Ação designada SAMPA NEGRA, (Dia 14
de dezembro às 15hs, na sede do ILU Oba) teve por objetivo discutir, acompanhar
e propor políticas públicas de combate ao racismo antinegro na grande São
Paulo. Vislumbramos um Ativismo Negro do século XXI, que se expresse em
ações cotidianas e um sistema digital de informações e monitoramento dos
serviços públicos e na denuncia em caso de ineficiência ou inexistência. Essa
ferramenta deverá ser confeccionada por ativistas jovens, experts em cultura
digital. A Primeira ação consistiu em uma Roda de reflexão sobre Memória e
História da População Negra em SP.
Visamos inicialmente ações
pontuais, consideramos a conveniência da análise das comemorações do
aniversário da cidade durante o mês de janeiro de 2014, nas quais ficaram
flagrantes a dubiedade da imprensa e das instituições sobre como lidar com a
natureza específica das populações negras e suas memórias na cidade.
O tema que se ressaltou foi sobre a
natureza das violências cometidas contra a juventude negra urbana e a
necessidade de se criar novas formas de participação política.
Pensar São Paulo como um polo mundial de culturas negras.
Pensar São Paulo como um polo mundial de culturas negras.
Estiveram presentes Eliane Costa, Alexandre
Kishimoto, Salloma Salomão Jovino, Kety Viana, Amailton Magno Azevedo, Ana
Raquel Rodrigues da Silva,
Sampa Negra: Urbanidade, Periferia, Contracultura e
antirracismo:
Toma os escritos de Paul
Gilroy e Beatriz Nascimento para reconfigurar o Atlântico Negro no eixo sul e
historicizar as produções culturais negras na cidade de São Paulo, a partir da
segunda metade do século XIX. Localiza a cena contemporânea de criação
dramatúrgica e teatral autonomeada negra e periférica e intenta pesquisar aspectos
fundamentais desses projetos estético-políticos e desvelar estratégias, colaborações e potencialidades, conflitos,
fragilidades e tensões, na dinâmica da
metrópole.
Salloma
Salomão é Músico e pesquisador financiado por CAPES, CNPq e Codesria. Investigador
visitante do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
(ICS-UL-PT) e Professor de História da África, América e Diáspora Negra no
Centro Universitário Fundação Santo André.
Entro na cidade pela
região do Jabaquara e tento conduzir o olhar e imaginação do meu leitor por
avenidas, bairros e vielas, morros e várzeas que se espraiam para os confins do
bairro de Santo Amaro. Vi quando o córrego Zavuvus foi sepultado pelo concreto
armado e aqueles homens sem rosto foram mortos pela polícia da ditadura, bem
ali na Casa Palma. Quando eu e Kaká
erámos muito pivetes, a banda Moleque de Rua nem era embrionária e o menino
Duda, bem magro, batia uma bola em um campinho terra batida com a gente. Onde? Na rua das Ameixeiras na Catarina.
Essa geografia citadina, território
em mudanças constantes, nele são encontradas as origens das narrativas
contra-históricas que me interessam. Em geral são textos fragmentários, achados
sob escombros das memórias oficiais da cidade. Território que vivi e vivo as
experiências culturais e políticas que me levaram a pesquisa acadêmica e a
profissionalização como educador e artista.
Nossas identidades se
constituem das projeções e memórias remotas, mas acima de tudo das relações construídas no interior da sociedade,
nesse caso a metrópole. A minha tem sido
gestada, na medida em que vou girando nas geografias da extensa zona sul de São
Paulo. De vez em quando me projeto para fora dela, mas é a partir dela que
descubro o mundo e me descubro nele.
A
cidade em abstrato pode ser somente um conjunto de regras aos olhos dos
legisladores, números para demógrafos, traçados geométricos para urbanistas,
categorias de consumidores para os comerciantes e um grande enigma para seus
moradores. Flagrar e compreender concretamente a rua, o bairro, a região e a
cidade é uma tentativa de desvelar sua própria existência nela e para além dela,
daqueles com os quais convivo e convivi e outros que habitaram esse lugar antes
de mim, mas foram relegados ao anonimato e esquecimento. A História, a Cidade a
e Cultura, para mim, são lugares de franco
litígio.
Ao longo do século XX a
cidade de São Paulo, antes uma aldeia modesta, atravessou os rios Tietê, Pinheiros e
Tamanduateí. Assim, hoje, ainda se expande mais e mais engolindo rios, matas e
olhos d´água. É como se nos bairros sem nome, ela medrasse em silêncio e por
vontade própria. Nós, os pretos, desde o
início do século XX fomos empurrados para além dos rios, para os arrabaldes,
beiras, bordas. Depois Periferias.
