Invisibilidade histórica da Multidão no Brasil: a violência racial e a desmemoria das lutas negras
Salloma Salomão Jovino da Silva[1]
O escravo não é visto
como indivíduo, mas como multidão.
Nelson Werneck Sodré
Escrevem da Jamaica: Os
negros recusam trabalhar, e temos aqui todos os sintomas de insubordinação, e
toda razão para recear uma revolta geral. Já se efetuaram várias tentativas
incendiárias e a ilha acha-se ameaçada de uma tragédia tão sanguinolenta e
horrível como a de São Domingos.
Jornal do Comércio, Rio de
Janeiro, 21 de maio de 1835.
É certo que, se há um mundo por vir, ele está em disputa agora, no
entanto é preciso resistir ao desejo controlador de projetar, desde a ruína
deste, aquilo que pode vir a ser o mundo que vem.
Jota Mombaça
Sessenta mil pessoas sofreram
homicídio no Brasil no ano de 2014, as taxas de jovens negros mortos
violentamente, em todos os Estados da federação, são absurdamente maiores que a
de brancos jovens ou da mesma faixa etária. Não se trata de buscar que brancos
e negros morram igual, mas de mostrar que morte de gentes desimportantes tem
sido, em parte, uma constante da biopolítica de Estado no Brasil, que agora
assume ares de calamidade, sem que a sociedade nacional e internacional se dê conta
da sua gravidade, justamente porque atinge a multidão composta pelos mais
pobres, entre os quais os negros e negras.
Quero me apresentar. Salloma
Salomão Jovino da Silva, professor de História, intelectual periférico e um dos
52% dos descendentes de africanos que vivem no Brasil atualmente. Viver no
Brasil é correr risco, pensar o Brasil é risco duplo, de ser silenciado física
e simbolicamente, antes mesmo de ter emitido qualquer fala ou pensamento que
ponha em risco a ordem.
Considero ótima oportunidade para
um exercício interpretativo sobre a sociedade brasileira atual. Tenho plena
consciência dos perigos. Podemos fazer isso olhando a longa duração da formação
da nação brasileira, como também termos em vista questões atuais, suscitadas
pela contribuição do pensamento de Antonio Negri em sua breve passagem pelo
Brasil em 2016. Ele, com o vigor de um jovem ativista, visitou universidades, frequentou
centros culturais e se deteve atencioso em simples rodas de conversas. Antonio
circulou quase anônimo por salas obscuras de antigos clubes étnicos elitistas,
agora desativados, onde estabeleceu contatos diretos sem mediadores raciais com
a juventude urbana e intelectuais marginalizados. Fez isso com a mesma
desenvoltura, sensível interlocução e dialogia crítica de quando envolvido por
representantes da elite acadêmica paulista e carioca.
O clima sociopolítico que se
instaurou recentemente no país assombra uma parte da sociedade brasileira,
enquanto outra se regozija com sangue nos olhos e difunde percepção de que a
principal meta da luta política é usar o Estado para atividade privada e o seu
aparato para revanche ou vingança. Ambiente de medo, desmonte e incertezas que
se arrasta desde o início da trama teatral que levou à destituição da
presidente Dilma Rousseff e à ascensão do atual presidente da república. O
ilibado senhor Michel Temer apresentou quarenta ministros brancos do sexo
masculino, e uma mulher negra foi chamada às pressas, quando as nomeações chapas-brancas
já estavam consolidadas.
Agora sabemos que a era
Collor-Itamar-FHC foi apenas um ensaio mal organizado de tudo aquilo que as
elites reacionárias modernas brasileiras são capazes de fazer em curto espaço
de tempo.[2]
Tendo isso em vista e em função do
recrudescimento do conservadorismo político atual, utilizo um eixo
especificamente racial da reflexão de Michael Hardt e Antonio Negri[3] como disparador para
construção de um argumento em torno da ideia de utilização da violência
sistêmica como forma de manutenção do racismo antinegro, subentendido aqui como
hegemonia das elites eurodescendentes no Brasil. Faço isso abrindo também um
canal de diálogo com um texto da ativista antirracista Jota Mombaça, extraindo
dela um potente fragmento, apresentado a seguir.
