Teat(r)o oficina: corpos livres em perigo
17/11/2017
Por Jean Tible*
No
país da história golpeada (1), estamos vivendo os nefastos
desdobramentos da sua mais recente reedição, ocorrida em 2016, que
reverbera em variadas esferas. Todas as conquistas e aspirações dos de
baixo estão sendo questionadas: proteção social, educação pública de
qualidade, saúde para todos, combate às desigualdades sociais e raciais,
políticas culturais, o limitado voto... Nessa encruzilhada, estamos:
sabe(re)mos resistir (o que significa, para a esquerda, re-existir)?
É
este o contexto da nova ofensiva contra o Teatro Oficina Uzyna Uzona
(2), ativo há quase seis décadas na cidade de São Paulo, no bairro do
Bixiga. No dia 23 de outubro, o Condephaat, após o golpinho da mudança
de sua composição, reviu a decisão do ano passado que vetava a
construção das três torres de dezenas de andares do Grupo SS. Se o
Secretário Estadual de Cultura do Estado não vetar esse ataque ao
teatro, que é estadual, restarão duas proteções: a municipal (Conpresp) e
federal (Iphan) (3).
Se
Silvio Santos chegou, poucos anos atrás, a ceder em comodato a área em
volta do mítico teatro (4) e mostrar-se favorável à permuta do terreno
de sua propriedade por outro, nesse novo clima pós-2016, o chefe do
Grupo SS não quer mais saber de conversa. Chegaram até a desmarcar a
reunião que ocorreria na Prefeitura no dia 13 de novembro e ordenaram a
destruição do sambaqui, “ícone vivo, histórico, do sítio arqueológico do
Bixiga” (5) , situado no entorno do teatro. Antes, já faz muitos anos,
até mesmo uma sinagoga situada nesse mesmo terreno havia sido demolida
(6).
Minha (mais uma!)
propriedade privada antes de tudo, nos sugere Silvio Santos em vídeo
revelador (7), fazendo-nos recordar a célebre fórmula do trabalhador
anarquista francês Pierre-Joseph Proudhon – a propriedade é um roubo. Ao
garantir seu sagrado direito à propriedade, privará a cidade de
um laboratório de vida e de corpos livres atuando em conjunto e com
poder/phoder de multiplicação. Esse vídeo (da reunião de Zé Celso com
Silvio Santos e outros mais em outubro) nos mostra um tirano decadente,
de constantes piadas sem graça (8). Um triste retrato do golpismo
atávico das classes dominantes e da sua renúncia de um Brasil autônomo e
democrático. O Rei da vela (peça escrita na década de 1930 por Oswald
de Andrade, montada pela primeira vez 50 anos atrás e re-encenada no
último mês) escancara toda a nossa atualidade colonial: o vídeo parece a
peça, como bem disse Fernanda Torres (9).
Por
que esse ataque ao Oficina? Trata-se de um assalto ao bairro do Bixiga,
como o indica o uso muito mais do que equivocado por parte do Grupo SS
da palavra revitalização (?) ao se referir, justamente, a um dos bairros
mais vivos da cidade. É uma investida contra o bairro preto,
nordestino, boêmio, pobre. Bixiga das multiplicidades, das
trabalhadoras, dos teatros, dos terreiros, do samba e da Vai-Vai, das
associações e outros pontos de produção do comum, onde são
experimentadas formas de vida inabituais. Da metrópole viva. Um
teatro-rua, teatro-pista, do janelão de vidro em sua conexão com a
cidade, atravessado pela cesalpina, árvore totem – que nasce dentro do
teatro de Lina e vai pra fora. O transbordar de uma cosmopolítica; terra
e democracia sendo semeadas (10).
A
importância do Oficina se dá também pela sua existência como território
livre e pela sua força de conexão com outros lugares de experimentação.
