A compoanhia Brasileira de Teatro, Marcio Abreu e sua peça Preto se aproximam do Capão Redondo
“Aqui não há
negro, o negro do Paraná é o polaco”
Otavio
Otavio Ianni*
“Tem gente que fica querendo perguntar como é ser negro”.
(Fragmento do texto)
Preto
Atores com seus nomes artísticos ou de batismo falam direto
com a plateia antes de começar qualquer ação. Ou melhor, não se percebe exatamente
quando acontece a quebra. Mesa branca, sambinhas ou bossas pós modernas ecoam na
caixa preta. Rosto negro em close enche a tela.
Atriz negra convida atriz branca a se sentar. 3 atores negros
e 3 brancos. Inversão: Negra dá ordem aos brancos. Sobre onde colocar a mesa branca.
Mesa branca e magia branca, contra as magias negras, Macumbas e Umbandas.
Geralmente estamos à mesa para servi-los, mas não naquela noite, naquele texto.
Quanto tempo será possível manter essa inversão simbólica sem
causar danos à imagem tão respeitada da Companhia? Essa é a parte mais sedutora
do texto. Nos levar a crer que pode haver algum tipo de vingança, ou revide
qualquer em nosso favor. Tem vários momentos com esse tipo de indicação.
Ao longo da história dessa Companhia, parece ser a primeira
tentativa de contato. Não há negros em Curitiba (só vinte por cento do total. É
bem pouco demograficamente né?). Não há
negros no Paraná. Os últimos foram avistados nos anos 1950 por Otavio Ianni
(Raças e classes sociais no Brasil, Ianni,1966). Na memória social daquela
província que pertencia a São Paulo, toda passagem de “negros ilustres” ou
“escravos” fora quase apagada. Senão, não poderia evocar sua europeidade atual
de cidade planejada. Zacarias de Gois, André Rebouças e a primeira
engenheira negra Enedina foram tirados a lima do bronze sobre o qual se pode construir
uma imagem nórdica, mas doentia. Curitiba expandida é sudeste.
Tela com imagens e sons gravados e captados ao vivo. O músico
branco com guitarra e voz acompanhando
loops. Os atores e atrizes andam
de um lado pro outro e se dirigem a nós delicadamente.
A voz, o jeito e rosto de Renata Sorah são muito familiares
pra mim, desde a infância. Ela entrava na minha casa toda tarde ou noite nas
novelas. Já dormi com ela nas minhas fantasias juvenis e, é bom saber que
heroínas brancas da TV e da Revistas de bancas também envelhecem. Eu também
decai no tempo. Por isso hoje pudemos nos encontrarmos no chão. Entre Campo
Limpo e Vila Prel, bem perto do metro Capão. Mas isso por si só não é capaz de
gerar intimidade entre nós. Há camadas e camadas de objetividade que nos
segregam. Eu a vejo sem maquiagem, mas poucas pessoas como eu, até então, devem
ter habitado sua paisagem. A branquitude é uma ilha.
Renata se despiu do personagem e veio ela mesma na peça, ela
quer aproximação, veio com uma trupe de Curitiba. Realmente é uma atriz
fenomenal e foi colocada ali para isso, creio. Ela quer falar comigo e trouxe
três pessoas escuras, que no texto e
ação representam os pretos. Quem são os
pretos? Ou melhor ainda, quem é preto?
Grace Passô é co-autora e atriz convidada. Cassia Damasceno é
corpo negro nessa companhia de Jesus. E Felipe Soares, ator convidado. Abreu Parece
ser inteligente demais, por isso nos poupou da negação corriqueira. Aqui não há
fragmentos do discurso da mestiçagem que moldou a identidade nacional. Discurso
que emerge, ante uma denuncia de racismo interperssoal ou estrutural. Ladainha
do tipo: Quem é branco no Brasil? No Brasil não tem branco puro. Minha vó foi
catada a laço, portanto todos somos bugres blá blá blá... nan nan nan.... São
falas do senso comum usadas para causar interdição, mas aparecem nos textos
deles. Traduzindo: negros, não venham aqui causar ou criar problemas. O Racismo
é coisa das suas cabeças.
O racismo antinegro quando não negado, é tratado como um fato
meramente psicológico.
Efetivamente a subjetividade é uma parte fundamental do
problema racial. Reduzi-lo a subjetividade é outra crueldade. Teatro não é terapia, é entretenimento e
diversão para massas urbanas, por mais politizado que queira parecer. Ou ao
menos esse nível altamente profissionalizado da criação teatral subsidiada o é.
Isso não é bom nem mal em si mesmo, é o que é.
