Olhar/Mosaico em perspectiva de práticas e conhecimentos, políticas e artes africanas/diapóricas. Biocaminho na esfera. Anima afim de experimentar toques e palavras, sons e ruídos, notas tortas, acalentando dissonantes rebeldias. Desejos de sorver quase tudo no cosmo, na Américafrolatina. Utopias à beira do Atlântico. Por desvelar e reconhecer as partes e o todo, durante a busca do estar pleno no mundo, enquanto for.
SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Bio-caminho
Salomão Jovino da Silva, "Salloma Salomão é um dos vencedores do CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA RUTH DE SOUZA, em São Paulo, 2004. por dez anos foi Professor da FSA-SP, Produtor Cultural, Músico, Dramaturgo, Ator e Historiador. Pesquisador financiado pela Capes e CNPQ, investigador vistante do Instituto de Ciências Socais da Universidade de Lisboa. Orientações Dra Maria Odila Leite da Silva, Dr José Machado Pais e Dra Antonieta Antonacci. Lançou trabalhos artísticos e de pesquisa sobre musicalidades e teatralidades negras na diáspora. Segue curioso pelo Brasil e mundo afora atrás do rastros da diáspora negra. #CORRENTE- LIBERTADORA: O QUILOMBO DA MEMÓRIA-VÍDEO- 1990- ADVP-FANTASMA. #AFRORIGEM-CD- 1995- CD-ARUANDA MUNDI. #OS SONS QUE VEM DAS RUAS- 1997- SELO NEGRO. #O DIA DAS TRIBOS-CD-1998-ARUANDA MUNDI. #UM MUNDO PRETO PAULISTANO- TCC-HISTÓRIA-PUC-SP 1997- ARUANDA MUNDI. #A POLIFONIA DO PROTESTO NEGRO- 2000-DISSERTAÇÃO DE MESTRADO- PUC-SP. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- CD - 2002 -ARUANDA MUNDI #AS MARIMBAS DE DEBRET- ICS-PT- 2003. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- TESE DE DOUTORADO- 2005- PUC-SP. #FACES DA TARDE DE UM MESMO SENTIMENTO- CD- 2008- ARUANDA SALLOMA 30 ANOS DE MUSICALIDADE E NEGRITUDE- DVD-2010- ARUANDA MUNDI. Elenco de Gota D'Água Preta 2019, Criador de Agosto na cidade murada. |
sexta-feira, 27 de novembro de 2015
NCA- Do vídeo popular ao circuito de criação e circulação do cinema-vídeo periférico.
NCA- Do vídeo popular ao circuito de criação e circulação do cinema periférico.
Salloma Salomão Jovino.
Ainda estamos na beira, mas já conseguimos sentir o frescor da brisa que vem da periferia da cidade de São Paulo. Podemos perceber sua caricia sobre a pele da alma, principalmente quando temos em mente uma necessária e urgente renovação cultural, que injete um pouco de alento, ânimo e saúde nas gerações paulistanas do presente e do futuro.
Aqui nossa conversa gira em torno da cultura da imagem vista de fora para dentro, da periferia para o centro, dos sem-cinemas para as salas Cult do SESC, Unibanco e Belas Artes. Estamos checando os limites do jogo de manipulação de imagens étnicas sociais e de formas de (in)subordinação do cinema e vídeo. Há outros desígnios para as capturas e edição imagética, que não estão previsto nas cartilhas das escolas superiores de cinema, vídeo, propaganda e marketing, nem pelos catálogos das elites culturais e midiáticas.
Essa troca de ideias aqui postas só é possível em função de 4 obras da videografia periférica dos últimos 15 anos, visualizamos também dezenas de autores e títulos de documentários e ficções experimentais lutando por espaço de criação e circulação a partir de periferias geográficas, socais ou culturais. Temos aqui, veementes indicações da necessidade de construção de um circuito periférico ou descentralizado, sistemático e regular de criação-exibição de cinema-vídeo em São Paulo e no Brasil. E isso somente pode ser feito com aporte de recursos públicos, dentro de uma política formulada para esse fim específico.
