Arquivos fotográficos familiares- imagem, memória e identidades negras
Importante lembrar que a reflexão acadêmica em torno das imagens fotográficas de maneira geral começaram em fins de 1980 no Brasil e um dos livros mais importantes daquele período trazia artigos de um Historiador da Escravidão, uma antropóloga que estudou africanidades e um estudioso da comunicação imagem, cujos estudos recaiam sobre fotógrafos da escravidão na segunda metade do século XIX. Jacob Gorender, Manuela Carneiro e Munis Sodré.
Um jovem intelectual amigo meu, interlocutor da minha reflexão atual sobre Imagem, Identidade e tecnologia, ligado nas psquisas sobre cinema e acervos imagéticos familiares, me chamou a atenção sobre o impacto da mudança tecnologica na produção de imagens digitais via smarthfone. Fenomeno e que de um lado gera uma abundância e, de outro lado constante descarte e até mesmo desprezo pela imagem. Nessa modalidade técnica e produtiva da imagem definitivamente domesticada a ausência da impressão parece produzir um distanciamento ainda maior entre a tecnica, o produtor e o uso efetivo do objeto registrado.
De qualquer forma, me interessa saber de que forma e a fotografia permitiu as famílias negras na segunda metade do século XX produzir suas próprias imagens e que imagens são estas do ponto de vista estético-filosófico, político e social.
Mas, me interessa mais ainda observar as possibilidade de uso criativo dos acervos, tendo como material, o arquivo da minha própria família.
A multiartista Rosana Paulino nos e me estimula a voltar criativamente aos meus-nossos acervos fotográficos familiares para investigar que tipo de afetos, memórias e traumas nos constrói social e subjetivamente nessa sociedade colonial. Aqui Abraão Antônio da Silva em 1978. Quanto custava fazer meia dúzia de fotos 3/4? Quem detinha tal tecnologia? Qual sua serventia? Abraão tinha esse nome por conta de Lincoln que libertou escravos nos EUA. Ao menos assim nossos pais acreditavam. Lavrador e pedreiro, gerou dois filhos e duas filhas com Gasparina. Ela, mulher negra, filha do Congadeiro Dito Baianinho da cidade de Passos. O quarto filho de Antônio Jovino e Anna Silva nascido na zona das Águas em MG. A descendência de ambos, hoje margeia a grande São Paulo. Era umbandista especialmente relacionado com entidades de caboclo e boiadeiro. Sabia fazer traços de riscos secretos de giz e carvão no chão. Geralmente andava munido de um punhal de cabo de madrepérola (isso é usual nos 1970). Gostava de pito de fumo de corda. Cabelo penteado com escovinha, calça jeans boca de sino, jaqueta ou casaco pesado, cantil feito de cabaça, marmita com espiriteira e calçava botina barata e feita a mão. Gostava de cinema popular, faroeste italiano, filmes do Zé do Caixão e colecionava revistas em quadrinhos de Mandrake, Fantasma e Rin-tin-tin. Os ecos de sua existência ainda ressoam no meu peito hermano. Sua imagem não me perturba tanto, são raras fotografias e nenhum registro em áudio ou VHS. Mas minhas perguntas são sobre as determinações para que uma existência seja tão frágil. Com 28 anos faleceu em 1983. Na oralidade fugidia da família negra, regida pelo tempo da terceira geração pós escravidão, consta que na minha primeira infância que arengava bastante e depois o forçava me levar na cacunda, aos berros, para mamar nas tetas de minha mãe na casa de uma patroa de origem italiana, quase 2 quilômetros de distância. Como assimilamos mortes, quedas, perdas? De que forma sempre emergindo da trincheiras da desigualdade programada e seguimos adiante? Como aceitamos ou confrontamos as limitações e subalternidades de forma crítica ou simplesmente adoecemos internamente? Qual lugar da memória na construção de uma arte anti-hegemônica?
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