Antes da TV, havia negros no teatro. Joelzito Araújo
demonstrou em sua tese, como a seleção
racial atuou no meio televisivo. A tv excluiu os negros dessa linguagem (teledramaturgia).
Se teatro sobreviveu entre nós, foi em
cidade pequenas congos e Moçambiques, Folias e Boi-Bumbás. Foi também porque pequenos grupos e autores quase
anônimos fizeram esforço zumbínico ou dandárico para manter teatros negros
vivos. Uma linguagem a ser apropriada para falar coisas que essa sociedade
nunca quis que fossem ditas. Senão seriamos apenas conteúdos para autores
eurodecendentes expor corpos brancos borrados de preto, como fizeram, desde
Sergio Cardoso até os Fofos.
Mariana Mayor esta comprovando que em finais do século XVIII
nas casas de Ópera houvera negros. Na medida em que sociedade brasileira se
modernizou ou negros recuaram para o fundo da cena, até quase desaparecerem
totalmente. Depois bastou inventar as narrativas da sua ausência e difundi-la
nas escolas, por meio da disciplina “História do Teatro Brasileiro”.
O preto é a projeção.
Não as imagens na tela. Mas a imagens mentais. Elas independem daqueles
sobre quem a imagem se projeta. Preto. No singular. Preto uno. Um só ser que
pode abarcar, todos os seres, cuja tez nos lembre a beira da tarde até noite
mais espessa. Isso Preto breu. O Preto a
parte dita e identificada. Por uma razão simples. O Branco é humano e
universal. O teatro é universal? Nossa dramaturgia é universal? Um teatro e uma
dramaturgia sem negros e negras (temas, autores, criadores, atores, forma e
conteúdo) no Brasil há uma antidramaturgia universalista e outra
brasileinistas. Ambas nos negam. São armas apontadas contra nós, são
ferramentas de inviabilização, feita por via da invisibilidade, do apagamento e
silencio imposto. Agora Marcio Abreu agora sabe disso pois ele entrou em
contato. Quanto tempo vai durar não sei.
O racismo é fruto e é sempre desequilíbrio. Será por isso que
o diretor buscou trabalhar com uma noção de equidade? Três negros para três
brancos, quatro mulheres para dois homens?
Em cena uma mesa, microfones com e sem pedestais. Um músico
com um computador e uma guitarra na caixa preta de arena do SESC Campo Limpo. Tudo
funciona, não há gambiarra. O ar condicionado não faz ruído como na sala
FUNARTE. Para haver um bom teatro deve ter investimentos. E essa companhia tem
e isso é bom. O atores precisam trabalhar, as atrizes negras precisam
trabalhar. Ali são eximias, não se pode alegar concessão. Corpo, voz, texto,
emissão e gesto, posição no espaço de encenação.
Ninguém ousaria fazer perguntas sobre a diferenças salariais
entre atores negros e brancos. Mas o IBGE e o IPEA demonstram que
desvalorização salarial de negros e negras é um dos motores que perpetuam as
desigualdade estruturais. Isso é hoje, nada tem que ver com a escravidão. Será
que as desigualdades presentes na sociedade também se expressam no meio artístico?
Mas, isso nada tem de teatro, é um outro campo, outro debate. As artes são imaculadas.
O artistas em geral são bons e justos e apenas raramente são racistas.
Dois corpos nus, um de homem negro e outro mulher branca,
todos os rostos aumentados na tela. Ainda equidade? Esse recurso da ampliação
da voz-imago, vem da saturação intencional. No texto agressividade ensejada, engajada
e controlada. Um ator negro e outro branco se estapeiam até a exaustão.
Violência doméstica? São 60 mil mortos por
ano, durante anos. Uma guerra domestica sem dize-lo. Isso é concretude do
racismo antinegro. Isso é concreto, mas indizível, E quando dito não causa
nenhuma empatia.
O racismo antinegro no Brasil era invisível, agora é
indizível. Leio inúmeros textos escritos por autores brancos sobre cultura
negra, nos quais esse termo nunca é mencionado. Aqui também não é, mas tem uma
pergunta balbuciada e essencialista. Como é ser?...
Estamos diante de uma espécie de estetização do racismo? Em
parte sim. Mas calma, Marcio Abreu vai muito além de Brancos (O
Cheiro do Lírio e do Formol”, peça dirigida por Alexandre Dal Farra e Janaina Leite).
