Notas
tortas da madrugada: Canções e Letras.
Sons de internet
discada: Se o futuro é feito apenas de finos fios de desejos, o passado só pode
ser transcrito com lápis de sombras e brilhos... Meu tempo é esse e todo
passado é já esmaecimento, fonte de criação e dores superadas. O relógio sob a
retina não deixa dúvida e nem escolha, temos, tenho que seguir. A música me
levou a lugares que jamais poderia ter ido por mim mesmo. Ela maldição e
dádiva, é cultivo e desencanto. Mesmo que eu não queira ficam ruídos me
perturbando o ouvido interno. E por mais longe que eu vá, ela é almadia, canoa
dos Awá. Araquari e Lumiar, Bela Vista e
Grajaú, Penha e Copacabana, Guine Bissau e Perdizes, são sempre as
mesmas canções-canoas. Ferro riscando o vidro: Ouço, ouça, Donana lavando
roupa, Dusantos lavando louça, Antonio fazendo flauta de bambu num serrote
secular. Ele Antonio dos Bêta no violino de compensado, no cavaquinho
eletrificado ou na sua viola de arame. Ele tocando pra si, em chinelo de dedo e
calça rancheira. Não posso negar, caipira preto é o que sou. Bisneto de negra
Jovina e outros homens escuros sumidouros, falos embrenhado na capoeira do serrado.
Trago sempre no bornal minha pitada de Congo, uma viola D’Angola para atiçar
notas mortas. Somos banzo do futuro. Maquinas de pedal cozendo: Réu confesso,
meu lugar é o erro, pois aspiro a memória do mundo. Pausa longa, performance do nego Jansem
“moleque zaranza” no festival. Umas fotografias rotas e rasgadas, prisma em
preto e branco deles e saudade. Sempre é uma re-volta a cantiga do Dedé “não me
chame de negro da alma branca...” no festival de São Sebastião do Paraíso, num
inverno qualquer de 1979, com João Terra, João Batista da Silveira, Vandré e Lord
Bira da Silva. O chão é semeado de rasqueados de violas negras, calangos e
pagodes roceiros. Ngomas são senhoras de couro e madeira, células rítmicas
milenares, segredos abertos. “Moda de
viola não dá luz a cego”, canções do sargento pimenta também não. Sou caipira
preto, fugitivo para um quilombo eldorado, mas a cidadela é murada, cercas elétricas
indizíveis. Pia que pinga. Maquinas de fotocópia: Não fui a portobello road,
mas ouvi a canção que me veio do Suriname, senti aqueles acordes consonantes do
reggae e vi quando os primeiros rastas entraram altivos na metrópole e desceram
a Martiniano de Carvalho. As ruas de Passos eram minhas desde a entrega
daquelas marmitas no Cine astro. Campinho de terra, bola de meia, nada de
beiçola ou tifum, eu era uma Pelezinho. As soberbas de São João Batista do
Glória moravam lá. Quando o amor me visitou de prima, Ezir morava com a mãe num
prédio nobre no Brooklin. Porteiro beje me interditou a mando dela. Claro que
não foi a primeira vez nem a última, que senti o frio que vem do norte. É
preciso esquecer, mas não perdoar, ponho na canção o trauma, o medo e todo,
todo resto, todo lixo subumano que há no mundo e em mim. Tem uma coisa na
canção que me alimenta, uma alegria contida, como uma oração presbítera e um
canto umbanda fundidos. Sons do mato crescendo: Meu amor é afronórdica tesuda,
cristiana sem sê-lo, tem ombros de
feirante, forte gaivota e frágil desnuda.
Desde o começo marcamos encontro na baquinha em Santo Amaro. Eu e Dubois em altas alemanhas. Antes vaguei por Rodas
de pai oxalá, foi minha primeira cantiga, fendida em um festival no ensino fundamental
com Raquel e Ana de Lucas e Susana Pimentel, Violão e tambor, e só. Depois que
veio e Inhola Trio. Imagine a saga, uma flauta doce e dois batuques, fecharam
escola para um show, cobramos ingresso e tal. São Paulo e Minas Gerais,
mas “não sei se vou, não sei se fico”,
minha dúvida e de Martinho, chegamos juntos. Ele pelas ondas do rádio, long
play na eletrola de pilha, sob a lona preta no Jardim Miriam. Eu? Via estação luz, chapando os olhos nos
arranha céus. Na escola um corpo de menina dança, cheiro, falo, sonho.
Periferia e cordel, pastel de feira e japonês, Harume, Kaoro, Mario Nishigawa,
Mitico, Ana Saiure, Akira S e Che Guevara, diversidade total, humana e real.