Ao tratar de racismo institucional
“típico”, como nos Estados Unidos e África do Sul, em o Império, Negri e Hardt utilizam o termo “Supremacia Branca”.
Efetivamente, no Brasil, as elites jamais haviam construído argumentos públicos
em torno de supremacia de minoria branca, embora ela possa ser comprovada pela
empiria e pelos dados, em todos os campos da vida social.[4] Entretanto, recentemente
um político profissional de formação militar do Sudeste, francamente racista e
reacionário, tem evocado o racismo antinegro e anti-indígena como ideologia e
plataforma eleitoral, obtendo, com isso, relativa aceitação e apoio midiático.
Estrategicamente há aqui uma
sobreposição às narrativas nacionalistas de identidade brasileira, e que são
sumariamente mencionadas, apenas pano de fundo. Ou, no seu conjunto, podem ser
vistas também como constructo social que objetivam comprovar a inexistência do
racismo e legitimar a exclusividade do poder, prestígio e mando das elites
brancas. Nesse caso farei isso invertendo não o método, mas o foco do que foi
sugerido por Antônio Sergio Guimarães em Como trabalhar com “raça” em sociologia.[5]
A perspectiva intelectual e
político-social engajada da vida e obra de Negri contrasta com um amplo
espectro da comunidade intelectual brasileira contemporânea, especialmente
fechada em escritórios das instituições de pesquisa acadêmica, encastelada,
arrivista e medrosa. Algo que, em parte, se viu nos eventos de recepção à
Negri. Qual seja? Em sua absoluta maioria jovens homens brancos letrados,
cortesões refinados, dialogando com o convidado e apenas consigo. Situação na
qual se postam de costas para a sociedade. Seu elitismo em bloco se expressa
num silêncio ensurdecedor ante o quadro de violência institucional e sistêmico
que vou desenhar a seguir.
Tento um contraponto com Michael
Hardt e Antonio Negri, no tópico sobre formação dos Estados nacionais na
Europa, pensando nas peculiaridades da constituição do Brasil, enquanto Estado-nação
e os lugares históricos, simbólicos e sociais destinados aos descendentes de
africanos nesse arranjo neocolonial. Não se trata da aplicação das fórmulas binárias
e antagônicas negro-branco, colonizador-colonizado, elite-povo, mas da
constatação cotidiana da sujeição histórica, medida pela incidência das
profundas divisões sociais, culturais, políticas e econômicas que tornaram a
sociedade brasileira aquilo que efetivamente é: desigual, violenta,
conservadora, sexista, cristã e racista.
Meu objetivo é sustentar a ideia de
que as elites intelectuais contemporâneas brasileiras, por conservadorismo,
medo e interesses na manutenção da ordem social e da unidade nacional, são
coniventes, senão as operadoras, da cultura de violência estatal e paraestatal
que tem vitimado de forma radical, desumana e vergonhosa as populações negras
no Brasil e, sobretudo, a juventude negra urbana. Trata-se da peculiaridade do
racismo brasileiro. Nunca dizer seu nome nem enunciar seus meios e fins. Mas
medrar sempre, para manter-se intacto.
Dados estatísticos sobre a
violência demonstram de forma contundente que a percentagem de morte dos jovens
negros vem aumentando exponencial e progressivamente, ano após ano. Todos os
mecanismos legais e políticos formais têm sido acionados para barrar esse
processo contínuo de extermínio. No entanto, sem sucesso.[6] Pode ser
considerado um simples jogo de cena da classe política, mas foi aberta uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso Nacional Brasileiro. Em
2015 a comissão terminou o relatório. São 283 páginas de texto, onde, além dos
dados e análises, constam também sugestões ao poder executivo de medidas
imediatas, de médio e de longo prazo. Mas o Congresso em resposta prática e
rápida tratou de liberar, de forma irrestrita, a utilização de armas de fogo
para a população civil.
