Vitor Israel da
Trindade
https://www.facebook.com/vitor.datrindade
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Notas sobre estudo,
prática e filosofia do ogan-alabê, ou mestre tambor.
Será possível
haver lugar na sociedade brasileira atual para um conhecimento tão denso, como o
engendrado nesse trabalho de pesquisa? Não seria necessário apresentar o autor,
se nossa memória oficial não fosse tão brancocêntrica, quer dizer, se houvesse
um mínimo processo de efetiva valorização da história de todas as matrizes
civilizatórias que formaram sociedade brasileira. Não seria necessário falar
dos Trindade.
Mas, as
histórias e culturas africanas e indígenas somente há pouco mais de uma década
ingressaram no currículo escolar para crianças, jovens e adultos. Partindo da
alteração de uma lei federal (LDBEN-Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional), se pretendia fustigar o sistema educacional brasileiro à assimilar e
disseminar conhecimentos sobre nossos ancestrais africanos e também dos
ancestrais dos povos originários (Índios?). Ainda assim e contudo um revés
conservador de brancura. Recentemente o Congresso Nacional num piscar de olhos determinou
o cancelamento da obrigatoriedade de tais leis. Isto é, em uma simples canetada,
a elite política invalidou toda uma luta social para equiparação dos diferentes
e basilares componentes culturais da sociedade a qual governam.
É nesse quadro contemporâneo
de desarranjo sociocultural e político, onde se expressa um profundo complexo
de inferioridade das elites políticas, que emergem trabalhos de grande erudição
popular e acadêmica, como esse do pesquisador, professor, compositor, performer
e músico Vitor Israel da Trindade.
Não se espante
e nem engane com seus três nomes ocidentais. Num pais onde diferentes vertentes
do neopentacostalismo e do catolicismo avançam como religiões de estado, os
nomes africanos que sobraram da guerra espiritual, ainda e somente podem ser
pronunciados nos segredos ancestres de ouvido à ouvido, ou, relativamente
livres e alto no interior das Comunidades e Casas de Santo. Vitor, nome anglo
saxão de origem latina; Israel, um segundo de origem francamente hebraica; e ainda,
Trindade, outro definitivamente cristão. Todos os três carregados de coordenadas
geográficas prenhes de encruzilhadas simbólicas e complexos culturais bem
remotos. Talvez disseminadas pelo mundo através da expansão ocidental e do
colonialismo, mas não apenas isso. Se o fosse, nós descendentes de africanos nas
diásporas seriamos tão somente resultados dessas contradições recentes, muito
mais do que daquelas sínteses, adições e subtrações civilizadoras, advindas no
processo de constituição da humanidade, enquanto tal.
Quiçá, para colocar
um pouco de luz negra nessa conversa, fosse necessário resgatar uma parte da
história das conexões entre africanos e os povos do vale do rio Jordão, mas
creio para o momento basta lembrar as teses de Cheik Anta Diop[1]
sobre as origens negras do Egito de meados do século XX. Refuntou
cientificamente e de forma simultânea as
teses racistas antinegras do século XX e a filosofia da história de Hegel que
excluía o Egito da África e a África da História humana.
Oxalá possamos
lembrar mais, por exemplo que o reaparecimento dos Evangelhos apócrifos nos
ensinam sobre o cristianismo primal africano. Rememorar que Joseph foi representante do faraó na
região de Darfur, bem além do baixo Egito. Que Joshua na infância teria vivido no nordeste da África, muito tempo
depois que o termo Mussa, chefe
político-religioso, se converter em uma aliteração de Moisés[2] no
dois lados continente. Isso tudo sem falar nas aproximações entre os Provérbios
de Salomão e a obra do poeta e sábio sudanês que viveu no Egito antigo sob o
nome de Amenopte e publicada em 1923.[3] Mas, formulando assim ficaria muito longa
minha apresentação e, em tempos de google, poucos leriam.
Quando falamos
do sobrenome Trindade no Brasil estamos pensando em três linhagens familiares negras
ligadas às Artes, Culturas, Política e à Educação. Azoilda Trindade do Rio de Janeiro, Francisca
Trindade do Piauí e Raquel Trindade da Trindade, cuja família tem raízes negras
simultaneamente na Paraíba e em Pernambuco. Esses negros e negras construtores
do Brasil, à despeito da constante negação e redução, nos legaram uma belíssima
estirpe de gente aguerrida e doce. Victor filho Raquel pertence a linhagem de
Solano e Margarida. Ela atriz, dançarina, coreógrafa e terapeuta, pouco citada,
mas totalmente ligada às pesquisas de arte-terapia da psicanalista Nize da
Silveira. Ele poeta e político de elevada visão do que se poderia chamar de
“esquerda negra brasileira”, que teórica e pragmaticamente combinou elementos
do pensamento socialista internacional com conceitos da cultura popular de
matriz africana no Brasil. Uma forma heterodoxa de pensar-agir, que ainda agora
foi apenas superficialmente estudada pelos nossos pesquisadores e críticos da
cultura. Nosso Israel aqui, nada tem a ver com que Netanyahu faz atualmente com
o povo palestino.
