SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Bio-caminho

salloma Salomão Jovino da Silva, "Salloma Salomão é um dos vencedores do CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA RUTH DE SOUZA, em São Paulo, 2004. por dez anos foi Professor da FSA-SP, Produtor Cultural, Músico, Dramaturgo, Ator e Historiador. Pesquisador financiado pela Capes e CNPQ, investigador vistante do Instituto de Ciências Socais da Universidade de Lisboa. Orientações Dra Maria Odila Leite da Silva, Dr José Machado Pais e Dra Antonieta Antonacci. Lançou trabalhos artísticos e de pesquisa sobre musicalidades e teatralidades negras na diáspora. Segue curioso pelo Brasil e mundo afora atrás do rastros da diáspora negra. #CORRENTE- LIBERTADORA: O QUILOMBO DA MEMÓRIA-VÍDEO- 1990- ADVP-FANTASMA. #AFRORIGEM-CD- 1995- CD-ARUANDA MUNDI. #OS SONS QUE VEM DAS RUAS- 1997- SELO NEGRO. #O DIA DAS TRIBOS-CD-1998-ARUANDA MUNDI. #UM MUNDO PRETO PAULISTANO- TCC-HISTÓRIA-PUC-SP 1997- ARUANDA MUNDI. #A POLIFONIA DO PROTESTO NEGRO- 2000-DISSERTAÇÃO DE MESTRADO- PUC-SP. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- CD - 2002 -ARUANDA MUNDI #AS MARIMBAS DE DEBRET- ICS-PT- 2003. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- TESE DE DOUTORADO- 2005- PUC-SP. #FACES DA TARDE DE UM MESMO SENTIMENTO- CD- 2008- ARUANDA SALLOMA 30 ANOS DE MUSICALIDADE E NEGRITUDE- DVD-2010- ARUANDA MUNDI. Elenco de Gota D'Água Preta 2019, Criador de Agosto na cidade murada.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Teatro Experimental do Negro



Video 13: Teatro Experimental do Negro, com Salloma Salomão labExperimental.org
CYBERQUILOMBO



Teatro Experimental do Negro: uma perspectiva histórica
Salloma Salomão Jovino da Silva

Sua carta de 8 de novembro atrasou-se enormemente e não me chegou em São Francisco senão ontem. Dou-lhe minha permissão para montar o Imperador Jones sem nenhum pagamento. [...] Conheço muito bem as condições que você descreve no teatro brasileiro. Tivemos as mesmas condições no nosso teatro antes que o “Imperador Jones” fosse representado em Nova York em 1920 – qualquer papel de responsabilidade era sempre representado por atores brancos, pintados de preto. [...] Depois do Imperador Jones representado por Charles Gilpin e, mais tarde, por Paul Robeson fazer grande sucesso, o caminho foi aberto para o negro representar drama sério em nossos teatros.
Carta de Eugene O’Neill (1888-1953) endereçada a Abdias do Nascimento (1914-2011), 6 de dezembro de 1944[1]

