e dúvidas que você alimenta internamente sobre meus propósitos, se ainda assim restar alguma questão mal esclarecida, por mais tola e pequena que seja, você será liberado para partir.”
Alguns exclamaram: partir?! Ele nem se deu conta da surpresa geral. Todos nos olhavam assustados e igualmente confusos.
Contudo, ele falava de tal maneira sedutora e acessível, que me deixou emocionado... E com medo.
Nunca me passou pela cabeça, que alguém ou algo pudesse me impedir de partir quando quisesse. Por outro lado, sabia que todos aqueles que estavam ali, os mais recentes haviam chegado há pelo menos 20 anos. Todos sem exceção passaram parte da vida como internos em educandários católicos e foram escolhidos pessoalmente por ele, quando chegaram à idade de 16 anos. Todos o idolatravam e fariam de tudo para não decepcioná-lo, embora seus métodos de controle não fossem muito ortodoxos do ponto de vista pedagógico. Ocasionando momentaneamente, medos, pequenas mágoas e descontentamentos entre nós.
Quem era afinal aquele homem? De onde veio e por onde andou? Quais eram suas idéias, crenças e valores? Porque havia criado o Instituto após a morte do poeta?
Sabíamos que antigamente o poeta declarava abertamente que não gostaria que suas idéias gerassem um novo credo ou uma nova escola.
Porque ele havia recolhido os pertences do poeta pelo mundo e transformados todos aqueles objetos de uso cotidiano e prático em relíquias santas? Porque cobrava verdadeiras fortunas para traduzir textos do poeta? Porque levou tantos adeptos do poeta a morte, ao silêncio ou à proscrição?
Ele encarcerou durante anos a última mulher e um filho bastardo do poeta em um dos aposentos do Instituto. Ouvíamos gritos abafados de um dos aposentos... Dizem que os dois vocalizavam palavrões piores que aqueles aprendidos na terceira chapada, onde funcionava a casa de quengas. Sabe-se havia escondido os escritos eróticos do poeta, talvez os mais libertários. Principalmente sabemos que aliterou os escritos mais ricamente poéticos do homem bom, transformando-os em escrituras proféticas. Por fim roubou as ultimas idéias do poeta e as reduziu a acrósticos.
A liberdade que o poeta buscava por meio de um rigoroso exercício reflexivo, extraído das relações humanas diretas, diálogos e conversações não hierárquicas sobre a natureza do conhecimento a da vida, ele transformou em filmes, hoje são revendidas no Instituto e também em bancas de jornais, livrarias e lojas de conveniência de todo país e mesmo no estrangeiro. Nós e o mundo o víamos como um intelectual profícuo e homem de deus. Líamos seus livros, teses, novelas e melodramas. Sua última preocupação era com jogos digitais que queria adaptar a partir de contos populares infantis.
Era sobre isso que gostaria que ele falasse, mas não ousei inquiri-lo. Ele exibia sempre fotografias de uma vida exemplar e um currículo imaculado. Sua arquitetura personalista estava espalhada pelo Instituto, desde a portaria até o terceiro andar, em todas as paredes do prédio tinham imagens dele, sempre abraçado com o poeta ou celebridades.
O que sabemos sobre ele advém de biografias breves, releases publicadas na internet. Nasceu em São Francisco do Sul, litoral de Santa Catarina. Seus avos paternos eram de família oriunda da Itália, da região de Cilerito. Pelo que se sabe esse nome tem origens remotas, século XV, talvez.
Naquela noite não consegui dormir, fui assombrado pelo real perigo da excomunhão. Sair do Instituto.
Salloma que texto muito louco, nossa que viagem...
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