Descoberta do mundo e encontro. Cubo da feira, clube da esquina, Jorge Ben e
Jorge Bruder e o maestro Tarcísio um preto outro branco. Genão festival, Cabral
e Meire, Adalto em piscina cheia, canções autorais, quem quer mais, lazer na
periferia. Um envelhecido amigo arrastando a chinela da porta da casa até o
portão elétrico: Agora nomes parecem remotos, Raquel, Eugenio Vinci, Léa,
Marcão, Valada, Marcinha anos setenta, uma escola uma quadra, um festival de
música. Jatos supersônicos: Um pouco de futebol, ponto de ônibus, shorts
cumprido, skate e ditadura. Rangido de porta se abrindo. Do terreiro surtido
nas Gerais à mesa parca, pencas de bananas em fim de feira e a merda voltando
pelo ralo, rua das laranjeiras na Catarina, lá se foi o dedo do Gerson na
máquina de concreto. Era um espetáculo o corpo nú daquela jovem senhora na janela
do sobrado, cinema toda tarde. Eita molecada. Pula corda, sobe essa parte.
Pisando em poças d’água : Um cobertor bem quentinho com dragão chinês
estampado, nada se perde em são Paulo, obrigado Bete Ng. Betão, Rubão, Broks,
Claudionor. Corpos negros masculinos em profusão, virilidade do futebol, sou
eu, Pelezinho, canela fina, fujão. Num
mundo tão diverso, tudo era branco demais. São Paulo é poder, foder e cair.
Cida Ângela, Zaire, tranças e contas no cabelo é orgulho negro, black power,
irmandade e desejo, dançar soul no chão batido. Não tenho mais medo de bala,
corro em zigue zague, meu corpo não é fechado. Não vou morrer de tiros no
campinho, bola na quadra do Monsenhor, agora é área da Cooperifa, Marcio
batista, Sergio Vaz e Vaz de lima. Euller não conheceu Anastácio e Verinha,
Beiçola e Neguinxim, Al green e Ray Charles. Braço da eletrola no sulco: Bloco
do beco e Originais. Samba soul e Nascimento, Melodia e Zamba bem. Transa
negra, pertença, danças e amores nos bailes. Rituais, becos e muros do parque
santoantonio (oh favela, canta comigo: “a subida do morro é diferente, o
movimento é geral”, bem antes de racionais mcs). Um universo no corpo dela,
bela Arlete, meu negro amor saltando pinguelas. Onde andará? Viva Vilma correndo da morte, Carlo-Marco,
Maria de ontem é Cristina da Paz hoje. “Viva a mata e os olhos verdes da
mulata”. Saúdo seu zelo, porque seguem em cantoria no velho mercado velho. Pra
mim um santuário, escola e palco do Circo Novessencia e Na Corda banda. Em
plena ditadura, solidão, seguem amando a música que está em nós, cantando para
ir vivendo. Inhola trio, mulatos quase
brancos e velhos brancos bem racistas, mas pobres demais, sem força para nos
apartar. Guitarra com distorção: Né Bubina?
Né Kolchereiber? Nem Pusinkas, nem Mandim, nem Cremm, nem Bochiglieri. Primeira
cama de mola, rangidos da cama dançando. Meu amor nunca foi puro, confesso. Mas
também quase nunca aceitou fronteiras. Porque só os afetos são eternos. São
eles que continuam vibrando quando os nossos corpos jazem frios. Eloquência da
vida é Beto vovô e nega senhora, a índia mais linda que eu conheci. Vera é
vera, passou bem cedo, choramos e catamos seus sonhos. Ecos de tiros e bombinha
de mil: Foram tantos outros que eu nem vi, não velei como Nenê. Não é morte, é
ceifa: Sabão de Côco, Zédoido, Marcio
Caveira, Zédimas. Falo sério sobre subcidadania, da sobrevivência em terra
alheia que é sua. Nomes e listas nos bares, pés de patos e avatares, matadores
de aluguel, a cidade é uma maquina de moer gente. Os demógrafos nada sabem
sobre nós, estudaram muito, até que cobriram os olhos com teias rendadas de
números. Meu Estanislaw ( não Sergio Porto) era um branco bem raro, bom de bola
pra caralho, mas inviril e fingidor. Descobriu que amizade não é amor, é lucro.