O Teatro Experimental do Negro foi um grupo de artistas de origens africanas atuante entre as décadas de 1940 e 1960 no Rio de Janeiro e em São Paulo, com ramificações em outras cidades brasileiras. Criado em 1944 por Abdias Nascimento e Aguinaldo Camargo (1916-1952) com apoio de outros artistas e intelectuais negros, recebeu a posterior adesão e atuação intensa do sociólogo [Alberto] Guerreiro Ramos (1915-1982). Teve, ao longo de sua trajetória, a participação de trabalhadores(as) semi-escolarizados(a)s, artistas com formação escolar e autodidatas.
Sua metodologia baseava-se nas linguagens escrita e teatral para sensibilizar negros(as) e obter apoio da vanguarda intelectual e da classe média branca. O grupo escrevia e encenava, educava e difundia uma “nova” imagem de negros(as). Em plena vigência do projeto de branqueamento e de modernização reacionária do país, criava alternativas de formação escolar complementar, de “alfabetização” cultural e de valorização étnico-racial para trabalhadores urbanos. Para isso, mobilizou dramaturgos, que produziram textos como forma de colaboração espontânea em solidariedade com o projeto, e recorreu ao repertório dito clássico, desde que tivesse um elemento de africanidade a explorar – como, por exemplo, a peça Otelo, de Shakespeare, cujo protagonista é mouro, homem negro islâmico do norte do continente africano.
No âmbito dos movimentos socioculturais contemporâneos que se autodenominam negros no Brasil, o TEN é referência histórica, política e estética. Economista, professor universitário, artista plástico, poeta, dramaturgo e político, Abdias do Nascimento, tido como figura-símbolo do grupo, alcançou projeção mundial; mas, muitos homens e mulheres negras que sabidamente participaram do projeto têm sido mantidos em relativo anonimato e caído no esquecimento.
Na fase inicial, o TEN procurou mobilizar a população discriminada contra o racismo anti-negro no período de democratização política do apagar das luzes do Estado Novo (1937-1946). Naquele contexto, e como parte de um movimento de contestação e superação dos termos da época, o teatro – seja a linguagem artística, seja a forma de entretenimento – era pensado pelo grupo não apenas como ferramenta de mobilização sociopolítica, mas como estratégia de organização e de “elevação cultural da massa negra” urbana.
Entre os vários objetivos do TEN, destaca-se a construção de uma nova dramaturgia e de um novo teatro, nos quais os artistas negros seriam protagonistas. Seu ato inovador foi sequestrar uma linguagem ocidental e redimensioná-la para que, por meio dela, pessoas negras tivessem controle sobre sua imagem simbólica e social. A ideia era produzir e difundir uma escrita e uma representação não sobre negros, mas de negros e para negros. Havia também uma mensagem que hoje nos parece indireta, dirigida à sociedade hegemônica. Seus líderes eram intelectuais e jornalistas negros que cavaram espaço nas mídias e instituições tradicionais de forma estratégica, para então construir as suas próprias mídias e instituições.
As peças escolhidas pelo grupo envolveram longas negociações e eram de dramaturgos de renome internacional, como O’Neill, ou nacional, como Nelson Rodrigues (1912-1980), apontado como o iniciador do teatro “propriamente moderno no Brasil”. Rodrigues escreveu O anjo negro especialmente para o TEN. As montagens, aproximadamente uma dezena, envolviam os principais atores do TEN, como Abdias Nascimento, Aguinaldo Camargo, Arinda Serafim e Ruth de Souza (1921-2019), além de intérpretes brancos, como Cacilda Becker (1921-1969). Na cenografia, o TEN contou com a colaboração de renomados artistas plásticos como Enrico Bianco (1918-2013) e Tomás Santa Rosa (1909-1956).
A construção de uma narrativa épica sobre o grupo – que se projeta nos relatos de Abdias ou de sua segunda esposa, a socióloga norte-americana Elisa Larkin Nascimento (1953-) [2] – dificulta a compreensão detalhada dos conceitos estéticos que orientaram as diferentes montagens. Mas  três peças específicas, encenadas na década de 1940, podem ser analisadas transversalmente por meio de textos jornalísticos:[3] O Imperador Jones (1945), de Eugene O’Neill, O anjo negro (1946), de Nelson Rodrigues, e O filho pródigo (1947), de Lúcio Cardoso (1912-1968) – essa última, segundo anotações do próprio Abdias, foi considerada por alguns críticos a maior peça teatral do ano.
O teatro de Nelson Rodrigues raramente é evocado por sua relação com o teatro negro proposto pelo TEN. Mas parece justo admitir que foi sob o estímulo deste que o dramaturgo branco, tão perspicaz em trazer para o texto teatral dilemas e contradições da sociedade brasileira, pôde criar uma dramaturgia branca na forma, ainda que negra no conteúdo. A convenção estética à qual Anjo negro[4] se submete é fiel à estrutura narrativa do drama burguês ocidental. Mas sua temática e a montagem com atores negros se alinham à outra margem, ou seja, são uma antecipação da crítica anticolonial nas artes contemporâneas.
Resumidamente, a peça pode ser descrita como uma tragédia inter-racial brasileira. No enredo, um médico negro em ascensão social convive com o dilema existencial da condição de isolamento imposta por um meio hegemonicamente branco. O medo de perder sua amada, uma mulher branca, é motivo de profundo sofrimento psíquico.
Historicamente, mobilizações nas artes fazem parte dos movimentos negros, termo utilizado para designar formas de organização social, cultural e política fundadas em expressões públicas negras – predominantemente masculinas e geralmente centralizadoras. Entretanto, se aprofundarmos o olhar, percebemos que muitas organizações são lideradas por mulheres, projetam pensamentos e atitudes próprias ao seu tempo e se utilizam muito bem das linguagens literárias e artísticas em nome da emancipação do “povo negro”. No TEN, Abdias e o sociólogo Guerreiro Ramos tornaram-se porta-vozes especiais dos anseios, frustrações e projetos políticos das coletividades negras urbanas da época, ainda que não os únicos.