Não são muitos os membros do grupo fixo ou aqueles circulantes e intermitentes colaboradores do Núcleo de Comunicação Alternativa ou NCA, eu os encontro constantemente por aqui, nos eventos da ponte pra cá e já os posso ver circulando bem além dos espaços restritos aos pobres, pretos, periféricos e putas. Quero dizer que tomo conhecimento da circulação da produção desse grupo de pesquisadores de imagens e sons, em lugares que antes eram circunscritos aos produtores bem nascidos, filhos de intelectuais e cineastas, ou crias das grandes agencias de cinema, televisão e propaganda.
Esse é um sinal de que uma efetiva mudança sócio-cultural está em curso. Os produtores culturais que falamos aqui são, em sua maioria, filhos de operários, netos de imigrantes e migrantes que foram obrigados a comprar terrenos mais em conta, nos arredores mais longínquos da metrópole. Somente mais tarde vieram as leis que os transformaram em clandestinos ou perigosos “invasores de mananciais”. Por sua origem étnica e social, qualquer coisa que produzam são, ideias e objetos criativos de antemão, marcados pelo signo da margem. Não é lamento, nem destino, é relação.
Neste caso são jovens do sexo masculino e seus tons de pele que vai do negro mais retinto ao branco nórdico e se portam como irmãos, irmão de sonhos e lutas. Todos sabem sobre ao racismo que atinge a juventude e não fingem serem iguais, porque conhecem a política racial das forças de segurança e dos sistemas judiciários e carcerários. Tem na ideia de igualdade uma utopia, uma promessa de redenção e não uma ideologia mistificadora aprendida na escola eurocêntrica e nacionalizante.
Jovens corpos-câmeras, corpos-computadores, corpos-ideias que atuam, criam, circulam juntos e misturados. Mas, não se iludem com o discurso oficial de tolerância e equidade da cidade, do estado e do país. Conhecem muito bem o racismo, as segregações e apartações de toda ordem, e por vezes tomam tais práticas e ideologias como conteúdo, que revertem em criações estético-políticas, configuradas em Imagem-tempo-som, chamemos videografia. Na paisagem onde vivem, vinte ou mais podem ser mortos pelos abutres em apenas uma noite, ante um silencio geral. Suas escritas são de baixo custo, baratas, tanto quanto suas vidas e de outros como eles, como nós.
Antes que as câmeras de VHS se tornassem minimamente acessíveis, um jovem professor de Geografia morador do bairro do Campo Grande, chamado Jorge Alberto Prat, havia tido uma experiência como assistente de produção em cinema na equipe de João Batista de Andrade. Entusiasmado, juntou recursos próprios, amigos músicos e atores para filmar e editar em Super8, uma ficção denominada “O Tabaco” (1986). Durante algum tempo esta foi a única tentativa de criação cinematográfica naquele contexto, ao menos que eu tenha tido conhecimento. Evidente que os limites eram dados pelo altíssimo custo dos equipamentos, películas e revelação. Ainda hoje, o cinema produzido em película continua extremamente caro e inacessível aos de baixo. O que divide o acesso a uma e outra tecnologia é o mesmo que divide a cidade entre o centro e as margens externas dos Rios Pinheiros, Aricanduva, Tiete, Pirajussara, M´Boy e Tamanduatei. Escritas imagéticas das beiras.
As primeiras câmeras analógicas portáteis de vídeo chegaram à zona sul, compradas pela administração pública e, emprestadas aos movimentos sociais das regiões de Santo Amaro e Capela do Socorro. Sou testemunha ocular,diretamente beneficiado com tal processo de alargamento. Naquele contexto os cineclubes rarefeitos faziam sessões nas igrejas e sedes de movimentos sociais no Jardim Primavera, Vila São Jose e Vila Remo. Eufraudísio Modesto, um capoeirista e Cantor Baiano foi um pioneiro nessas exibições itinerantes.
Contudo, as primeiras imagens documentais e experimentais foram feitas por ativistas e fuçadores de imagem no contexto de um curso de Documentação e Memória Popular, realizado pelo Departamento Patrimônio Histórico (DPH) da Secretaria Municipal de Cultura, sob a coordenação da professora Maria Célia Paoli. A demanda dos movimentos sociais e culturais reunidos era a criação institucional de um Centro de Memórias dos Movimentos Populares da Região e sua sede deveria ter sido a “Casa Amarela”, na Praça Floriano Peixoto em Santo Amaro.