Alguns antropólogos
urbanos que escaneiam a metrópole alegam que a idéia tradicional de centro e periferia, por sua vez não é
mais capaz de elucidar este complexo texto topográfico. Mas alego que o termo
periferia aparece recorrentemente na linguagem dos produtores culturais, com os
quais diuturnamente eu lido. Seu sentido é menos geográfico e mais político. Advém
na forma de denuncia, demarcação e ressignificação de territórios singulares,
manifesta visões de mundo, define
pertencimentos e tenta reverter os estereótipos impingidos a partir de fora.
Em perspectiva subterrânea apreendi aqui que muitos
citadinos, urbanos, suburbanos ou periféricos são nômades, seres invisíveis que
vagam entre prédios abandonados, terrenos baldios e carcaças de velhos carros.
Outros de esgueiram entre restos de sobrados, antes palacetes, casarões dos antigos
sítios engolidos pela urbanização avassaladora. Os sobrados que cederam seus lugares
aos arranha céus de solidão.
Nos 1980 descobri que alguns desses seres se abrigam
sob os tubos da rede de esgoto, outros se penduram nos vãos dos viadutos e
saídas de ar ou ventilação do Metrô. Entendi também que, por vezes, duas ou
mais gerações deles nascem, crescem e morrem habitando tais buracos lúgubres,
transformados em habitação nada provisória.
Porém na superfície, grosso
modo, há duas projeções discursivo-imagéticas sobre a cidade de São Paulo. Uma
narra a vitória do capital, a pujança econômica, a vida política e as
atividades de cultura, arte e entretenimento devidamente catalogadas. Seus
marcos arquitetônicos são a Avenida Paulista e o prédio do MASP (Museu de Arte
de São Paulo) e por vezes o centenário Teatro Municipal. Essa zona se estende do
centro até a região chamada Jardins no sentido sudoeste.
Outro discurso constrói a
imagem do caos e da violência das “periferias”, lugares sem nome, com suas
massas esquálidas, gente bravia, sem rosto e inculta. Novos bárbaros, sem
nenhuma doçura. Quem vive na cidade e circula é cidadão, quem goza de direitos
é cidadão, quem tem acesso aos bens materiais e simbólicos que cidade oferece é
cidadão. E aqueles seres são o que? Nós o que somos?
Na memória da cidade
somente são fixados os vultos nobres, os nomes longos. São erigidos em forma
prédios de luxo, monumentos públicos e bustos em bronze, placas em latim,
poemas em grego ou em português arcaico.
Até mesmo os vultos
anônimos de Victor Brecheret, que empurram canoas e, caminham em fila olhando
para o parque do Ibirapuera, parecem apenas delírios do artista. Não há
registros da sua historia. Eles eram os paulistas que foram a Pernambuco
destruir Palmares e depois foram enviados a Angola para combater os Jagas. Demagogia
ou não, os mamelucos de mármore estão perto do mausoléu de guerra civil de 1932
e marcham na direção do bairro que vem do nome do rio, Pinheiros.
A pesada canoa daquela
horda jamais navegará num rio muito mais pesado que ela, pois sua água é solida,
apesar dos trilhões de reais supostamente empregados para reanimá-lo. Mamelucos
preadores vão eternamente residir defronte a casa de legislação da Real
província de São Paulo. A casa legislativa esta quase sempre fechada sobre si
mesma, nunca sabemos o que aqueles homens bons, homens em sua maioria, fazem
ali.
Os periféricos são gentes
cujo sangue alimenta as veias azuis e artérias negras da cidade, são aqueles
caboclos que descansam carregando blocos para erguer barracos de madeira e
alvenaria. Depois que já dentro, irão lutar pela água potável, pela rede de luz
elétrica, pela instalação do sistema de telefonia, pelo posto de saúde, creche
e escola fundamental. Apenas em situações especiais fecham as ruas e queimam os
coletivos, pelos quais pagam caro para viajar em pé, por duas horas ou mais.
Gentes pávidas que lotam
trens, ônibus, peruas vans e metrôs das 4 as 8 e depois das 17 às 21 horas e se
candidatam “voluntariamente” para limpar, construir, vender, abrir e fechar
portas, pilotar fornos e chapas quentes, carregar produtos diversos e corpos
dos que tombam nas ruas. Nenhum serviço é mais nobre que dos funcionários do
I.M.L. Gente preta ou marrom que faz bicos diversos e principalmente cuida de
idosos e crianças geralmente alvas, ruas alvas, bairros alvos, enquanto “sonham com melhores tempos vindos” . Um
boiadeiro que virou mendigo com uma vil imaginária canta no largo Treze de
maio: “Oh vida de gado...eh saudade”.