Ainda em diálogo com Negri e Hardt,
meu argumento central incide sobre duas ideias que venho desenvolvendo para
compreender melhor as formas culturais afro-brasileiras e seus confrontos com a
hegemonia econômico-cultural brancocêntrica. Uma primeira elaboração é aquela
que diz respeito à modernidade reacionária[7] das elites brasileiras, e
a segunda versa sobre a cultura e a pedagogia da violência como formas de
controle social das populações subalternizadas.
Sobre a modernidade reacionária das
elites é preciso lembrar a qualquer estrangeiro recém-chegado que um discurso
muito eficaz sobre a identidade brasileira tem sido manipulado pelo Estado e
pelas elites intelectuais desde a primeira metade de século XX, no sentido de
mostrar uma imagem de harmonia social ou de “hierarquia social de consenso”,
por isso parece quase nunca tensionada. A ênfase na permeabilidade étnica, no
hibridismo biológico-racial e plasticidade cultural favorecem, em tese, a não
existência de racismo. Em outras palavras, mesmo hoje ainda há muita força na
imagem do Brasil como Estado-nação cuja identidade nasce do encontro fraterno de
populações originárias (índios), negros (africanos escravizados) e brancos
civilizadores. A esse idílio os políticos e intelectuais, não apenas
conservadores, passaram a chamar de Democracia Racial Brasileira. Forja
imagética da identidade, ficção interna e externa. Toda crítica a essa projeção
é rechaçada como alienígena, antinacional, racista ou divisionista. Ao não
poder responder a um coro de intelectuais renomados, as vozes dissonantes são
silenciadas.
Pensadores estrangeiros, ou mesmo
nacionais, cujas visões sobre o Brasil foram moldadas por textos, canções,
filmes fundamentados nessas construções ideológicas, ainda encontram como fonte
Gilberto Freyre. Mas uma forte corrente interpretativa neo-freyreana emergiu em
pesquisadores como Peter Fry (2005), Ivone Magie (2006), Lilia Schwarcz (2015),
Hermano Viana (2001) e Livio Sansone (2001). Podem ser entrevistos como arautos
da brasilidade autoritária e brancocêntrica do século XXI.
Temos oitenta anos de construção
discursiva freyreana para alguns momentos de emergência da desarmonia, tensão
ou dissonância do arranjo original das três raças? Certamente devem ficar
arrepiados os estrangeiros mais propensos a ver o Brasil por tais lentes
ocultistas, quais sejam, mitificação da mestiçagem como originalidade
identitária, ante a emergência de narrativas dissidentes sobre a identidade una
do Brasil. Historicamente, tais narrativas espinhosas são quadros marginais
elaborados, geralmente, por pensadores afastados do poder estatal, acadêmico,
econômico ou político.
Se
o neocolonialismo europeu tem seu marco na Conferência de Berlim, em 1885, no
Brasil ele começou mais cedo. Quero dizer, começou em 1808, com a chegada da
família real portuguesa. Já se encontrava muito bem elaborado na produção
intelectual de José Bonifácio de Andrada e Silva[8], iluminista
português nascido no Brasil e o primeiro a construir uma tipologia do
brasileiro ideal, na qual excluía os negros. Ao idealizar um Brasil racialmente
homogêneo, como deviam ser as “nações modernas”, com refinados argumentos
pré-eugênicos recomendava sua libertação e extinção gradual pelo cruzamento
biológico coordenado, ou seja, fazia isso cinquenta anos antes da eugenia
existir como pseudociência e ideologia. No Brasil foi muito bem assimilada por
médicos sanitaristas e médicos psiquiatras, como Raimundo Nina Rodrigues, mas
também se espraiou para o pensamento econômico, cultural e político. Pensando
exclusivamente na literatura da segunda metade do século XIX e a primeira do
século XX, seria necessário identificar melhor os fios eugênicos que conectam
as obras de Aloísio de Azevedo a Monteiro Lobato.