Conexões internacionais e o surgimento do TEN
Depois da Segunda Guerra Mundial, o colonialismo ocidental começou a dar sinais de esgotamento em todos os territórios de seu domínio. Soldados negros haviam participado diretamente da derrota do nazifascismo, colaborando de forma decisiva para salvar o “mundo livre” – as democracias europeias e os Estados Unidos. Haviam, em suma, libertado seus colonizadores. E agora? Intelectuais negros ao redor do mundo tiveram que medir seus níveis de aderência aos valores culturais da classe/raça no poder, à qual gostariam de se ver integrados. Essas questões e tensões já pairavam no horizonte bem antes da Segunda Guerra; no final do século 19, já eram postas por intelectuais negros como Garvey, Du Bois, Booker T. Washington, Manuel Querino, Luiz Gama e Lima Barreto.[5]
Nas colônias ou ex-colônias emergiam intelectuais pretos de língua inglesa, como Eric Williams (Capitalismo e escravidão), C.R L. James (Os jacobinos negros) e W. E. B. Du Bois (A alma da gente negra), os quais também chegavam ao Brasil por vias tortas. Trechos de suas obras eram publicados por jornais negros, atingindo alguns poucos trabalhadores, artistas e intelectuais negro(as) em cortiços e favelas nos centros urbanos e também em bairros suburbanos, especialmente no Sudeste. Os jornais da Frente Negra Brasileira,[6] um pouco anterior ao TEN, publicavam traduções de Mister Gibs, operário barbadiano que vivia em São Paulo. Entre os tradutores do TEN havia figuras como Guerreiro Ramos e o escritor Ironides Rodrigues (1923-1987).
O TEN recepcionou espetacularmente, no Rio de Janeiro, uma artista negra conhecida no mundo inteiro, e consagrada desde a primeira metade do século 20: Katherine Dunham (1909-2006). A coreógrafa de origem estadunidense desembarcou no Brasil para se apresentar com sua companhia de dança-teatro – Katherine Dunham Company/Negro Dance Group – e fazer pesquisa de campo em comunidades tradicionais. Antropóloga, estudava conflitos raciais, supremacia branca e culturas negras, desde a década de 1930, na Universidade de Chicago.
Quando olhamos para esse período à distância de mais de meio século, reconhecemos uma dinâmica cultural negra de alto grau de complexidade; nela, o protagonismo negro assume seu contorno mais denso no Brasil, inserindo-se nas redes mundiais de colaboração artística e social, cultural e política. As críticas de Dunham e de Maria Nascimento à condição dos negros nos Estados Unidos e no Brasil impressionam leitores(as) até hoje.

Teatro Experimental do Negro
Numa sociedade que buscava modernização rápida, os casais Guerreiro Ramos e Nascimento apresentavam-se como uma espécie de modelo comportamental; sua ideologia e ação apontariam caminhos para a população negra mais marginalizada. Ao mesmo tempo, tentavam obter apoio da classe média branca. Acima de tudo, procuravam convencer as elites políticas e culturais de que os negros eram a solução e não o problema do país, como pensavam as elites brancas afinadas com as teorias raciais da época, como a eugenia, por exemplo.[7]
Estrategistas admiráveis, cabia a Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento observar, apreender e utilizar as mídias e as práticas artísticas da época para obter apoio financeiro e político junto à classe média e às elites. Para tanto, faziam reportagens, organizavam seminários, conferências e palestras, mobilizavam jornalistas e ofereciam jantares em hotéis de luxo a empresários, políticos e intelectuais de renome. Entre os seus interlocutores estava o antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), ainda que tivessem algumas divergências; o poeta pernambucano Solano Trindade (1908-1974) e sua companheira, a assistente social e terapeuta Margarida Trindade, eram frequentadores assíduos do círculo mais negro de colaboradores do TEN.
Não raro, a grande imprensa atacava diretamente as figuras masculinas mais proeminentes do grupo. A percepção geral é que se alinhavam a um ativismo político pouco conhecido, e possivelmente perigoso, de influência estrangeira. Aliás, de outro lado havia o argumento de que a militância negra tinha certa incapacidade intelectual de observar e absorver a realidade brasileira, que é recorrente até hoje em circuitos marcados por arcaísmos de mentalidade racista.

