Por Allan da Rosa (Santos)
O interior paulista era um paiol de pólvora nos anos antes do 13 de maio. O medo saía no mijo dos barões, donos de vastos alqueires, e dos advogados encastelados nos escritórios de luxo, mas também aterrorizava os sapatudos que tinham uma merreca de três ou quatro escravizados pras negociatas miúdas cotidianas, porçãozinha de três ou quatro mandados mal nascidos chupados na jugular, gente, carne com sonho e memória e raiva. Meras peças para alguns, a negrada sentiu a hora do arranque, da retomada de si, sem dó. Décadas antes do 13 de maio que cuspiu uma liberdade requenguela, cagona e manca, vogou um tornado em SP, uma tormenta de legítima defesa e de vingança nem sempre comida fria, que fazia fornalhas das hortas e espetava zagaias em quem tava acostumado a levantar o chicote, a pena ou a xicrinha de porcelana. Eram só um pedaço do mapa de sangue pisado e de dignidade remendada, as campanhas abolicionistas e as rinhas de tribunal onde reinava o amado e odiado Luiz Gama, proibido de entrar em muitas cidades e com a morte comprada uma penca de vezes mas que permanecia pilar na missão. As disputas em colunas de jornais liberais, monarquistas ou republicanos, os processos nos fóruns da hipocrisia que referendava com seu amém o direito à propriedade vampira... isso tudo era só um bocado da guerra que apavorou os abonados de São Paulo pelas estradas de vacaria, pelos chafarizes da capital e principalmente pelos campos de plantio, de tronco e de revide negro. A paúra arrepiava duques do café, azedava o jantar, trincava os lustres e ilustres. Milhares de pretos já tinham devolvido com fogo um pouco da fuleiragem, já tinham debandado pra outras paisagens paulistas com ou sem os tais papéis que lhes garantiam ser gente, gente encurvada por uma liberdade ganha ou comprada - e dessas tais cartas de alforria, que podiam valer só depois de muitas primaveras ou apenas na cidade onde foi carimbada, sempre havia o risco da má-fé que engrupia o dinheiro juntado gota a gota. Carta nula. Nossos avós seguiam varando rumo com os pés sempre descalços, mas agora levando nos ombros os sapatos que só gente livre podia ter, já que o pé não aceitava mais correias e apertos depois de uma vida pisando a sola direto no chão. Nos ranchos de meio de caminho, nas hortas novas, nas curvetas e nos becos urbanos onde se vendiam doces, se barbeava ou se carregava baldes e bacanas marcando o ritmo no lombo, rodavam as histórias dos acertos de contas com os fazendeiros. Histórias sem dó. Era nesse clima que, numa tarde em Capivari ou em Campinas, dois homens subidos de Santos já marcados com a queima na pele alertando sua rebeldia, depois da carga levantada desde a manhã, sentaram na sombra de uma mangueira. Mal a bunda assentou, súbita paranoia apontou o dedo lá da janela do casarão e o senhor gritou a acusação de levante. A madame que desfilava nos seus vestidos de cambraia e casimira, com suas jóias cintilantes veio até à janela ver a penitência nas costas dos seus escravos, a paga da insolência de tramar a morte de seus amos e a queima da fazenda. Negar não adiantou. Logo eles que ainda não tinham aceitado participar do que se armava pra dali uma semana com a malta de todas as fazendas vizinhas. Tomado de ira, o sinhôzinho veio empunhando o chicote. Mandou amarrar um, mas começou por sovar quem estava ainda sentado num tamborete. E descendo as chibatadas despejava uma ladainha sobre a ingratidão e o peso de administrar o mundo. Mas a cada lambada desferida nas costas do negro mais velho, ele ouvia um canto sussurrado em vez de gritos de dor. E despejava o rabo de tatu com mais força, xingando, tremendo, mas a lábia do mais velho continuava soltando um chiado ameno e ritmado. Ninguém diz se era curvado ou não que o angola recebia o arreio, mas a cada levada nas costas ele murmurava e se ouvia um grito, agudo, que vinha de dentro do casarão... Depois das tantas trinta vergastadas que o barão achou já ser lição, justiça pra ensinar sua propriedade a não desejar morte nem derrocada de quem lhe salvou de ser órfão, de ser mais um morrido de fome ou um demônio sem rumo; depois que acabaram as lanhadas que o barão, empapado de suor, derrubou na espinha do seu escravo, ele respirou, esfriou e viu que as costas do negro que cantava sussurrado estavam intactas, o pano arregaçado da camisa de napão não tinha um pingo de sangue. Por tanta raiva, o barão se preparou pra açoitar mais uma vez, com toda a força e medo que tinha e não tinha, mas atinou prum berro que vinha distante. Correu pra dentro da casa grande e ali ouviu uma longa agonia de último respiro. Viu, debaixo do vestido intacto de cambraia e casimira branca que desabotoava trêmulo, as costas lanhadas e arregaçadas da senhora dona que tombou gemendo no chão empoçado de vermelho.