Dentro dos
vínculos mais interessantes de permanência da civilidade africana no Brasil, Vitor
foi educando por tios e tias no Rio de Janeiro. Já na vida adulta fixou
residência com a mãe em São Paulo, frequentando ambientes culturais e
educacionais pouco comuns a um jovem negro. Mas sua formação não estaria
completa se não tivesse comutado as bases filosóficas protestantes pelos
processos iniciáticos do Candomblé Ketu, junto ao seu mestre Pai Quilombo. A
maturidade revelou sua condição de (Ogã ou mestre-tambor) guardião de
pensamento-sínteses que combinam musicalidade e filosofia proverbial. Não é
exagerado dizer que as células melódico-rítmicas, no interior das comunidades
religiosas negras, são chaves de acesso a um conjunto de valores criptográficos
milenares, que em conjunto expressam visões cósmicas de sociedade africanas,
cujos membros foram dispersados pelo mundo, por meio do tráfico de pessoas.
Levaram consigo tais joias, as preservaram não intactas e depois
ressignificaram e distribuíram.
O caminho
filosófico e estético trilhado por esse pesquisador não teve um roteiro burguês
e previsível dos jovens acadêmicos da tradição ocidental. Apesar de toda a
experiência e o capital cultural adquiridos pela sua linhagem familiar, Vitor
quis cumprir todos os passos do processo ritualístico. Isso apoós viver por
algum tempo sob aquele dilaceramento interno que nos leva a angustia de ter que
decidir entre negar ou assumir os legados ancestrais, diante de uma sociedade
hegemônica que não apenas nos nega, como na maioria das vezes, nos aplica a [4]necropolítica.
Então este
trabalho somente interessa aos músicos e iniciados no Candomblé ou noutras
práticas e filosofias religiosas de matriz africana?
Não vou
adiantar nada sobre o trabalho, faço votos que você leia.
Minha função
aqui é ressaltar o fato de são poucas, quase sempre rasas e ralas as pesquisas
sobre esse aspecto tão crucial da cultura musical do mundo contemporâneo. Os
africanos e seus descendentes irrigaram as veias já endurecidas do mundo
musical do ocidente, após dez ou mais século de imposição estética cristã e cristalização
musical regida pela igreja. Os tambores haviam sido quase que totalmente
proscrito do pensamento musical europeu. Não por caso o encontro daqueles, com
povos além-mar fomentou recusa, ojeriza e preconceitos. Um desses preconceitos
é a ideia de que percussão é um elemento musical primitivo. Para os músicos
escolares de formação ocidental ainda hoje essa ideia é recorrente. Mal
conseguem aventar a hipótese de que os tambores tocam melodias e que suas as
afinações precisas, são frequências apreendidas e transmitidas por oitivas, ao
longo de séculos, com pequenas variações, assim como as células rítmicas são
conceitos matemáticos e seguem padrões lógicos altamente complexos.
Mas a música
dos ogãs traz somente tudo isso? Evidente que não. Os tambores são seres vivos,
sacralizados dentro dos preceitos específicos de casa e relacionado uma
vertente do culto e da sapiência secular. Nem os ogãs, nem os tambores existem por si mesmo, fazem parte de uma rede
de conhecimentos e objetos sacros cujas funções ritualísticas operam juntamente
com a música vocal e a gestualidade propícia a mobilização das forças que
organizam e dão sentido ao universo e a existência dos seres vivos visíveis e
todos os seres intangíveis.
As culturas
musicais africanas foram introduzidas no espetáculo, rádio, cinema, dança contemporânea,
entretenimento e lazer urbano e nos sistemas de criação e difusão musical
industrial. De qualquer maneira que se queira abordar culturalmente a sociedade
mundializada contemporânea poderemos localizar fragmentos ou partes inteiras do
labor artístico e intelectual afrodiaspórico. Quero dizer que elementos rítmicos,
melódicos, harmônicos, estilísticos e filosóficos, fruto do pensamento de anônimos
criadores musicais da pele escura permeiam e orientam o senso musical contemporâneo.
A questão é: até onde você está disposto a expandir, para saber mais sobre
esses processos?
Em que medida
esses conhecimentos podem ajudar a tornar o mundo mais leve e fluido ainda não
sabemos ao certo. Mas já sabemos que a diferença cultural é um valor ético imprescindível.
E que a troca, a convivência e reciprocidade são mais humanas e garantem dias
mais longos e tranquilos que a intolerância, a desigualdade e o racismo.
[1] Vida e obra de Cheikh Anta Diop: o
homem que revolucionou o pensamento africano Diallo, Alfa Oumar'Diallo, Cíntia
Santos, acesso em 27-03-2018: http://periodicos.est.edu.br/index.php/identidade/article/viewFile/2208/2105
[2]
Para Freud, Moisés seria um sacerdote sincrético iniciado simultaneamente em
duas fontes místicas africana-judaica e
teria apreendido a noção de Deus-Único observando o culto de Amon. Veja em:
FREUD, Sigismund. Moisés e o monoteísmo. Veja: http://conexoesclinicas.com.br/wp-content/uploads/2015/01/freud-sigmund-obras-completas-imago-vol-23-1937-1939.pdf,
acessado em 27-03-2018
[3] McKENZIE,
Jonh L. Dicionário Bíblico. 9ª
edição. São Paulo: Paulus, 2005. p.750.
[4] Necropolítica
é um termo atribuído ao filósofo camaronês Aquiles Mbembe. Pode ter alguma analogia com
biopolítica referida por Michel Foucault, mas se situa dos desdobramentos do
colonialismo. Ambos tratam da morte violenta imposta pelo estado aos seus próprios
cidadão aos pessoas estrangeiras em qualquer coordenada geográfica.