Nas interpretações neofreyreanas sobre o
império português no Brasil, pululam as loas dessa primeira etapa da
“modernização” promovida pela Casa de Bragança, ao mesmo tempo em que a
natureza própria dos projetos de inserção do Brasil no contexto das nações
independentes é geralmente envelopado em um discurso francamente monarquista,
antidemocrático e racialmente hierarquizante.
As mudanças e permanências estruturais e
mentais nos permitem afirmar que as noções de modernização tecnológica e cultural
elaboradas pelas elites têm tido como marcas fundamentais a constante busca de
aprimoramento tecnológico produtivo e manutenção dos privilégios dessas mesmas
elites. Embora cem anos separem as elites agrárias da independência de 1822 e
os filhos das elites agroindustriais representadas pelo Modernismo de 1922, as
conexões ideológicas e de classe/raça entre ambas já não podem mais ser
negligenciadas. Como já argumentei recentemente:
A modernidade brasileira combinou tecnologia, cultura
artística, políticas urbanas, industrialização, mas não abriu mão de velhas
formas de colonialismo interno no trato com as populações pobres, indígenas e
negras. Embora socialmente situada ao lado dos brancos pobres, nossa condução
tem especificidades que não podem ser anuladas, justamente pela longa duração e
historicidade dos racismos antinegro e anti-indígena. Os tataranetos dos
paulistas quatrocentões sequestraram para si a ideia de modernidade europeia,
aproveitando que seus pais e avós haviam feito fortuna combinando tráfico
clandestino, escravismo altamente racionalizado e plantation. Nossa concepção nacionalista de modernidade tem estas
matrizes: patrimonialismo, escravismo e
racismo.[9]
Em
segundo lugar, é meu objetivo sustentar a ideia de que as elites intelectuais
contemporâneas brasileiras, por medo ancestral e interesses atuais na
manutenção da ordem social e da unidade nacional, são coniventes com a cultura
de violência estatal, que tem vitimado de forma radical, desumana e vergonhosa
as populações indígenas e negras no Brasil. É isso que podemos interpretar
quando confrontamos o silêncio dos setores médios, quando não seu clamor por
mais violência racionalizada, e que, sobretudo, tem transformado em um inferno
social a vida de um amplo setor da população composto exclusivamente pela
juventude negra mais pobre e situada nas cidades mais urbanizadas.
Essa
situação calamitosa, designada “Genocídio da Juventude Negra”, tem sido
denunciada de forma marginal e silenciada pela mídia tradicional, com a
conivência da classe média branca e das elites intelectuais, políticas e
econômicas, predominantemente brancas – senão no traço fenotípico, brancas na
percepção de mundo, que tem na Europa Ocidental o centro do cosmo.
Mais
uma menina morta pela polícia militar do Rio de Janeiro em uma escola de um
bairro pobre qualquer. Na semana seguinte os telejornais repercutem as mortes
de policiais, para sustentar a ideia de guerra. Contra quem? Agora sabemos, o
inimigo somos nós, a base hierárquica da população. A doutrina policial nos
identificou como inimigos potenciais, e toda lógica de segurança é construída
na ideia de que a polícia se alimenta de práticas de retaliação, vingança e
raiva. Contra quem?
Mulher negra arrastada pela polícia por
quilômetros até morrer esfolada, uma mulher transexual abatida na viela, morta
a pauladas, uma lésbica morta a coturnos másculos na rua. A imagem destes
corpos fica amontoada num canto da tela aguardando nossa ação. E nada. Não
repercute. Nas redes sociais vazam imagens de violência cotidiana contra gays e
mulheres, lésbicas ou não, crianças e jovens negros.