Mulheres negras no teatro e na luta social
Em toda a trajetória do TEN, existem registros da importante atuação das mulheres no grupo. Entre as primeiras bandeiras que este abraçou, à época da Convenção Nacional do Negro, em 1946, estava a causa das empregadas domésticas. A Associação das Empregadas Domésticas nasceu no seio do TEN e tinha entre suas porta-vozes as atrizes Arinda Serafim, Marina Gonçalves e Ruth de Souza, então estreantes.
As urgências que acometem pessoas negras em um país historicamente racista e de hegemonia branca não têm permitido aos artistas negros atuar somente no aprimoramento das linguagens que escolhem. Estado de prontidão e consciência étnica são exigências da vida social, das quais os artistas de origem africana não podem se dar o privilégio de passar ao largo. Para criadores(as) negros(as), a arte pela arte, sem conotação estética africana e sem posicionamento antirracista só existe como estratégia de camuflagem ou alienação.    
Ao que tudo indica, cabia à companheira de jornada do TEN Maria Nascimento atuar em uma frente diferente da do marido, arregimentando pessoas aptas para o trabalho social e artístico e atendendo demandas objetivas – como alfabetizar atores e atrizes sem formação escolar e iniciar politicamente as mulheres negras em práticas de cidadania ativa, como a reivindicação de seus direitos trabalhistas. Em sua coluna “Fala a mulher” no jornal do TEN, Quilombo, Maria Nascimento mandava mensagens de apoio às mulheres, especialmente negras.
Foi Maria Nascimento quem organizou os primeiros congressos de trabalhadoras domésticas, visando seu reconhecimento como classe laboral. É sabido que o Estado Novo produziu uma ampla legislação que obrigou o patronato, de instinto colonial, a aceitar – não sem revanche – as leis trabalhistas e de seguridade social hoje em desmonte.[8] Sua trajetória, no entanto, raramente é enfatizada nos trabalhos sobre o grupo, com algumas exceções,[9] muito menos lembrada nos eventos e publicações da luta feminista e pelos direitos das mulheres no Brasil.
Em linguagem direta e abrangente, que fala para muito além do universo intelectual elegante e educado no qual Abdias e Guerreiro circulavam, Maria Nascimento referia-se a um problema político mais amplo que também desafiou o ativismo negro ao longo do século 20:
É inacreditável que numa época em que se fala tanto de justiça social possa existir milhares de trabalhadoras como as empregadas domésticas, sem horário de entrar e sair no serviço, sem amparo na doença e na velhice, sem proteção no período de gestação e pós-parto, sem maternidade, sem creche para abrigar seus filhos durante as horas de trabalho. [...] Quando são ainda de cor, pobres filhos de deus, que muito racista afirma serem filhos do diabo, a situação se agrava mais. [...] Acontece porém que a mulher negra está abrindo os olhos. [...] Empregada doméstica, comerciária, funcionária pública, industriária, médica, advogada, mãe de família, a mulher negra está aprendendo a andar de cabeça erguida.
Maria Nascimento. “Fala a mulher. O Congresso Nacional de Mulheres Negras e a regulamentação do trabalho doméstico”.[10]
Por diferentes motivos, as imagens de Maria Nascimento, Clélia Calasans [Clélia Guerreiro Ramos], Guiomar Ferreira de Mattos, Heloisa de Oliveira, Milka Cruz, Virginia Pahim, Maria Manhães, Nina Barros, Natalina Santos Corrêa, Catty Silva, praticamente desapareceram das narrativas sobre o TEN construídas após a redemocratização. Já as atrizes Léa Garcia e Ruth de Souza, por exemplo, se mantiveram em relativa evidência.[11]
A atriz, diretora e ativista Tereza Santos não aparece nos registros sobre a primeira fase do TEN, somente após os anos 1950. Ela teria permanecido no Brasil desde os anos 1950 até meados de 1970, quando migrou para Angola para coordenar, nos primeiros anos da descolonização do país, projetos de iniciação teatral em Luanda. Ainda em São Paulo, produziu um espetáculo com elenco negro, cujos registros documentais estão nos acervos da Universidade Federal de São Carlos: E agora...falamos nós, peça que escreveu com o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira, encenada pela primeira vez no auditório do MASP, em 1973.[12] Tal trabalho demonstra a conexão temática e estética do período com a produção do TEN das décadas anteriores, reiterando a busca de um lugar de enunciação singular para artistas negros(as) no Brasil. 