A população de origem
africana está na cidade e em toda sua extensão é possível localizá-los não
somente nos espaços como também nos tempos. Construindo, imaginando, usufruindo
e vivendo no limite da tensão advinda dessa presença. Essa urbanicidade frágil em
quase todos seus aspectos pode ser catalogada, em nome de categorias como
trabalhadores, micro-empresários, transeuntes, favelados, estudantes e
moradores de rua. Creio que não seja necessário dizer onde a população negra é
mais densa. Ela está descentrada nos extremos da urbes e em constante
deslocamento.
As presenças negras
citadinas são fatos sócio-culturais, já flagradas por alguns olhares e gravadas
em registros esparsos, mas consistentes pelas Musicalidades e literaturas
Negra, Marginal e Periférica. Nem sempre a memória oficial da cidade se dá
conta de que africanos e seus descendentes estejam presentes desde a formação
da cidade e circulando inclusive no centro, assim como suas bordas e margens,
cruzando, vivendo e morrendo nas suas avenidas, alamedas, vielas, picadas e
becos. Até quilombos urbanos, os negros paulistas vivenciaram na formação da
metrópole.
Hoje os poetas da
Cooperifa reinvindicam essa memória quilombola e erguem outros símbolos como
aqueles do nego Jansem nos anos 1980. Mais adiante falo sobre isso.
Eu estava próximo de
completar dez anos, quando entrei na cidade com minha família, em 1971. Cheguei
pelo vagão de trem de segunda classe, com bancos duros de madeira. Saímos de
Passos em Minas Gerais e baldeamos em Franca. Quando a composição estacionou na
Estação da Luz, sai meio sonolento e curioso. Tomamos o coletivo para o lado
sul e fomos acomodados por parentes e aderentes nos confins do Jardim Miriam,
bem além da Casa Palma. As janelas ficavam abertas, os muros eram baixos e os
vizinhos conhecidos pelos nomes. Logo recebi o apelido de baiano. E ainda ontem
uma colega professora branca e paulista, ao preencher erradamente um documento
da burocracia escolar, se desculpou pela “baianada”.
Reescrevo sobre os
desenhos mal grafados de ruas sinuosas de terra batida, garatujas de casas de
bloco, madeira e barro, dias empoeirados. Cenários que os recém chegados tinham
que decodificar para começar a reconstruir suas vidas, quando São Paulo era
Canaã. Todos nós éramos chamados de baianos, mesmo que mineiros fossemos. Lá o
leiteiro era pai do meu amigo, andava em carroça e trazia galões de alumínio
cheios e cá o leite vinha em vasilhames de plástico ou vidro, tilintando na rua
de terra. Era estranho.
Raramente nas memórias
monumentais da urbe emergem narrativas das lutas sindicais e movimentos
sociais. Não obstante, os conflitos sociais e lutas políticas deixaram aqui e
acolá seus fragmentos e suas marcas: um parque chamado Santo Dias, um bairro de
ocupação, depois condomínio denominado Palmares. Nomes hoje desconhecidos como
Chico Gordo, Padre Lourival, Padres Luis e Pegoraro. Chica da Silva, aqui não é o nome
da mulher negra do contratador português das Minas Gerais no século XVIII, mas
de uma líder comunitária nordestina, que viveu nas bandas do Grajaú e morreu em
meados de 1990.
Mas é preciso refinar a
lente. Este território onde hoje os jovens se aglutinam em torno de saraus,
posses, coletivos diversos de arte e cultura, a região sul da capital paulista já
foi considerada uma das zonas mais industrializadas do estado. Mas ao mesmo
tempo foi o palco do surgimento de organizações de trabalhadores, lutas
sindicais, movimentos sociais, alguns dos quais ligados as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs). As CEBs foram transformadas em modelo de organização
social pelo estudo de SADER, denominado: Quando
Novos Personagens Entraram em cena: Experiências, Falas e Lutas dos
Trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80, publicado em1988.
É bem verdade que Sader revelou
histórias silenciadas e consideradas menores, mas também contribuiu para
silenciar outras, eu não farei diferente. A idéia de trabalhadores politizados
organizados em associações ou sindicatos estandartizou um modelo de inserção
social e política para as classes subalternas, que não correspondem a todos
excluídos sociais. De certa maneira os trabalhadores mais pobres e socialmente
estigmatizados, também o foram relegados por uma percepção intelectual de
esquerda ideologicamente elitista.