Os
chamados “formadores de opinião” jazem num silêncio ensurdecedor. Também
mortos, agem como se vivessem na Bélgica. Herdeiros como somos da tradição
ocidental, aqui a escala de valores propriamente humanos continua sendo homem
branco, mulher branca, homem negro, mulher negra. Os povos originários
continuam a ser quase que completamente ignorados em qualquer perspectiva, mas
também a violência de Estado nunca cessou sobre eles, desde a época da “Guerra
Justa”.[10]
São idilicamente expostos em mostras fotográficas, filmes e exposições
iconográficas em luxuosos centros culturais nas metrópoles, locais onde seus
descentes trabalham em condições análogas à escravidão.[11]
Na
bela sociedade cosmopolita contemporânea brasileira, os mestiços e povos
originários são mencionados também em filmes comerciais e séries de TV, onde os
protagonistas são, via de regra, homens brancos superletrados
do Sudeste.[12]
E a violência é nossa marca de longa duração, e nossa modernidade a sofisticou.
Em termos de imaginário nacional continuamos a nos ver pelas pranchas
romântico-modernistas de Tarsila, Freyre, Hollanda e Darcy Ribeiro. Essas telas
canônicas se sobrepõem à nossa efetiva capacidade de cognição do real. Mesmo
quando ela fura a tela, avança sobre nós, nos empurrando de volta, e nos
mantemos impassíveis, conformados, impotentes.
Vamos resumir: o Brasil, como Estado nacional,
foi formado por um episódio fortuito ocorrido na Europa, qual seja, a invasão
de Portugal pela França napoleônica e a fuga da família real portuguesa para o Brasil
em 1808. A declaração de independência, operada por um monarca da casa real
portuguesa em 1822, não significou uma ruptura, mas, ao contrário, um arranjo
político, continuidade do projeto colonial. O escravismo racial foi não apenas
mantido como combinado com um projeto colonial interno, onde os negros eram
ainda indispensáveis como máquinas produtivas, mas descartáveis como
contribuição à formação do Estado nacional embrionário. Visando o
embranquecimento biológico e cultural gradativo da população, os africanos e
seus descendentes tornaram-se, pouco a pouco, “os inimigos de porta adentro”.[13]
Posteriormente,
o golpe militar de Estado que suprimiu a monarquia e instaurou a “República dos
Fazendeiros”, em 1889, implicou em novas continuidades, e não em ruptura da
ordem social do absolutismo tropical. Os autoritarismos das elites
modernizadoras, mais notadamente reacionárias, delimitaram todas as formas de
ordem, poder e controle social, cultura e participação política ao longo do
século XX. Um dos primeiros atos institucionais republicanos consistiu em
impedir o voto das pessoas analfabetas. Num golpe de caneta, cerceou a
participação nos pleitos eleitorais da maioria absoluta da população, sobretudo
da população que até o ano anterior teria sido escravizada.
Ainda assim
multidões de excluídos, em inúmeros episódios, desenvolveram práticas de
contestação da ordem concebida pelas elites, e no limite de suas possibilidades
elaboraram estratégias de integração social e acesso a direitos sociais
básicos. As elites reafirmaram seu lugar com novos estigmas, violência estatal
e inovadoras brutalidades, agora racionalizadas como política de trabalho e
direitos parcos, segurança pública e saúde mental, educação e controle
aprimorado das atividades artísticas e culturais, sindicais e políticas. Não há
um só tópico socioeconômico, qual seja, emprego, moradia, saúde, escolarização,
justiça, segurança, previdência em que as iniquidades não sejam comprovadas
pelos dados coletados pelo próprio governo federal.[14]
Vou
definir, ao meu modo, o que vem a ser cultura da violência. Por cultura da
violência estou afirmando haver, por parte das elites políticas, um trato
racionalizado e desumano, na longuíssima duração, para com negros, indígenas,
mestiços e brancos muito pobres. Essa desumanização, advinda de uma alteridade
distorcida e forjada pela ideologia de superioridade racial, atravessa colônia
e império e se torna mais sofisticada, científica e desdobrada na era
republicana.
