Sobre representações e estereotipias
negras no teatro paulista,
Instituto Itaú Cultural-
Terça, 12/05/2015 - A convite do Grupo os Crespos Cia de Teatro
“Salloma” Salomão Jovino da
Silva*
“Ora, no caso não há
escapatória nem subterfúgios, nem ‘passagem de linha’ a que possa recorrer; um judeu,
branco entre os brancos, pode negar que seja judeu, declarar-se homem entre os
homens. O negro não pode negar que seja negro, ou reclamar para si esta abstrata
humanidade incolor: ele é preto. Está pois encurralado na autenticidade:
insultado, avassalado, reergue-se apanha
a palavra ‘preto’ que lhe atiraram qual uma pedra; reivindica-se como
negro perante o branco, na altivez.” - Jean
Paul Sartre
“Racismo vai de desenvolver primo com a
colonização, ou seja, com o genocídio colonizador” - Michel Foucault
Quero agradecer o convite para
participar desse evento e que também dar parabéns a classe artística e
intelectual branca paulista, que em função desse evento, está sendo impelida a
participar dos debates sobre raça, racismo, etnia, identidade e sociedade em
rede no Brasil.
Não é meu intuito causar
frustração naqueles que pensam ser este um evento bombástico e inédito. Mas em
1969 após Wilson Simonal lançar a canção “Samba do Crioulo Doido” de Sergio
Porto ou Stanislau Ponte Preta, no Rio de Janeiro, um grupo de artistas
ativistas negros liderados pelo compositor Martinho da Vila, reagiu
delicadamente. Eles entenderem que o
conteúdo sofisticado da canção construía uma imagem negativa do compositor e do
sambista negro. Criaram um anti-evento chamado “Nem todo crioulo é doido” e
redigiram um manifesto público no qual refutaram todo tipo de estereótipo
racial antinegro e abriram um debate quase mudo, sobre este aspecto silencioso
e cruel da sociedade brasileira.
Grosso modo, a canção joga com a
projeção imagética degradante de um compositor negro que, ao ser desafiado a
compor um samba com teor histórico, sobre a política nacional pira e misturando
tempos e personagens da História Oficial do Brasil, gera um samba sem sentido. A canção parodiando um
enredo de escola de samba tornou-se bastante conhecida, mas o evento que o contestou
não e desde então, por aqui, quando se está diante de algo que parece mal
feito, mal organizado, ou de alguma idéia sem pé nem cabeça, os racistas
orgânicos designam “Samba do Crioulo doido”.
Afinal o que é loucura a endêmica
do negros mestiços, senão sinal mais potente da degeneração tal como pressupunham
os racialogistas? O desajuste social mental associado a raça negra havia
ingressado em todos os tecidos da criação. (Gonzaguinha ainda teria tematizado
uma “Negra maluca desfilando nua pelas ruas de Madureira”, nos anos 1970). Os manicômios, essas
instituições e seus criadores no Brasil os médicos/antropólogos tem muito a nos
dizer sobre racismo e cultura negras, por exemplo: Ulisses Pernambucano,
Raimundo Nina Rodrigues, Artur Ramos e finalmente René Ribeiro, o mais
francamente racista de todos. Apenas Roger Bastide analisou brevemente os altos
índices de suicidas negros em São Paulo no segundo quartel do século XX, em um
trabalho inconcluso. E só.
Não se tem conhecimento generalizado das
inúmeras outras canções de compositores negros feitas nos anos posteriores e
que igualmente contestam tal imagem-síntese do “Crioulo Doido” cunhada por
Ponte Preta. Ile Aye (1974) Bahia, por
exemplo, Somos criolo doido somo bem legal,
temo cabelo duro, somo breque pau”. Ou ainda Jansem Rafael (1970) Minas
Gerais, “Stanislau que deus o tenha ,
mas este e o samba do crioulo que realmente endoidou, ao tentar entender a
passada, a atual e futura conjuntura. E aderiu a um antigo costume de seus
ancestrais, caçar cabeças
brilhantes.....”O caçador de cabeças.