Avalio que o projeto não saiu do papel, porque a secretária Marilena Chauí e sua assessoria estavam mais interessados nos eventos internacionais para intelectuais acadêmicos que acorriam a Biblioteca Mario de Andrade e Centro Cultural São Paulo.Eventos regados a champanhe francesa, para discutir o Descobrimento e o advento do pensamento Iluminista na Europa, que pomposamente chamavam de “A Modernidade”.
Ainda naquele começo da década de 1990 a Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP) cedia ou alugava seu vasto e diversificado acervo aos ativistas dos movimentos, negros, populares, sindicais, para organização de mostras e formações políticas. Muitos desses filmes eram históricos (sobre fatos e personagens da historia oficial do país) ou documentários financiados pelos sindicatos. Naquela época nem se fala em Fundos de Pensão.
As preocupações giravam em torno de um uso fundamentalmente pragmático dos filmes e dos equipamentos, já que câmeras, mesas de edição e sistemas de exibição continuavam sendo extremamente dispendiosos.
Quando a ABVP (Associação Brasileira do Vídeo Popular) inaugurou um sistema de edição em sua sede, naquela época situada na Rua Treze de maio no Bairro Bexiga, também chamado Bela Vista, corremos todos lá com sacolas de fitas VHS e uns rabiscos de roteiros feitos as pressas.
Essa captura da tecnologia da imagem e som na periferia foi simultânea a percepção de que nós, os periféricos, erámos muitos mais que aquelas imagens estereotipadas que veículos de comunicação impressa e televisiva projetavam sobre nós. Essa mudança de sensibilidade também se operou no campo da criação musical. O REP (ritmo e poesia), como um dos elementos da cultura HIP HOP, embora de origem no norte, foi submetido a uma forja cultural muito própria dxs jovens negrxsbrasileirxs, ou seja, sua estética assimilou a experiência local, até ser convertida em posição política totalmente inovadora. Periferia agora é perspectiva identitária e política, modo de ver e de vida.
A partir da Zona Sul, Periferia se tornou uma plataforma discursiva, onde pertencimento, criação cultural e especificidade da visão de mundo se coadunam para propor alternativas de auto organização ou também para fazer denuncia sistemática das desigualdades, violência de estado, marginalização social e do racismo antinegro. Em 1990 um grupo musical local cantava “Estamos jurados de morte pelos policiais”, durante apresentação na Casa de Cultura de Interlagos, nos encontros regionais de “Cultura de Rua”, organizados por Pivete (Pavilhão Nove) Ângelo Flores e por mim.
O REP nos trouxe muito mais que isso. Quero dizer, hoje sabemos que ele foi mais que uma forma contranarrativa. Foi o prenuncio de uma efetiva mudança cultural que encontrou nas linguagens artísticas e uso das tecnologias literárias, musicais e imagéticas, os suportes necessários para construção da paisagem cultural que vemos hoje. No campo da literatura creio nem ser necessário enfatizar as filiações entre Ferrez, Sergio Vaz, Allan Da Rosa e Robsoul com a cultura Hip Hop.
Por ser São Paulo a cidade mais rica e luxuosa do país, é também por puro contraste aquela onde as iniqüidades se pronunciam de forma mais radical e aguda. Por ter a maior arrecadação tributária poderia ser também aquela onde se oferecem os melhores e mais abrangentes serviços públicos e a cidadania democrática e republicana se exercesse sob padrões mais razoáveis. Mas não, décadas a fio a coisa pública paulistana tem sido presa da gatunagem, da expropriação e do descalabro. Somente recentemente tem sido repatriado parte dos recursos desviados para contas em paraísos fiscais, durante as gestões Maluf e Pita. Milhões de reais de uma única obra, aquela de construção da Avenida Roberto Marinho que deságua na Rede Globo, limite das zonas Sul e Oeste. O córrego morto da Zavuvus corre no mesmo sentido no outro lado do morro da Santa Catarina.
São Paulo é seguramente o mais rico mercado de entretenimento do país, cujo custo individual de um espetáculo ou evento da moda, pode valer até 2 salários mínimos e tem um contingente razoável de pessoas disposto a pagar para consumir. Seja em nome do status ou do sentimento de alta exclusividade. Hordas de jovens negros e pobres perdem seus capinhos para obras publicas, sem choro. É isso ou nada. De vez em quando, uma casa de cultura abandonada, aqui e ali um CÉU, uma Fábrica de Cultura, uma unidade do SESC.