COSTAS
LANHADAS (Revides e Segredos antes do 13 de Maio) de Allan da Rosa
Por
Salloma Salomão Jovino da Silva*
Tem algum lugar que o homem feito Allan
da Rosa se demorou mais quando menino, entre a escola e o campinho, entre a
casa e rua, entre a aprendizagem da vida e os textos escolares. Não fosse isso não poderia arrastar tanta
coisa miúda para lapidar e colocar nesses estandartes de veludo que ele,
tropegamente, exibe na avenida de quando em quando.
Não fosse o fio da navalha da vida, para
quem aprende a viver em zona fronteiriça de não ser, não poderia assumir tantos
compromissos em cantos extremos da cidade. Nem escapar as formas várias de
autoanulação, jogando cartas com poemas de amores corpóreos e viris, em campos
tão marcados por antagonismo mortais e redutores realismos.
Não fosse isso não poderíamos imaginar
dele nenhum corpo de moleque pretuíndio bem nutrido de mandioca e banha de
porco, atravessando a zona sul da cidade murada. Molek de borda e beira chacoalhando
as madeixas pretas entre “brancos já pretos de tão pobres” e outras matizes
marrons descaídas na pobreza lava. Driblar tudo e ainda trazer abraços pra nós
das suas pontes digitais e imaginárias, feixes de ultravermelho no México, nos
EUA e Mundo afora, com chinelo de dedo do Jardim Americanópolis. Polis
americanas em favelas paulistanas, guias.
Com Renato Gama, Adriana Moreira, Mariana Per e Melvin Santhana.
Ele ouvido de gravador K7 com fita que
nunca acaba. Não é transcrição pura e simples, talvez sejam vidas passadas a
limpo pelo lado avesso, sem auto-piedade, nem indicador de jurisprudente. Fraseador reflexivo, devorador de negritudes
gráficas e sonoras. Agora se sabe um observatório ativo de ambigüidades. Eu vou
com ele até onde posso, quando canso, saio da roda. Já sou vovô.
O meu preferido nessa leva atual é:
COSTAS LANHADAS (Revides e Segredos antes do 13 de Maio). Poderia estar numa
lista de textos neo-abolicionistas pela temática. Mas insurge contra a linha narrativa
fixada na benevolência senhorial. Também não embarca na idéia da incapacidade
de revide, talvez seja porque tem em mente a tal luta de classes, mas não leva
consigo o cânone da expectativa da intelectualidade branca aplicada
a realidade escravagista brasileira e a sua inevitável frustração e
conclusão simplista, mas duradoura. Aquela que nos crucifica ainda hoje por algo
que eles mesmos chamaram de “ausência de ímpeto revolucionário nas lutas negras
no Brasil”.
Com Mariana per
Tema dolorido e muito mal trabalhado na
vasta literatura ficcional e histórica brasileira até hoje. Esse da escravidão
nas grandes fazendas e um tantinho agora costurado do seu reverso, as lutas
constantes, renhidas e difusas pela liberdade. Texto curto que nos leva a
pensar na introdução de Flavio Gomes em História de Quilombolas, só que com
ritmo de curta metragem.
Com Michel Yakini
O desfecho da narrativa é surpreendente,
não porque nos dá um gostinho leve de vingança, mas por introduzir um tema
difícil demais para ser tratado na nossa
visão desencantada e materialista de
história. Allan não se contenta
em conhecer e usar forma invertida as ferramentas da História Escolar e
acadêmica. Constantemente ele nos brinda com pequenas histórias negras daquilo
que não foi, mas poderia ter sido. Então, ficcionar as já quase gastas
filipetas e álbuns da escravidão negra e do racismo antinegro, é trazer para o
centro da cena, subjetividades e utopias negras quase vencidas. Mas nem por isso, desimportantes.