Um
mouro desvela os africanos no Brasil
Por Salloma Salomão
Jovino da Silva
A
escravidão é certamente o tema que mais rendeu monografias, dissertações,
teses, ensaios e artigos na história das ciências sociais no Brasil. Desde o ultimo
quartel do século XIX e
início do XX,
estudiosos de áreas afins debruçam-se sobre esse aspecto da formação da
sociedade brasileira. Clovis Moura gerou abordagens que, ainda hoje, seguem no
contrafluxo das tendências dominantes. Criou e alimentou polêmicas duradouras e
frutíferas, seja em termos de temática, de metodologia, seja no apontamento das
ideologias que perpassaram os estudos da escravidão.
Podemos
dizer que dirigiu sua contraposição àqueles cujo prisma traduzia os olhares da
casa grande. Talvez por isso experimentou dores e descaminhos profissionais de
um pesquisador não acadêmico, comprometido com as demandas de seu tempo.
Abordou
as múltiplas práticas de resistência à escravidão, em que anteriormente só se
via banzo, anomia, conformismo e imobilismo social. Sua grande contribuição
consistiu em trazer a imprensa negra, os grupos artísticos e culturais,
organizações e movimentos político-sociais negros para o centro da cena.
Clovis Moura foi pioneiro
ao estabelecer um diálogo respeitoso e produtivo com os grupos negros
organizados, o Movimento Negro, em um tempo em que a academia brasileira
desqualificava-os frontalmente. No “Mundo Negro” ou afro-brasileiro formado
pelos movimentos sociais de recorte etno-racial, apenas uns três intelectuais
eram tão respeitados e queridos, ficando patente que havia ali admiração e
respeito mútuos. Por isso sua morte foi bastante sentida. Moura é muito atual,
justamente, por oferecer balizas coerentes à compreensão da reedição recente do
mito da democracia racial.
A
escravidão ainda é merecedora da atenção dos pesquisadores que têm trazido
novas perspectivas sobre a concepção de família entre escravizados,
ressignificações de identidades étnicas e sociais no contexto da diáspora,
práticas culturais entre escravizados e forros, trânsitos de africanos livres
entre a África e o Brasil e outras.
Não
poderia ser diferente se pensarmos os impactos sociais, econômicos e culturais
da entrada de milhões de africanos em terras portuguesas nas Américas. Foi
central o papel exercido pelo Brasil no contexto colonial/imperial português, e
em termos gerais ainda se sabe pouco sobre os “colonos pretos” nos séculos XVI,
XVII e XVIII. Predominam generalizações feitas com base nos eventos do século
XIX e de leve toca-se nas mutações sem ruptura das rotas e mercados de tráfico
de gente africana no mundo transatlântico depois de 1822.
Clóvis Moura, sua primeira esposa Iracema, e sua filha
Soraya. São Paulo/1963
Após
décadas incansáveis de pesquisas sociológicas de tom histórico sobre “o negro
brasileiro” e trabalhos históricos de recorte sociológico enfocando as
“rebeliões das senzalas” e os potencias rebeldias do mundo da pobreza negra e
urbana, Clóvis Moura praticava a interdisciplinaridade quando o termo nem
existia, conforme o prefácio de João Baptista Borges Pereira.
Moura
tornou-se, em função dessa visão abrangente, muito consciente das brechas nas
pesquisas acadêmicas, dos anacronismos e equívocos vendidos de segunda mão. O Dicionário da escravidão negra no Brasil
até onde se sabe é o único do gênero. Tendo em vista a dinâmica da língua
falada e escrita, seu objetivo inicial era ir ao encontro das dificuldades do
pesquisador contemporâneo no acesso das terminologias do século XIX para trás.
Como
toda obra de fôlego, esta tem seus altos e baixos, limitações explicáveis, em
parte, pelas dificuldades de um pesquisador à margem dos financiamentos, que,
às vezes, abundam em campus ocioso. São apresentados fragmentos de documentos,
relatos, legislação, narrativas, breves biografias de escravos e de potentados
escravistas, além de uma significativa relação de nomes pouco conhecidos de
abolicionistas, líderes de revoltas escravas de inúmeras regiões do país. O
exagero mais evidente é a transcrição integral do projeto de leis para extinção
do tráfico, elaborado por José Bonifácio de Andrada e Silva e publicado em
Paris no ano de 1825, algo absolutamente desnecessário.
Clóvis Moura e o Prof.Zelbert L. Moore, Ph.D em
Antropologia, na biblioteca da sua casa. São Paulo/2000.
Há
flagrante ausência de dicionários de línguas africanas nas referências
bibliográficas de várias palavras ou termos, inclusive de alguns falares
africanos decisivos na formação da língua portuguesa do Brasil. A palavra quilombo, por exemplo, de
uso bastante recorrente na literatura escravista, é insuficientemente dicionarizada,
embora se saiba de sua origem no tronco lingüístico niger-congo (banto). Mesmo
trazendo um rigoroso inventário de vários tipos de formação social
identificados como tal, falta a informação básica de que na África meridional,
já no século XVII, um termo próximo, tchilongo, era utilizado para
designar um espaço humanizado, ou seja, território.
Moura
não deixa de expor sua tese ou ao menos algo que se tornou central em toda sua
reflexão: o protagonismo dos negros na história do Brasil. No verbete
“consciência cidadã do escravo” recorreu à literatura histórica mais recente,
mais propriamente a João José Reis, para demonstrar a existência de uma
“consciência étnica e social” entre os escravizados, durante uma revolta
ocorrida na Bahia no final do século XVIII. Recortando um episódio atípico no
qual a reivindicação escrava foi grafada (nos moldes do verossímil ocidental) –
e por isso tornou-se documento histórico escrito para a posteridade – aponta
que “neste caso especifico, eles estavam dando um salto qualitativo no processo
de conhecimento de seu nível de exploração social e étnica, pois não se
colocavam como cativos (objetos), mas como cidadãos (sujeitos), reivindicando
direitos idênticos aos trabalhadores assalariados atuais, mediante contrato de trabalho”
(págs. 111, 112).
Instrumentos
de tortura como o anjinho ou o bacalhau são historicizados para recompor
imagens de um mundo multiforme de sofisticada violência, em que estes eram
artefatos de uso cotidiano. Instituições como as irmandades e confrarias de
pretos e pardos, comissões de escravatura ou casas da roda nos dão uma mostra
da complexidade do mundo escravista que não cabe apenas na dicotomia
senhor/escravo. São pouco mais de oitocentos verbetes que compõem um mosaico da
cultura escravista, a ser aproveitado por pesquisadores que ainda têm algo a
dizer sobre o tema.
“Salloma”
Salomão Jovino da Silva é professor e músico, doutor em história pela PUC-SP e
pesquisador visitante do Instituto de Ciências Socais da Universidade de
Lisboa.
Dicionário
da Escravidão Negra no Brasil. Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
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