Encenada na mostra internacional de teatro, que assistimos já há alguns meses
no Centro Cultural São Paulo. Há aqui um nível de elaboração e virilidade
autoral, que lá não havia. Mesmo lá foi possível perceber o quanto o racismo
também pode causa de confusão mental nos brancos. Era lá um exercício de
visualização de si. Por medo ou qualquer outro mecanismo, não nos pode revelar o
caráter relacional do racismo. Nem nos mostrar como é ser Branco. Aqui ao
contrário. O dado de alteridade coletiva, ou de identidade da branquitude foi
colocado sobre a mesa branca. A mesa é
branca, porque as cartas do jogo são brancas, todos nós sabemos disso.
Os negros são muitos e múltiplos, os brancos idem. Todo texto
teatral opera redução do tempo, do espaço e das figuras humanas, ou mesmo
inumanas, ou mesmo desumanas. Mesmo que se possa esconder os fios da construção
dramaturgia e turvar nosso visão por aproximação entre o ator e o personagem,
será possível revelar a farsa, porque continua havendo um jogo. Um jogo que me
envolve e seduz, mas um jogo. Um jogo que quer falar de mim, mas tem que
colocar seus agentes em cena e de vez em quando revelar suas estratégias.
Obvio que os brancos se tem como essência do humano. Os
pretos são sempre localizáveis nos seus corpos pela polícia, pela milícia, pelo
oficial de justiça, pelo censo e pela distribuição de renda e dos piores
espaços urbanos, onde são raros os serviços de toda espécie. Os de cultura
então nem fala. Saímos fisicamente do centro de Curitiba para a beirada externa
da metrópole. Quase Capão.
Essa forma de compensação não é desprezível. Não adiantaria
evocar a aproximação de Paulo Leminsk com Itamar Assumpção. Foi fruto de um
outro tempo. Como a sociedade age? Como
a sociedade teatral age em relação aos negros, negros como experiência social e
negros enquanto cultura? Momento sombrio.
“Toda noção de preto no
brasil, pretura como medo”. Mantem a imagem na tela mal iluminada texto sobre
imagem. Voce vai buscar o fogo?
Um fogo primordial? Um retorno a selvageria? Aquilo que tem
sido chamado de barbárie ou civilização. Muitos entenderam mal essa formação e
associaram a noção de barbárie aos povos considerados incivilizados, mas na
verdade estava associado aqueles modernos e altamente desenvolvidos
tecnologicamente, capazes de produzir violência em escala industrial. É um erro
interpretativo ou mesmo manipulação da questão original. O tempo todo é
sociabilidade e violência, civilidade e barbárie. Mas desde a expansão
ocidental os bárbaros são os outros.
Qual seja, da Europa bélica e imperialista, colonialista e
totalitária. Mas ainda assim, colocada nesse termos, civilização é barbárie.
Aqui somos os bárbaros sempre, silvícolas, primitivos. Três terço da população
não tem acesso ao saneamento básico.
Fragmentos do texto, tente juntar:
Depois cheguei atrasado. Como vai ser?
Renata- Eu nunca me preocupei com a minha imagem.
A dor da gente fica bonita onde?
Alguma pergunta?
A gente é capaz de sentir a dor do outro?
Renata Voce é livre?
Voce visualiza algo novo, uma revolução?
Renata: Sabe aquela hora que você me cospe? Aquilo grosso?
Diferença entre imagem da dor e verdade?
Perguntas que se propagam no linha reta insuportavelmente
previsível. Mas não, o texto sobre para o andar superior. Torna-se hermético.
Descreve cena de sexo entre duas mulheres. Ator negro e
branco se beijam. Racismo parece ser simultaneamente ojeriza e desejo, repulsa
e ânsia de encontro. Essa ideia é bem bonita. Aqui é o lugar da dialogia. Todo
resto é para se manter na linha discursiva usual da dramaturgia brasileira contemporânea,
quase apolítica.
Atriz branca e negra se beijam
Uma mulher que não dizia uma palavra.
Descrição de uma cena de sexo entre duas mulheres
Eu tive que lutar muito.
Todos atores em cena.
Felipe nú.
Do que você não esquece nunca?
Que você é ri, ri, ri..........
Ator negro e branco com cabeção, dançam e brigam.
Uma mulher negra.... eu vou dançar pra vocês cantar pra você,
lá no fundo. Revide. Ela se nega a cumprir o que todos esperam pelo texto
secular. Mas ela se nega a cumprir o roteiro. No fim ela canta pra si mesma.
Estamos rendidos.
Ficha Técnica
Direção: Marcio Abreu
Dramaturgia: Grace Passô, Marcio Abreu e Nadja Naira
Elenco: Renata Sorrah, Grace Passô, Nadja Naira, Cássia Damasceno,
Felipe Soares e Rodrigo Bolzan
Produção: companhia brasileira de teatro