A primeira publicação de
“Reflexões sobre o racismo” de Jean Paul Sartre no Brasil é justamente do ano
anterior, 1968. Sartre investe sobre a origem e natureza do antissemitismo moderno
e do racismo antinegro e dedica especial atenção ao papel das projeções de
imagens estereotipadas, na construção do medo e da ojeriza antissemita e
antinegra no imaginário da Europa moderna. O pós guerra colocou a intelectualidade
ocidental frente-a-frente aos fenômenos
do racismo e do antissemitismo. Mas no Brasil parece que tal encontro ainda
está longe de acontecer. Fazer contato aqui é bem mais difícil, porque?
As figuras do negro e negra
construídas na forma do grotesco, da caricatura, do ridículo, da estereotipia, da
jacosidade, com estigmas associados à raça/cor negras podem ser encontrado em um longo espectro
temporal da produção dramatúrgica, teatral, cinematográfica e televisiva brasileiras e mundial, desde o
século XVIII até ontem. Aqui a sátira da pedinte negra está presente em
programas como Zorra Total, ou em um quadro de outro jovem humorista global
recém famoso, por exemplo. Quase nunca causa espanto, mas também não passa
incólume.
Evidente que o negrx-forma,
negrx-folclore, negrx arcaico da cultura popular, sugere a existência de uma
manancial aparentemente inerte de conteúdos simbólicos, que muitas vezes tem
sido explorados pelo teatro nacional. Em função de um limite cognitivo gerado
pelo alto índice de racismo que contamina os juízos ( não apenas de brancos,
portanto não há uma tendência natural de todos eles para isso), alguns estudiosos
do teatro creem sinceramente que esse negro-forma é aparentemente vazio, por
isso pode ser preenchido com os imaginários de brancura supra humana,
pretensamente incolor e universal. Em tese a forma máscara do teatro de paulista
recente, pintada, ou ensejada do negro-negra, não está diretamente ligada com
os seres humanos negros, os descendentes de africanos, ou aos humanos de pele
escura que habitam o Brasil.
A estereotipia não é tão importante quanto a
morte sistemática de jovens negros nas periferias dos grandes centros urbanos.
Mas certamente ao se produzir ou perpetuar a desumanização do contingente
social negro brasileiro, potencializa e naturaliza o genocídio.
Um teatro sobre negros sem
negros ou com apenas com um negro, também se pode ver na recente produção de
Antunes Filho, tematizando Lima Barreto. Desde 1905, com publicação de Os
negros” de Lima Barreto, se pressupõe uma escrita para corpos e mentes negras
em cena, desde lá há uma escrita e uma
cena teatral brasileira invisiblizada por uma memória europeizante, míope e
mesquinha. Mas quem estiver interessado pode acompanhar a historicidade de uma
criação dramatúrgica e teatral negra ao longo do século XX e ainda hoje se
deparar com uma produção vigorosa, embora de pouca visibilidade. Pode fazer
isso buscando os escritos sobre Thereza Santos ou Abdias do Nascimento, ou indo
direto ao site da Revista Menelik 2 Ato,
o livro das Capulanas ou a recém publica revista dos Crespos “Em Legítima
Defesa”.
A saber: Capulanas, Os Crespos,
Clariô, Coletivo Negro, Quizumba, Cia dos Comuns, Bando de Teatro Olodum, etc,
são indícios de que a brancura doentia do teatro brasileiro, esteja com os dias
contados. Entretanto a classe artística paulista,
tão mimada em sua condição de exclusividade, como elite intelectual branca e
brancocêntrica estará disposta a fazer contato?
Quando intelectualidade
brasileira terá a coragem de Sartre para mergulhar de verdade nesse campo tão
delicado da construção da nossa sociedade?
Pensando nas máscaras dos Fofos
e em termos teatrais, podemos definir tais representações negativas dxs negrxs como
tradição? Em sendo uma tradição, deve por isso ser perpetuada?