Identidades em jogo de construção, operário Carlão, Frust, João Loruenço,
Tchak, Banana-Ana, Chicão, Marilena quase fome, criançada, subemprego e
marmelada. Para o poeta Nono éramos todos metalúrgicos e nordestinos,
provincianos em revolta comunistas, proletários letrados, mas sem a grana do
Caio Prado, do Carlos Prestes ou do Niemayer. Chico era um operário do BNH, no
violão de sete cordas ele está são e resiste. Lá na igreja do padre Luis era
seu Raimundo fazendo folia urbana, subindo e descendo morros escorregadios, sob
os olhos da velha índia de pele negra. Sons abafados de tambores: É poesia do
Chico não meu véi, é vida vivida nos Grajaus da vida, no lado que a cidade é
partida, onde quase nunca se junta. As cidades são miragens, os bairros são
teares. Eu sou besouro se pau zunindo seus ouvidos. Feira de Santana e Bosque
da Saúde, João Braga e Helo “oh quão dessemelhante”. “Triste Bahia”. Carlos
Boquinha e Carlos Gianazzi eram Caetanos da periferia. Triste Interlagos, Chico
Czar na Capela do Socorro, Parelheiros, “os
olhos tristes da fita rodando no gravador”. O neguinho é esteio, Luis Rosa,
Buda bantu. Plantou ruas de harmonias pra eu navegar com meu canto torto. Notas
que eu sempre pus na beira, sem trena. Não só por isso sou muito grato.
Lamentamos juntos nossos irmãos que jazem aqui nesses campos de asfalto,
fuligem e lama. Rabiolas de pipas no ar: Canções são sempre maiores que nós,
rompem o tempo ficam vagando.Tornar-se irmão do irmão, contabilizando as perdas
e ir costurando sonhos e risos, sem vangloria, não é pra qualquer. É coragem
sem tê-la. Oliveira árvore sã, seu óleo é sacro, cabocla-negra, senhora filha
da velha aroeira, indígena parelheira, centenária. Pra cada perda uma poesia,
para cada negra filha, uma ilha amarrada aos pés continentais. Amor é da nossa
condição animal, sem ele não há como prosseguir. Meu coração tava aberto quando
ela chegou, só perguntei seu nome, algo estranho me ocorreu sobre sua cor rósea
queimada do sol da feira livre, seu cabelo dourado e seus olhos marinhos. Mas
não me ative ao texto da interdição e da exogamia. Racismo é ojeriza e ódio
pelo humano que vem ao encontro. Como? Se eu não caibo em mim mesmo, se eu nem
existo pra mim. Como poderia existir para o outro? “Mesmo que os racistas
vençam, ninguém poderá me roubar a memória, das marcas dos meus dedos em suas
costas.” Tem muita alegria e vitoria espalhada além de santoamaro, Miranda
d’Ouro é canto puro mundo inteiro, Maga Lieri com alma amansada pela dor,
também canta humilde e divinamente. Conheci outras tantas mulheres negras, não só
na cor, no mundocanto, cujas formas ainda busco. Sara e Geni, ora. Oração,
inselença e Kalunga Zambi. Os fragmentos dos seus corpos geraram outros bem
mais fortes, Danusa Novaes, Meire Palma,
Nádia Rosa, Luan, Marcus e Marina. Filhas, filhas e irmãs. Detalhe: são
portadores de cantos, herdeiros daquelas mulheres. Novamente famílias negras
acolhedoras nas beiras de Diadema e Jardim Miriam, por onde passei ao chegar e
voltei pelo Jabaquara um centro cultural. Televisão de válvula esquentando: As
crianças vingaram, estão forras e a cidade os habita, ainda que na beira.