No
processo de modernização-urbanização-globalização tem sido reafirmada a
exclusividade branca diante das classes subalternas formadas, prioritariamente,
sobre descendentes dos dois grupos. Os racismos medram, mudam e se aprimoram
desde a virada do século XIX até o presente ano do século XXI. Desde os anos
1980, há uma alta taxa de natalidade, por isso essas mortes não impactam a
produtividade e nem reprodução do capital. Estou sugerindo que as mortes
violentas têm tido o papel primordial de manter a qualidade de vida das elites
sociais. Racismo tem sido política de Estado.
Divagando
um pouco: Elikia M’Bokolo[15]
nos ajuda a visualizar que, na passagem do século XVIII para o XIX, se
desenvolveu na Europa toda uma construção cultural, em meio à qual foi
concebida a ideia de uma humanidade geral e abstrata. Esse espelho europeu
projetado frequentemente concorria passo a passo com as teorias de formação
cromática da humanidade, que resultou em uma gradação evolutiva baseada na cor.
No topo da pirâmide estariam os europeus. Isso coincide com a posição
imperial-colonial global da Europa.
No
Brasil, os fazendeiros fluminenses, mineiros e paulistas, tão cantados como
nossos modernizadores, rapidamente se adequaram aos novos tempos e combinaram
suas atividades produtivas com o comércio interno e clandestino de pessoas
negras. Estes mesmos que fustigavam o Império, enquanto fomentavam a República
das Oligarquias. Emília Viotti da Costa (2010), ao analisar o longo e complexo
caminho da abolição da escravatura no Brasil, concluiu: “O arbítrio, a
ignorância, a violência, a miséria, os preconceitos que a sociedade
escravagista criou ainda hoje pesam sobre nós”.[16]
Eu perguntaria a Viotti da Costa, pesam sobre nós quem, cara pálida? As novas
elites tiveram que elaborar outras ferramentas, discursos e métodos. Jota
Mombaça jovem ativista, coloca a coisa fria nos
seguintes termos:
É, sobretudo, no controle sistêmico do trânsito de pessoas africanas
livres e afrodescendentes que a polícia vai passar a operar, como braço do
projeto colonial em sua versão moderna, garantindo a segurança das elites
brancas e mestiças e o terror das comunidades empobrecidas e racializadas. O
racismo contra pessoas pretas e pobres está, portanto, no DNA das polícias e
das redes de controle e extermínio que se articulam em torno delas. Mas não
teria sido necessário ouvir uma acadêmica branca para dar-se conta disso. Não é
de hoje que movimentos políticos como Mães de Maio e Reaja ou Será Morta(o),
assim como uma série de vozes implicadas nos ativismos e organizações
comunitárias pretas, produzem conteúdo, denúncia e articulação para visibilizar
o papel efetivo desses genocídios racistas e classistas nas gramáticas da
dominação à brasileira. [17]
Em
todas as revoltas do século XX os negros fizeram sentir seu protesto contra a
nova ordem. Canudos, Vacina, Pelados, Chibata, Jagunços, Araguaia, Corumbiara,
Altamira, Carandiru. Contudo, uma interpretação recorrentemente conservadora e
brancocêntrica das lutas camponesas e urbanas, ocorridas no transcurso do
século passado, geraram imagens prismáticas de conformismo, anomia,
inconsciência política e desarticulação social das populações afro-indígenas e
pobres.
Cerceados
pelas políticas de embranquecimento, encarcerados em presídios e manicômios,
com empregos e escolarização precários, durante o crescente processo de
industrialização e desenvolvimento econômico, clubes sociais e associações
negras eclodiram em todo o país com objetivo de fomentar novas formas de
sociabilidade e integração, tal como nos informa Clovis Moura (1980). As elites
responderam, com mais concentração de prestígio, poder e riqueza. Introduziram
alta tecnologia e prescindiram paulatinamente da mão de obra tradicional e de
baixa escolarização. Mantiveram os altos cargos e salários na indústria e nos
serviços para funcionários, para classe média branca estabelecida ou os atribuíram
aos europeus recém-chegados.