De outro lado equipes de baile, selos musicais de Pagode e Rep encontraram na periferia esses bandos de jovens ociosos e sem alternativa de lazer. Black Mad, Chic Show, Zimbabwe fomentaram ali seus empreendimentos. Alguns protagonistas dessa cena inicial, hoje ditam normas de comportamento e participam das decisões corporativas e públicas nas áreas de entretenimento, cultura a lazer, em instâncias que naquela época eram inimagináveis.Antonio da Silva Pinto, por exemplo, trabalhou nos governos municipal e federal, recentemente foi responsável na cidade pela “organização” dos fenômenos conhecidos como “Rolezinhos”.
Por Rolezinho entenda atividades de lazer auto-organizadas por e para jovens pobres, que combinam formas de dança urbana, consumo e entretenimento. Desde 2012, grupos cada vez mais significativos numericamente passaram a se encontrar em estacionamentos de centros periféricos de compras e foram duramente reprimidos por seguranças privados destes estabelecimentos, como também pelas policias civil e militar. Alguns dos lideres foram seletivamente e misteriosamente assassinados, sem que as investigações houvessem chegado aos responsáveis direta ou indiretamente.
O governo da cidade, por meio da ação do Ex-Secretário Municipal da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, tem buscado constituir uma estratégia de mediação entre empresários dos shoppings e as forças de segurança.
As culturas periféricas mudaram muito em São Paulo nos últimos 20 anos. Essas mudanças vêm sendo estudadas a partir da superfície, sobretudo com cartilhas sociológicas empunhadas por jovens pesquisadores medianos, que situados nos bairros de classe média alta da zona oeste, olham de forma romântica ou pitoresca para as regiões que se espraiam além dos rios. Os Rolezinhos são apenas uma parte indicativa dessas mudanças, mas foi também aquele que mais causou impressão aos veículos tradicionais de comunicação. Evidente que o imaginário das “classes perigosas”, tão comum a história moralista da cidade, foi novamente acionado e aparentemente cumpriu seu efeito regulador.
Outro sintoma menos saliente e midiático dessas mudanças pode ser localizados em outro campo da cultura urbana, no fenômeno dos Saraus e Coletivos de Artes e Cultura. Alguns são formas longevas de auto-organização, criação e difusão artístico-culturais, outras são ONGs oportunistas e parasitárias que penetram no território, atraídas pelas possibilidades de exploração de mão de obra e obtenção legitimidade necessária ao acesso de financiamento em agências nacionais e estrangeiras. Até mesmo o famoso empresário dos negócios de show, o apresentador de TV conhecido como o Luciano Hulk abriu uma ong por aqui, para fazer benemerência com dinheiro de renuncia fiscal. Quer dizer, tanto ele como Gilberto Dimenstein, Paula Lavigne e a família Setubal circulam nessa geografia em carros blindados seguranças particulares, mas não deixam de lucrar duas vezes.
No geral,tais instituições têm em comum um discurso público de cunho paternalista-salvacionista e a prática sorrateira de apropriação da coisa pública. Seus proprietários têm livre trânsito nas grandes empresas de comunicação.Compõem suas equipes de coordenação captando executivos do entretenimento e educação.Estes formulam projetos mirabolantes para captar recursos privados e também os aprovam nas leis de incentivo fiscais e, sobretudo, celebram contratos milionários sem licitação, em escandalosas relações (não reveladas) com agentes do poder estatal.
Mas essa cultura é a mesma das elites do império, que se readequaram a República, se esbaldaram nas ditaduras e costuraram novas práticas ao longo da redemocratização. São novas elites, mas a cultura do mando, prestígio e utilização privada das instituições estatais, continua algo inalterado. No entanto enquanto a cultura das elites se mantém inalterada as classes subalternas, parecem tem encontrado novas formas de sabotar o domínio.
O REP abriu caminho para surgimento de um movimento literário cujos frutos tem animado novas gerações e é tão vasto, fundo e intenso, que não cabe aqui repercutir. Também a linguagem teatral foi seqüestradas organizações estudantis de classe média e hoje configura uma painel de quase meia centena de grupos e coletivos que se espalham em ocupações e cessões de espaços públicos e sedes alugadas de Piraporinha a Penha, de Grajaú a São Miguel, dos Morros da Freguesia até Perus ( Viva Quilombaque), dos fundos de Jardim São Savério até os confins da Vila Nova Cachoeirinha.