Ao se manter tal tradição e
alimentarmos formas de representação, que xs negrxs entendem como racistas,
estamos disposto a admitir que, efetivamente somos racistas como sociedade?
Isso, ao contrário do que sustentam Kamel/Magnolli e seus adeptos? A onda negra
virá em forma de tribunal racial?
Algumas dessas perguntas podem
ser feitas a classe intelectual e artística brasileira, logicamente ser
esquecer o quanto esta é hegemonicamente branca. Qual lugar do racismo antinegro ocupa na
produção cultural contemporânea?
Até quando a classe artística e
intelectual hegemônica e branca, as vezes não branca no tom de pele, mas branca
na forma de conceber arte e cultura e também o mundo, vai reagir de forma
intelectualmente infantilizada e se fechar sobre si mesma? Uma vez acuada no
alto seu castelo transparente e vai gritar a plenos pulmões que sua Liberdade
criativa está em risco? E que a rua e internet agora estão cheias de negonas e
negões raivosos querendo seu escalpo ou seu lugar na cena ?
Ou de outro lado vai ser capaz
de abrir um debate franco sobre a ausência de negros e negras nesses espaços de
criação, produção e veiculação de arte e cultura? Vai admitir que alguns dos
seus pressupostos estéticos contem equívocos, distorções e maniqueísmo
raciais?
Os gestores de cultura e a
classe artística irá se abrir para entender o fenômeno novo do ativismo negro
em rede e seu impacto sobre as formas de propagação das representações racistas
antinegras? Será que isso é o mesmo que
censura? Digo tem a ver com experiência
politica de controle de informação exercido por uma órgão do poder, tal como
foi nas Ditaduras? Quando setores
sociais tradicionalmente excluídos utilizam as formas de comunicação e pressão
que estão ao seu alcance, para denunciar ou coibir algo “normal”, porem moralmente inadequado,
estão efetivamente censurando?
Miriam Garcia (1982, 1993) nos
informa como os personagens negrxs foram entrando ( sem estar) na produção
teatral Brasileira, desde as obras de Joaquim Manoel de Macedo e Martins Pena.
Onde xs negrxs apenas são sombras, figuras sem nome de escravizados que, sequer
recebem uma rubrica, mas apenas menções vagas nas bocas de personagens humanos
(quero dizer brancos).
Há uma historia gloriosa do teatro nacional e universal que é ensinada nas escolas e universidade.
Até mesmo dramaturgos negros situados nesses lugares, parecem impotentes,
incapazes de fazer menção as criações dramatúrgicas negras e incorporá-los ao seu
repertório, ou trazer para escolarização artística reflexões poucas, mas
importantes de, pr exemplo, Roger
Bastide nos anos 1970, sobre o
tema. Talvez, no futuro alguns
professores mais progressistas possam incorporar, ainda que tardiamente, ao
menos o universalismo de uma Margot Berthold (1968).
Creio que estamos diante do que
Clovis Moura designou “dinâmica sociopolítica negra”, uma nova dinâmica que
oferece um desafio para o racismo antinegro e também coloca em cheque as velhas
formas do ativismo negro do século XX.
Referências:
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LIMA, Mariangela Alves de. O
teatro negro no Brasil e nos Estados Unidos. R E V I S T A U S P , SÃO O P A U L O ( 2 8 ) : 2 5
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LIMA,
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Um olhar sobre o teatro negro do Teatro Experimental do Negro e do Bando de
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NARANJO, Julio Moracen. Maria Antonia e Efigênia, gênero e sociedade
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MOURA,
Christian Fernando dos Santos. O Teatro
Experimental do Negro – Estudo da personagem negra em duas peças encenadas (1947-1951).
Dissertação – Mestrado. Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista –
UNESP. São Paulo, 2008.
*Salloma Salomão é Músico, Professor e
Historiador. Doutor em Historia pela PUC-SP investigador associado do Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e pesquisador interessado na
produção cultural negra contemporânea no Brasil.
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