Negri e Hardt ainda atados a uma
percepção crítica, mas não menos eurocêntrica, tratam o racismo contemporâneo
como uma abstração absoluta, remetem-se ao fim do regime de apartheid como fim simbólico do racismo
moderno e concluem reconhecendo que as formas de racismo sofreram uma mutação
essencial do campo da biologia para o do relativismo cultural, mas continuam a
progredir. Citam Deleuze e Guattari como tendo sustentado que “o racismo
europeu nunca operou pela exclusão, ou pela designação de alguém como Outro”. A
necessidade de uma teoria geral do racismo cria essa incapacidade cognitiva
básica, de reconhecer as peculiaridades dos fenômenos que podem ter na origem a
mesma fonte, mas deixam de ser o mesmo em diferentes contextos.
Pode ser que efetivamente no contexto da Europa Ocidental
essa noção de alteridade rebaixada possa ter se efetivado como forma de
tratamento racial. Mas no processo formativo das sociedades colonizadas o caso
foi totalmente outro. Qual seja, a desumanização absoluta dos não brancos foi a
base do desenvolvimento da cultura, da economia e das hierarquias sociais
coloniais e pós-coloniais.
[1]“Salloma”
Salomão Jovino da Silva é professor afro-mineiro, doutor em História pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisador visitante
do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL-PT). Músico,
ativista antirracista e educador público no Centro Universitário Fundação Santo
André, São Paulo.
[2]
Desde que assumiu o poder, o presidente Michel Temer, não sem resistência, tem
operado, de forma coordenada, um verdadeiro desmonte das tímidas políticas de
bem-estar social, saúde pública, renda mínima, educação e combate à pobreza
extrema. Flagrantemente, vem retirando investimento de todas essas áreas e
criando um caos nas atividades produtivas, ao mesmo tempo que amplia o espaço
do capital internacional, em áreas que antes eram reservadas às elites
capitalistas locais. Temer rapidamente fez aprovar leis ordinárias de
interesses marcadamente corporativos locais e globais. O faz com amplo apoio de
um congresso comprovadamente o mais corrupto que o Brasil viu surgir desde o
fim da ditadura. É apoiado pela mídia em geral, mas é especialmente suportado
pelo grupo de comunicações Globo, reconhecido internacionalmente pela sua alta
capacidade de decidir eleições e manipular a opinião pública.
[3]
Hardt & Negri, Império, Op.cit.
[4] Veja, por
exemplo, Carlos Hasenbalg, que ainda nos anos 1970 comprovou, em sua tese, a
existência de práticas discriminatórias no mercado de trabalho em a Discriminação e desigualdades raciais no
Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1979. Também Raquel Rolnik, que apontou para
formas de discriminação racial e resistência cultural na formação urbana
brasileira em A cidade e a lei.
Legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo, São Paulo,
Fapesp/Studio Nobel, 1999.
[5] Antônio Sérgio Guimarães, Como trabalhar com raça em sociologia, Educação e Pesquisa, São
Paulo, v.29, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2003.