Uma questão chave para mim é como nos negros
brasileiros temos vivido a cidade e não como temos vivido nas cidades?
Para o meu leitor, a
princípio pode parecer uma questão abstrata ou filosófica, mas não é. Sua
natureza tem mais a ver com a experiência histórica da urbanicidade, vivenciada
pelos descendentes de africanos escravizados na expansão do ocidente. Nestes
termos tenho por objetivo desvelar uma
cidade de São Paulo ignorada pela mídia, pela escola, pela academia. Uma São
Paulo que considero culturalmente diversa e rica, socialmente e politicamente
cosmopolita e dinâmica, etnicamente negra e cambiante.
O escravismo de grandes fazendas fez com que, desde o
início do século XIX, as cidades figurassem no imaginário social como um espaço
de liberdade, oportunidade e fruição. No Brasil tal urbanização avassaladora,
sobretudo no sudeste, representou no momento imediato da pós-abolição, uma
possibilidade quase real de inserção social, que em tese deixaria para traz
toda memória traumática da grande fazenda ou engenho e toda cultura de
violência como pedagogia expropriação
absoluta da casa grande. Foi necessária muita mocambagem.
Do outro lado o trinômio democracia, república e
urbanicidade foram os principais parâmetros de organização, projeção e
auto-imagem da sociedade contemporânea ocidental. Estes parâmetros aplicados as
sociedades africanas serviram para comprovar a incapacidade daquelas a
civilização e modernidade. Mesmos quando diante de estruturas estatais
africanas com alta concentração demográfica, arquiteturas vernaculares
fantásticas e complexas cosmogonias. O olhar viciado e ideologicamente míope
somente enxergou ausência e precariedade, barbarismo e anomia.
Há em São Paulo uma descontinua Cultura
Popular Negra de caráter cosmopolita, que tem sido constantemente negligenciada
por interpretes da cultura popular. Essas culturas negras populares ressoam
efetivamente nos quadros das identidades periféricas contemporâneas, expressas
em vários suportes estéticos, que podemos denominar música, literatura, dança,
cinema, teatro e outras linguagens híbridas.
Essa cultura negra popular urbana paulistana
esteve a está conectada em vários níveis e por
diversificados canais com as dinâmicas que Paul Gilroy designou
Atlântico Negro, porém seu veiculo principal não é prioritariamente a cultura
letrada e anglofonica, como quais lidou o grande pesquisador anglo-caribenho. No
seu desenvolvimento há muitos aspectos surgidos da escravidão racial, das
desigualdades sociais e do racismo anti negro, mas há também leituras e
interpretações de materiais, valores e idéias dos movimentos culturais e
políticos negros no Caribe, E.U.A, África , Europa e outros pontos do próprio
país.
Ao longo do século XX e na primeira década do XXI,
ativistas, literatos e artistas semi-escolarizados ou autodidatas em São Paulo,
baseados em suas próprias experiências incorporaram seletiva e pontualmente
alguns tópicos dos movimentos Panafricanista, do Harlem Renascence, da Negritude e do Black Soul e Hip-hop.
moldaram novas imagens da “diáspora negra” no Brasil.
O objetivo dessa reflexão é localizar os resquícios da
histórica e teimosa presença cultural negra na cidade de São Paulo ao longo do
século XX e incio do século XX e ao
mesmo tempo suas interdições. Ao fazê-lo apontamos a ocultação das
negras-memórias por meio de mecanismos que combinam discursos oficiais de
tolerância e políticas racializadas de discriminação sócio-cultural.
Pesquisadores neo-folcloristas e antropólogos
freyreanos que trabalham com uma concepção idealizada e romântica da sociedade
brasileira e da cultura nacional são os principais operadores desse fenômeno de
invisibilização. Em minha concepção Maria Lucia Montes, Lilia Moritz Schwarcz e
Hermano Viana representam a continuidade da mistificação da identidade
brasileira ,com base na tríade racial e do feliz encontro entre as “três raças
tristes”.
Seus estudos somam-se aos de folcloristas que dão destaque
a elementos da cultura artística que tenham origem no mundo rural.
Seletivamente colocando em um campo obscuro e marginal as práticas culturais
urbanas e cosmopolitas, constituídas no meio social onde figuram as populações
negras paulistanas. Elites culturais podem imitar todos os conteúdos estéticos
das culturas artísticas vindas da Europa ocidental. Mas estão sempre com dedo
em riste para atribuir selo de inautenticidade para as criações culturais das
classes subalternas.