Também as “Artes Plásticas” já não são territórios seguros dos museus e galerias de artes que se concentram num raio de 2 mil metros do MASP. A produção de materiais específicos de algo que podemos designar Artes Visuais, hoje circulam pelo Zé Batidão (local dos encontros da Cooperifa), Sede da Brava Cia de Teatro, Bloco do beco, da Casa Popular de Cultura de M´Boy Mirim e principalmente pela rede social, mas seus lugares de exibição são principalmente muros e fachadas de prédios. Entretanto, é no campo da produção videográfica que a coisa saltou de uma linguagem calcada no documentário tradicional, voltado a revelar a memória de uma cena ou personagem esquecida, para outro nível de criação, onde a questão estética tem sido cada dia mais central.
Não que os materiais dos anos noventa o crivo da crítica interna não estivesse atenta a este aspecto, mas num primeiro momento a questão da memória e da documentação da história local recentes eram mais prementes. Isto porque percebíamos que uma experiência de luta e organização popular como características da região, que corriam o risco de desaparecer, com o processo de rápidas mudanças que se observavam naquele momento.Numa espécie de neofolclorismo periférico queríamos resguardar “coisas populares”, já que conceito contemporâneo de “periferia” não era tão desenvolvido naquela época. De fato, nas décadas seguintes a desindustrialização, a política urbana e despolitização mudaram completamente a paisagem sociopolítica e cultural dos antigos sertões de Santo Amaro.
As indústrias que abundavam ao longo da avenida Nações Unidas e imediações da avenida João Dias, se automatizaram e migraram em massa para o interior ou para outros estados da federação. Outras simplesmente quiseram fugir a ação dos sindicados e seguir em busca de maiores renúncias fiscais. Nos seus lugares entraram os shoppings e condomínios enormes de classe média. Os moradores mais pobres,novamente foram empurrados para o subemprego e para as margens das represas e zonas sem serviços públicos, como para os limites das áreas semirurais.
Em contrapartida alguns dos antigos sindicalistas e ativistas encontraram na política partidária, uma ferramenta mágica de ascensão social. De lá para cá ampliaram seu patrimônio de tal maneira, que atualmente, alguns daqueles residem nos bairros mais nobres da cidade, inclusive Higienópolis e se surgem na paisagem periférica é porque estão próximos os meses que antecedem o pleito eleitoral. Aliados com os antigos vereadores grileiros urbanos e donos de imobiliárias clandestinas, hoje compõem uma nova casta de mandatários locais, mas em geral se portam como aquilo que são:“feitores ausentes”.
As imagens fotográficas e vedeográficasrecolhidas por muitos de nós (Helder Girolamo, AntonioPassaty, Jansem Rafael, Jean Pixaim, Kaká Werá, Antonio Pinto, Maga Lieri, Cladinei Domingues, Edson Hengles, Salloma Salomão, etc) nos anos 1990,narram os meandros desse processo de mudança social e cultural. Fotógrafos, videomarkers, cineastas ocasionais mantém ricos acervos particulares, apenas aguardam a oportunidade de doar seus materiais para alguma instituição pública, que seja capaz de digitalizar, preserva e difundir.
O leitor me desculpe tanta divagação, mas achei necessário estabelecer um ponto temporal na reflexão sobre videografia e periferia sul. Alguns dos filhos de produtores culturais dos anos 1970-1990 hoje podem ser encontrados nos coletivos de arte e cultura que pululam na região. Apenas esse fato já poderia ser alvo de uma longa investigação e reflexão em torno da continuidade do fazer artístico-cultural periférico ao sul da metrópole. Entretanto o objetivo principal desse texto é refletir sobre a produção videografica do Núcleo de Comunicação Alternativa, a partir de quatro títulos: *Imagens de Uma Vida Simples – 2006, **Hip hop: África - Brasil, apenas um oceano entre nós – 2007, *** Pé no Quintal – 2011, ****Djandjuma: Nossa Essência – 2012.