Teatro negro e artes negras
A concepção de artes negras utilizada aqui pressupõe uma definição estética – porque levanta hipóteses sobre os valores civilizatórios especificamente africanos presentes na formação cultural brasileira – e outra política, já que os artistas assumem uma posição que visa à desnaturalização e ao desmonte da condição de subalternidade/inferioridade social que acomete a população negra (assim como a indígena). Essa criticidade pode transparecer de forma explícita ou não no trabalho de cada artista ou grupo.
No Brasil, o termo “teatro negro” foi utilizado nos anos 1920 pela Cia. Negra de Revistas, no Rio de Janeiro. Era o projeto teatral de um multiartista negro conhecido como De Chocolate (ele havia estado em Paris anos antes e provavelmente assistiu alguma apresentação de Chocolat, comediante de origem haitiana que fazia muito sucesso). A revista era uma forma urbana, rápida e leve de teatro, que combinava atualidades, política, cultura popular, dança e música. Eram apresentadas no horário em que operários de fabriquetas, das docas, do comércio e da construção terminavam seu turno e se preparavam para voltar ao subúrbio pela linha ferroviária, enquanto os funcionários públicos e os colarinhos brancos de uma pequena classe média deixavam seus escritórios.
Um teatro negro e popular no Brasil parece ter raízes mais antigas do que os Black Minstrels[13] oitocentistas dos EUA. Pesquisas de folcloristas do século 19 e 20 falam de um teatro popular carregado de aspectos africanos e indígenas realizado nas ruas de cidades de diferentes regiões do país.
O sociólogo francês Roger Bastide dedicou singular atenção às populações de origem africana e suas culturas no país, e propôs uma reflexão em torno do teatro negro no Brasil, Europa e EUA. Para ele, o teatro europeu havia perdido seu caráter litúrgico e participativo, transformando-se em espetáculo hiper-racionalista e distanciado. Ocorrera um divórcio entre os artistas e o público espectador. Já em relação ao teatro negro, com alguma dose de exotismo, parecia-lhe natural que o público brasileiro se sentisse “extasiado, exaltado pelos ritmos dos tambores e pelo ardor dos corpos que dançavam, numa festa coletiva da qual participava, e na qual passava da ‘comunicação’ a uma coisa mais intensa e quase religiosa: a comunhão”.[14]
Para o sociólogo, é no contexto do pós-guerra e do surgimento de um teatro europeu de vanguarda, que se rebela contra convenções endurecidas da dramaturgia burguesa, que nasce um “teatro negro escrito por brancos”, com ressonâncias pouco percebidas, mas associadas, à psicanálise. Bastide não cita Frantz Fanon em suas pesquisas sobre a psique do colonialismo; e não parece improvável que o conhecesse, considerando suas referências a outros intelectuais negros fundamentais de então, como James Baldwin e Richard Wright.
Visto num quadro mundial de luta antirracista, o Teatro Experimental do Negro aparece muito bem inserido nas redes de relações entre intelectuais negros das Américas, Europa Ocidental e África que chamamos de afrodiáspora. Esses movimentos construíram, por meio de porta-vozes e lideranças, uma agenda mundial de emancipação coletiva, que desembocaria nas lutas de descolonização na África e no Caribe, na mobilização pelos direitos civis nos EUA, e na implementação de políticas afirmativas na Inglaterra, EUA, França e Alemanha.
Tardiamente no Brasil, as políticas afirmativas preconizadas pela Constituição de 1988 foram longamente resfriadas pela branquitude, enquanto os racismos anti-negros mais grosseiros se revelavam nas políticas públicas de saúde e saúde mental, educação e segurança. O maior legado do TEN está justamente no campo da criação artística etnicamente assinada, que agora emerge em inúmeras produções, intervenções, mostras, exposições e festivais de artes, teatro, cinema e performance em diversos pontos do país.



[1] Publicada pelo jornal Quilombo: Problemas e aspirações do negro brasileiro, Rio de Janeiro, n. 1, p. 7, dez. 1948. NASCIMENTO, Abdias (org). Quilombo: edição em fac-símile do jornal dirigido por Abdias Nascimento, 1948-51. São Paulo: Editora 34, 2003. Disponível em: https://ipeafro.org.br/acervo-digital/leituras/ten-publicacoes/jornal-quilombo-no-01/, acessado em 27.jan.2020.