Tais
pesquisadores que seguem certa tradição nacional de “Estudos do Negro”, têm
grande dificuldade em compreender e dialogar com o protagonismo dos grupos
anti-racistas e, talvez involuntariamente, com seus argumentos alimentem as
políticas públicas que teimam perpetuar os efeitos nefastos do racismo
inter-pessoal e institucional anti-negro em São Paulo e no Brasil.
Minha narrativa coloca a mim mesmo como parte
integrante desse processo de ocultação e desvelamento, integração, varzealidade
e marginaização. Para isso perscruto os rastros urbanos de mulheres e homens
negros anônimos e por vezes evoco nomes trajetórias de outros relativamente
conhecidos no “nosso meio” desde o século XIX. Luiz Gama é o meu preferido. Ele
me pareceu ser uma forma negra nova de viver a cidade. A cidade de São Paulo na
segunda metade dos oitocentos.
Não por ter sido letrado em um mundo de analfabetos,
mas por ter assumido um tipo de compromisso social e político que prenunciou um
discurso e ideologia libertaria e negra no país. Gama vem para centro da cena
urbana a ação política e cultural, ainda hoje sua imagem, memória e escrita,
são desconcertantes. Nas suas negras escrituras localizamos uma forma poética
que inaugura a estética da negritude no Brasil. São construções
poético-imagéticas excepcionais em torno da “Musa da Guiné cor de Azeviche”. Além
disso recorrência na utilização de termos e timbres africanos o coloca em uma
pré vanguarda onde a escrita se alimenta da oralidade africana, algo que
somente emergira nas bocas de recatados mulatos modernistas como Luis Saia e
Mário de Andrade, ou de um preto afirmado como Lino Gudes mais de 50 anos
adiante.
Gama, por exemplo, vai lançar em seu poemas sons de
Urucungos, Marimbas e ciências da Macumba (Candimbas). Urucungo, um condofone
africano de fricção vai reaparecer como titulo da obra de Lino Guedes em 1926.
Modernismo poético negro marginalizado pelos pesquisadores e memorialistas
aduladores dos modernistas da elite paulista? Contudo, ao longo do século XX o barulho das
maquinas vão ocultar esses timbres. Mas nós estamos reaprendemos a
ouvi-los.
A figura coletiva Capulanas Cia de Artes Negras hoje
sediadas num bairro limítrofe em Piraporinha e Jardim São Luís, também na zona sul, nos
permite recompor a historicidade e espacialidade do que estamos tratando. É um grupo de jovens
atrizes negras que percorrem espaços culturais alternativos e quintais da
cidade apresentando seus espetáculos teatrais. Elas não apenas atualizam muitas
dessas experiências culturais e memórias como também dão-lhes novos significados
e contornos políticos e estéticos.
Com isso chamo atenção para capacidade criadora e de
apropriação dos espaços urbanos empreendida pelo ativismo antiracista negro,
com a constante utilização de tecnologias da modernidade. Essa apropriação
acontece apesar das recorrentes práticas de cerceamento, discriminação e
impedimentos, seja em forma de políticas públicas, seja em atitudes cotidianas
naturalizadas pela hierarquia e dominação raciais.
Entre tais tecnologia da modernidade encontram-se a
imprensa escrita, a música, a
dramaturgia e literatura e mais recentemente o vídeo e cinema digital. Alguns
desses campos da cultura contemporânea são concomitantemente construídos e
utilizados como novos territórios das relações sócias urbanas e de trabalho que
escapam, ao menos em um primeiro momento, a hegemonia branca. Um mosaico de
experiências e representações da cidade de São Paulo, que repõe memórias e
histórias da diversidade étnico-cultural paulistana.
Quem eleger as narrativas fotográficas da cidade faustosa
desconhecerá estas outras que também coabitam a velha (ou nem tanto assim) São
Paulo. As vidas ao redor das Cidades Jardins, Alto de Pinheiros e Morumbi tecem outras fibras. Trata-se uma forma inédita de resiliência, o
que se encontra nas fimbrias do Jardim Ângela, Campo Limpo, Pirajussara, Capão
Redondo, Jabaquara, Grajaú, Pedreira, Campo Limpo, Capela do Socorro e
Parelheiros. Nas bordas da cidade/projeto, para onde grupos humanos inteiros
são empurrados pela exploração imobiliária, há quase um século brotam outros
sonhos. As vezes esses seres somem de um lugar, para reaparecer mais tarde em
outro mais distante, mas estão sempre lá. A cidade os despreza, mas precisa
deles.
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