Pronto baixei. Assistindo os 4 filmes, distribuídos em um período dez anos não fica nitidamente desenhado uma evolução do trabalho, embora seja possível distinguir mudanças técnicas. Aliás, a própria ideia de evolução, hoje é bastante questionável se embaralhar os títulos não dá para saber qual nasceu antes de qual.Mas é espantoso saber que esses trabalhos iniciais foram construídos com parcos recursos humanos, técnicos, materiais e financeiros. Mais espantoso ainda é perceber o grau de investimento na pesquisa social e histórica que envolveu um prévio conhecimento de biografias como Solano Trindade e o artista negro Mestre Assis, parceiro de Solano na criação da Feira de Artes e artesanatos de Embu.
Em “Retrato de uma vida simples” as câmeras refazem os caminhos de Solano em São Paulo desde os anos 1960, por meios de imagens e falas de seus parceiros e familiares. Demonstram, que descontando o contexto e cultural local colonial, o conceito de capital cultural de Pierre Bourdieu pode ser aplicado plenamente à produção intelectual de Solano Trindade, cujo saber fazer se desdobra nas biografias de seus filhos, netos e bisnetos e repercute também na produção musical, teatral e poética de protagonistas que gravitam em torno de uma centro cultural construídos em sua memória na cidade do Embu das Artes.
Aos poucos imagens e sons vão descortinando e esquadrinhando a biografia de uma das figuras mais produtivas da cultura negra urbana do século XX. Entretanto ao aspecto mais importante do trabalho é a elaboração de uma narrativa que mostra o vigor de uma história cultural, que desprezada pelas mídias massivas e pelo mercado editorial, encontra na cultura imagética e videografica popular e periferia uma suporte de recuperação, permanência, disseminação e longevidade.
Solano é um dos construtores da noção de identidade negra que temos como patrimônio. E ele estava junto com Gilberto Freire quando se organizou o Congresso do Negro Brasileiro em Recife em 1936. Também se encontrava no Rio de Janeiro quando Abdias do Nascimento, Maria Nascimento e Guerreiro Ramos organizaram o Teatro Experimental do Negro. Foi pioneiro na construção de uma perspectiva do homem negro e da valorização da figura feminina negra.
Capulanas Cia de Artes Negras se apropriaram da estética literária de Solano para reconfigurar um discurso de afirmação da mulher negra, algo absolutamente inaudito, tendo em vista o contexto periférico, antecedido apenas por Zenaide (Jadile) Silva que escreveu e encenou “Zumbi Mulher”, nos inícios de 1990. A obra de Solano ainda inspirou Coreografias de Gal Martins e seu coletivo de dança Sansacroma e novas criações musicais de Vitor Trindade seu neto e letras de REPs de seu bisneto Zinho Trindade. O filme do NCA capturou essa cena no momento em que acontecia.
Por vezes podem ser pegos em discurso sobre técnica e se deixar levar pela intenção de justificar qualquer deficiência técnica ou de linguagem.Podem simplesmente contextualizar as condições de surgimento e circulação desses trabalhos, que já fazem parte da história cultural da cidade. Mesmo que as narrativas oficiais estejam viciosamente imbricadas nas produções das elites.
Até que surgisse a cena da cultura Hip Hop e a música REP se constituísse uma voz altiva e ativa das coletividades periféricas de São Paulo,os arredores da cidade eram alvo da abordagem desumanizadora de jornais impressos e programas de rádio e televisão. Espetacularizavam a violência e remetiam as imagens sobre a periferia para ela mesma. Alimentando e realimentando a ideia de uma geografia perigosa, estigmatizando as populações e construindo o binômio pobreza/violência.
Essa combinação de ausência de políticas públicas e estigma social justificaria tanto a ausência de investimentos, quanto o foco das políticas oficiais e extra-oficias de segurança e controle social. Por exemplo, legitimando a ação dos profissionais públicos da morte, policiais e pés-de-pato, matadores privados. O NCA e outros coletivos de invertem a lente dessas mídias e discursos e localizam os nichos de luta diária pela sobrevivência física e psíquica. Quais sejam suas próprias vidas.
Também é surpreendente imaginar que jovens da periferia atravessaram o atlântico para vislumbrar culturas urbanas da África contemporânea. Segundo Daniel Fagundes Karoço, “ Os primeiros trabalhos foram feitos muito na raça, com câmeras emprestadas ou alugadas e na vontade sincera de registrar os fatos narrados.” Portanto estamos falando de uma experiência cultural e videográfica específica, que nasce na periferia sul de São Paulo, mas há muito que já não se encontra confinada nessa geografia.