O Oficina participa ativamente de uma cartografia do contrapoder. No
Bixiga, como vimos, no Brasil (territórios indígenas, quilombos,
ocupações, assentamentos e muitos outros) e no planeta. Mundos.
Subversão em ato de corpos elétricos no terreyro eletrônico. Nesses dias
que comemoramos o centenário da revolução de 1917, refaz e recria os
elos, indissolúveis, entre ética e estética (“sem forma revolucionária,
não há arte revolucionária”, Maiakovski), dos poetas e criadores que
anunciaram a esplêndida revolução e cujo fim indicou, já precocemente,
seu triste declínio. Corpos não domesticados e descolonizados. Quando
alguns querem (de forma infértil e impotente) opor “classe” e
“diferença”, o Oficina, e seu emblema, a bigorna (remetendo ao ofício
teatral e proletário) ativa um devir-indígena (11), um devir-negro; uma
transesquerda (Zé Celso).
No
tal vídeo, Silvio Santos pergunta para Zé Celso o que ele quer fazer
com o terreno. Frente ao interesse estreito e individual (suposto pelo
empresário), um espaço para a coletividade-cidade
(a-anhangá-anhangabaú-da- feliz-cidade) responde o homem de teatro. Em
oposição à avidez, um laboratório da felicidade guerreira, alimentada
pela potente linhagem da antropofagia. Num planeta onde tudo parece e é
complexo, a reunião citada escancara o dilema de Rosa Luxemburgo um
século atrás: socialismo ou barbárie. Ou a fartura do comum de Artaud
contra o mundo miserável do capitalismo. A política como invenção,
criação, provocação, devoração. Teatro-vida da presentação e não da
representação, afirmação de uma vida outra. Luta e alegria.
1. Douglas Belchior, http://negrobelchior. cartacapital.com.br/historia- golpeada-do-brasil/
2.
O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e
Turístico de São Paulo (Condephaat) aprovou, na última quinzena de
outubro, o projeto do Grupo SS, de Silvio Santos, de construção de três
torres de 28 andares no terreno do entorno do Teatro Oficina. O teatro,
bem como o entorno, são reconhecidos como patrimônio cultural nos níveis
federal, estadual e municipal. Para a execução do projeto serão
necessárias ainda as aprovações do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) e do Conselho Municipal de Preservação do
Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo
(Conpresp).
3. dois textos recentes do Oficina sobre o assunto (http://teatroficina.com.br/ urgente-nota-publica-de- esclarecimento-ficaoficina/ e http://teatroficina.com.br/ movimento-vetaastorres- ficaoficina/) e uma matéria com Camila Mota (https://revistacult.uol.com. br/home/somos-cascudos-e- aguentamos-a-luta-diz-vice- presidente-do-oficina/).
4. Vídeo de 2011: https://www.youtube.com/watch? v=XMPi3mQ3b9I
7. Na íntegra (https://www.youtube.com/ watch?v=yRlPmIgc6UY) e na versão editada pela TV Folha (https://www.youtube.com/ watch?v=S-k4CcFgmJo)
10. Vejam o forte diálogo entre Sonia Guajajara, Guilherme Boulos e Zé Celso ocorrido ano passado no Oficina: https://www.youtube.com/watch? v=_rf89zFaNT8
11.
Segundo Eduardo Viveiros de Castro, “se você olhar a composição étnica,
cultural, da pobreza brasileira, você vai ver quem é o pobre.
Basicamente índios, negros. O que eu chamo de índios inclui africanos.
Inclui os imigrantes que não deram certo. Esse pessoal é essa mistura: é
índio, é negro, é imigrante pobre, é brasileiro livre, é o caboclo, é o
mestiço, é o filho da empregada com o patrão, filho da escrava com o
patrão. O inconsciente cultural destes pobres brasileiros é índio, em
larga medida” https://brasil.elpais.com/ brasil/2014/09/29/opinion/ 1412000283_365191.html
*Jean Tible é professor de Ciência Política da USP e Conselheiro do CSBH
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