[6]
Segundo o Atlas da violência 2016,
apresentado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea): “Com
efeito, Cerqueira e Coelho (2015) verificaram que um indivíduo afrodescendente
possui probabilidade significativamente maior de sofrer homicídio no Brasil,
quando comparado a outros indivíduos. Essas diferenças são maiores no período
da juventude (entre 15 e 29 anos). Aos 21 anos de idade, quando há o pico das
chances de uma pessoa sofrer homicídio no Brasil, pretos e pardos possuem 147%
a mais de chances de ser vitimados por homicídios em relação a indivíduos
brancos, amarelos e indígenas. No período analisado (de 2004 a 2014), houve um
paulatino crescimento na taxa de homicídio de afrodescendentes (+18,2%), ao
passo que houve uma diminuição na vitimização de outros indivíduos que não de
cor preta ou parda (-14,6%)”. Atlas da violência
2016. Nº 17. Brasília, março de 2016, p. 22, 23.
[7]
O germanismo foi uma influente corrente intelectual no Brasil entre finais do
século XIX e início do XX, que tomava o atípico caso de desenvolvimento da
Alemanha como modelo ou paradigma de Estado nacional para o Brasil republicano.
Incorporei aqui por similitude o conceito de modernismo reacionário, aplicado
por Jeffrey Herf à República de Weimar e ao Terceiro Reich. Veja: Jeffrey Herf, O modernismo reacionário, tecnologia,
cultura e política na República de Weimar e no 3º Reich, São Paulo, editora
Ensaio: Editora da Unicamp, 1996.
[8]
José Bonifácio de Andrada e Silva, Projetos
para o Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
[9] Para alguns
autores brasileiros parece ser muito complexa a ideia de colonialismo interno.
Meu argumento é bastante simples. Tanto a vinda da família real portuguesa como
a manutenção da ordem escravista, assim como a maior inserção das elites
brasileiras de origem portuguesa no mercado mundial de coisas e pessoas, em nada
denotaram qualquer ruptura da lógica colonial. Mas sua permanência mais atroz
encontra-se no âmbito da cultura, da mentalidade e da manutenção do poder,
prestígio e mando em mãos eurodescendentes por cinco séculos, em todo o
continente americano.
[10]
A antropóloga Vanessa Caldeira, companheira de trabalho em grupos de formação
continuada de professores, em aulas que dividíamos, apresentava e interpretava
um documento imperial joanino, publicado como edito real em 1808, que legitimava
a “Guerra Justa contra os Botocudos” – Vanessa Caldeira, “História de Botocudo”.
In: Marcos Rezende & Ricardo Álvares (org.), Era tudo mata: O processo de colonização do Médio Rio Doce e a formação
dos Municípios de Aimorés, Itueta e Resplendor, Belo Horizonte, Aimorés,
consórcio da hidrelétrica de Aimorés, 2007.
[11]
Recentemente o Instituto Tomie Otake de São Paulo, sob curadoria da antropóloga
Lilia M. Schwarcz realizou exposição em luxuoso prédio envidraçado do bairro de
Pinheiros, cujo tema eram os mestiços dos primeiros tempos da colonização, com
gravuras da época da ocupação holandesa em Pernambuco. Pinheiros apresenta um
patamar superior ao da Holanda em termos de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano),
um dos mais altos do país.
[12]
Menciono aqui uma recente série de TV, um filme épico no qual os personagens
centrais eram os irmãos Vilas Boas, sertanistas ou indigenistas que, em pleno
século XX, ainda encarnavam o mito dos paulistas desbravadores. Corresponsáveis
relativamente conscientes da interiorização da ordem republicana para as
regiões amazônicas.
[13]
Ramatis Jacino, Transição e exclusão: O
negro no mercado e trabalho em São Paulo pós-abolição – 1912/1920, São
Paulo, Nefertiti, 2011.
[14]
Tanto o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) quanto o Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) têm publicados dados e estudos anuais e
periódicos sobre desigualdades estruturais e estruturantes no Brasil e sua
incidência, sobre os quesitos cor, raça e gênero.
[15]
Elikia M’Bokolo, África negra, história e
civilizações, Tomo I, Salvador, Edufba, São Paulo, Casa das Áfricas, 2009.
[16] Emilia Viotti
da Costa, A abolição, São Paulo,
Editora Unesp, 2010, 9ª edição.
[17] Jota Mombaça, Rumo a uma redistribuição
desobediente de gênero e anticolonial da violência!, p. 03.