[2] Elisa Larkin Nascimento. O sortilégio da cor. Identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus, 2013.
[3] Quilombo, n. 1, p. 7, dez. 1948. Os textos de críticas e crônicas publicadas na época se encontram na íntegra em Abdias Nascimento, (org.), Teatro Experimental do Negro: Testemunhos. Rio de Janeiro: GRD, 1966. Disponível em https://ipeafro.org.br/acervo-digital/leituras/obras-de-abdias/ten-testemunhos/, acessado em 27 jan. 2020.
[4] O crítico e historiador do teatro brasileiro Sábato Magaldi, por exemplo, divide as peças de Nelson Rodrigues em três categorias (psicológicas, míticas e tragédias cariocas), alocando Anjo negro entre as míticas. Ver Nelson Rodrigues, Teatro completo. Organização e introdução de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. 
[5] Marcus Garvey (1887-1940), ativista, empresário e intelectual jamaicano (ver Paul Gilroy, O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência, Rio de Janeiro: Editora 34, 2000); William Edward Burghardt ou W. E. B. Du Bois (1868-1963), filósofo, sociólogo, jornalista e artista negro norte-americano ver (ver, dele, As almas da gente negra, Rio de Janeiro: Lacerda, 1999); Booker T. Washington (1856-1915), ex-escravizado, político e intelectual norte-americano (ver, dele, Up from Slavery. Nova York: Oxford University Press, 1995); Manuel Querino (1851-1923), político, intelectual e educador afrobaiano, pioneiro nos estudos sobre cultura negra no Brasil; sobre Luiz Gama (1830-1882), ver Ligia Fonseca Ferreira, Com a palavra Luiz Gama, São Paulo: Imprensa Oficial, 2011; sobre Lima Barreto (1881-1922), ver Lilia Moritz Schwarcz, Lima Barreto, triste visionário, São Paulo: Cia das Letras, 2017.
[6] Organização política e social criada em São Paulo em 1930 e cassada em 1937, a FNB reunia pessoas de orientações ideológicas diversas em torno de um projeto partidário e antirracista. Ver Luis Cuti, E disse o velho militante José Correia Leite, São Paulo: SMC, 1992.
[7] Lilia Schwarcz traça um panorama revelador da introdução do pensamento eugenista no Brasil em O espetáculo das raçasCientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX (São Paulo: Cia. das Letras, 1993). Boa parte dos cientistas e intelectuais vinham da classe alta; educados com teses de superioridade racial, acreditavam piamente na ideologia pseudocientífica da supremacia branca sobre os “povos de cor”. Edwin Black, em A Guerra contra os fracos (São Paulo: A Girafa, 2003), nos dá uma perspectiva mundial da eugenia como prática médica, ou engenharia sociorracial, apoiada financeiramente pelo Estado e pelas corporações nos EUA e na Europa. Em Racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro (São Paulo: Liber Ars, 2018), Weber Lopes observa os desdobramentos e influências eugenistas no Brasil.
[8] A legislação de proteção às domésticas, editada recentemente, procurou garantir a essas trabalhadoras direitos já consignados a outras categorias. Mas enfrentou enorme resistência da opinião pública, sobretudo da classe média branca do Sudeste. Em certa medida, a sensibilidade social e étnica de Maria Nascimento a colocou na vanguarda da luta pelos direitos das mulheres negras, demanda que permanece atual.
[9] Cf. Elisa Larkin Nascimento. O sortilégio da cor., op.cit.; Cultura em movimento: Matrizes africanas e ativismo negro no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2008 (Coleção Sankofa, v. 2); Guerreiras de natureza: Mulher negra, religiosidade e ambiente no Brasil. São Paulo: Selo  Negro, 2009 (Coleção Sankofa, v. 3).
[10] Quilombo, n. 4, p. 3, jul. 1949.
[11] Reafirmando o que diz o autor sobre o ofuscamento da história dessas mulheres, não conseguimos encontrar datas de nascimento e/ou falecimento para grande parte das figuras femininas aqui citadas, o que raramente acontece com os homens mencionados. [n.e.]
[12]  Ver Flávia Rios, “A trajetória de Thereza Santos: comunismo, raça e gênero durante o regime militar”, PLURAL, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.21.1, 2014, pp.73-96.
[13] Espetáculos populares nos Estados Unidos desde o final do século 19 até meados do século 20, os Black Minstrels reuniam peças de teatro, atos cômicos, dança, música e variedades. Inicialmente apresentavam atores brancos com o rosto pintado de preto. [n.e.]
[14] Roger Bastide, “Sociologia do teatro negro brasileiro”, XXV Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, 1973. In: Maria Isaura Pereira de Queiroz (ed.), Roger Bastide: Sociologia. São Paulo: Ática, 1988, p. 139.

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