Qual a importância da extrapolação geográfica? Digamos que uma das caraterística fundamentais da subalternidade social seja, também, o confinamento geográfico. Aqui não se trata da apologia aos sistemas de comunicação digital, ou a comunicação w.e.b, efetivamente o deslocamento do corpo de sujeitos negromestiços para além daqueles territórios da existência da geração dos seus pais e avós. Alguns deles passaram a vida entre o trabalho fabril e o local de moradia. Erguendo barracos nos loteamentos dos Bochilieri nos confins do Santa Margarida, Angela e nomes afins.
Mas é também um deslocamento cognitivo, o vislumbre de novas paisagens e outros lugares de criação, emissão, discurso e poder. Esse deslocamento na paisagem pode ser potencializado pela capacidade de fluxos de conteúdos via internet. Ainda não sabemos até que ponto são efetivos os vínculos extra-territóriais concebidos a partir da rede. Sambemos sim, que há articulações físicas entre e cena Hip-Hop de Berlim e o extremo leste da metrópole, a cena Capoeira da Zona Sul e Viena, isso porque acompanhamos os desterramentos de capoeiras, artistas e ativistas em novas diásporas. Geralmente migram em busca de melhores condições de criação e de vida.
Quais são os temas da produção do NCA? Como funciona o sistema de criação e produção do grupo? Qual perfil social dos seus protagonistas? Que tecnologias dominam e que técnicas aplicam na construção dos seus materiais? As três primeiras perguntas, creio já ter respondido acima. Vamos as duas que faltam.
Sem exceção seus temas giram em torno da produção cultural na qual estão totalmente inseridos, quais sejam: Música, teatro, dança, identidade, diversidade, negritude.Trata-se do formato documentário, mas dizer isso é pouco. Essa forma de documentário na qual os produtores encontram-se totalmente implicados como agentes produz efeitos muito mais complexos e duradouros do que a forma tradicional de exploração temática ou contextual, na qual o registro é feito por agentes externos.Seus trabalhos trazem um dado real e dramático, uma urgência calcada na brevidade das vidas periféricas. E esse fato se reforça quando fazem registros como os últimos depoimentos e imagens de Tarcísio Rosa do Grupo Fé, Mestre Assis do Embú, Dona Luzia Caetano e Daniel Alves do Ballet Afro Koteban.
Seus contextos bordados pelas muitas artes da família Trindade, a dramaturgia e o teatro da Cia Capulanas de Artes Negras, os Saraus do Binho, da Roça, da Cooperifa, Do Grajau, do Clamarte e tantos outros que nascem e morrem nas beiras das represas, córregos e rios quase mortos. Suas cenas são grupos de dança e grafite, música e artes integradas. Seus registros nos alertam para uma postura de positividade e valorização da vida, que encontra na arte um sentido mais alargado da existência em sociedade.
Há nesses trabalhos uma forma de potencialização criativa, que tem efeitos pedagógicos, políticos e estéticos. Porque ao deslocar nossa percepção para dentro, alteram o jogo do poder. Fazem isso criando em nós uma nova capacidade de representação de nós mesmos e dos outros. Destituir as classes superiores e as elites culturais da prerrogativa exclusivista e sua capacidade técnica de construir imaginários sobre nós, pode não alterar significativamente as relações de poder, mas certamente instaura o início de um outro tempo, no qual as desigualdades deixam de ser um tabu ou um dado natural.
http://www.edicoestoro.net/entrevistas/18-cinema/50-daniel-fagundes-nca.html
file:///C:/Users/Anna%20Raquel/Documents/Downloads/histo%CC%81rico%20NCA%20Novo.pdf
https://www.youtube.com/watch?v=Lhf-B6pF8JA
https://www.youtube.com/watch?v=UJ2yqbV0dkI
https://www.youtube.com/watch?v=B3Rz7UWZcW8&list=PLkCkOvfu85yQBl6s0YIqjub9aQfOvkMdm
https://www.youtube.com/watch?v=icwno4uJkSU&list=PLkCkOvfu85yQBl6s0YIqjub9aQfOvkMdm&index=4
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SALOMAO JOVINO DA SILVA
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16:19
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