Outros caipiras urbanos, caralhos rubros, alma cheia e cabeça oca, broca ou
fábrica de filhos. Não. Como eu, são apenas homens sustentados por dois falos e
uma perna, uma paranga ou guimba. Sobre os filhos deles, não fossem as mães
seguras e velhas, gente que cria e recria a si mesma, teriam sido engolidos
pela enxurrada, tragados pelas ruas. Não me furto ao papel de juiz e serei
julgado pelo por tudo que fiz e pelo que não fiz. Melhor assim, do que passar
incólume. Hoje penso que eu sei quem sou e o que me tornei. Um homem negro. Meu
ser está preso nesse corpo melanínico e fálico. Sei que daqui de dentro desse
corpo sinto que a justiça e a polícia, simplesmente me odeiam. Apenas meus
irmãos tateiam cegos para me achar no meu corpo. Ele apenas me sustenta no
mundo e eu o sinto. O mundo. Máquina de pedal: A canção é uma costura
pacientemente feita entre a luta cotidiana e o mundo ao derredor. Banda Tribbu,
Vândalos de Chocolate, timbres e sonhos, medos e tons, sons que arrebatam e
fazem o corpo reviver. Em conjunto as canções formam flashs iluminados, nas
rotas escuras da corrida encarniçada pela liberdade. Pele roçando a pele: Satranga
de lima seria um caso a parte pela generosa reciprocidade e vigor. Uma lição
viva de afeto, pelo gesto e pelo cunho libertário de sua canção, pela
radicalidade como viveu e vive seu amor pelos outros homens, quando s e
descobriu livre. Nos dois nas beiras
gélidas do sena, canções, luzes e amores na cidade rica. Ainda assim,
canabistas adeptos sinceros tendem a falar muito sobre o mesmo, mas ao menos
não se quedaram em dog-máticos cruzadistas. Tendência avassaladora atual. Nessa
margem externa dos pinheiros quase todos os bares foram reformados e convertidos
em casinhas de cambio jesuíticas. Há muita música de transe e grandes amigos
nossos, hoje vivem lá.. Esperam a salvação ou campeiam algum trocado, a vida é
dura mesmo. Constato apenas, não julgo e não lamento. Martelo sobre a madeira: Os girolamo-scantamburlo
e schultz serão sempre parte de uma reserva afetiva interrracial e não
importará o que acontecer daqui em diante. Nego Jansem frisava o quilombo
imaginário de santamaro e a noção do triplo pertencimento, sem saber das
revoltas indígenas do século XVI, imaginário em expansão. Negros claros e
brancos caídos, circuncisos ainda meninos Gil Assis, Chechetto, Sechanechia,
Urbano, Binho, Telmo anum, João grande, Beto de Tore, Carrasco, uma quantidade
infinita de nomes, certezas e tons de pele. Novamente canção, feixe de ego e
cisão. Não é geografia sonora, é infixidez do território, seminomadismo tonal,
zona fronteiriça entre a música e a dúvida, entre a dádiva e a maldição .
Tigrão e Célia, Magnólia, Eufra e Mauricio, meus mestres me ensinaram a arte de
ficar invisível e a coragem sonhando.
Aprendemos pela experiência cotidiana, que por vezes o viver do lado de
cá da ponte é marcado por um sentimento terrível de holocausto, que não cessa
nunca, dezenas de vidas ceifadas numa única noite, é aterrador, sufocante.
Circuncisos na vida adulto, eu, Caminha, Mano, Godoy, Suete, Salete, Tai,
Elcio, Caçapava e os Fischer. A arte
nos parece ser única coisa capaz de dar um contorno compreensível a essa nuvem
de silêncios e narrativas sobrepostas, imagens recortas e sobrepostas, vidas
quase fictícias, temporalidades e
geografias entrechocadas. Por conta das divisões internas, mal conseguimos
saber de onde vem o chumbo. Sequer conseguimos sustentar um teatro livre como
aquele da Bielorrússia. Serra o papo do vovô: A arte aqui tem a ver com a
urgência existencial das coisas frágeis, sopros envolvidos numa engrenagem,
quase sempre desgovernada e cruel. Clarianas, Capulanas, Quizumba, Crespos e
outros tantos negros coletivos, são bons presságios, um refresco para tanta vida
vã. Kaká um dia verá, fomos poeira do mesmo rastro no tempo. Semente
ngaguelano, chão do quilombo da Mombaça, nova tribo. Maria e Cristina da Paz Gomes, todos os Gomes
e Olgins, marlenes e tiznau, nomes e sobrenomes de bambas. Mas homens que
dançam também matam. Ronaldo e Naldinho,
Fl´pavio e Celinha, Irani e Solange, maria do nico, Margarida, Regna, João,
Abrão, Maria, Rafael, e batismos de sangue e canhão. Até quando?
Toda palavra é excesso e um gesto é sempre feito de incompletude. Embrulho
poemas em papel de pão: Escrevo eu meu computador de bordo, meu cérebro
eletrônico coevo. Pode ser por culpa da escola, das professoras que me deram trela, foram tantas, uma Alcione
Abramo, outra Angelina, Antonieta, Maria
várias. Nunca me escolarizei por completo, conquanto doutor
semialfabetizado e vingativo. Resquícios de oração: Me fiz em contracanto um
juntador de letras, um catador de palavras e algumas frases com e eixo tenho me
esmerado nisso. Notas e palavrões
escritos no vento: Também vendo quinquilharias variadas. Sou letrista
que canta. Me dá licença! Quero entrar no seu campo de sentidos, para ver se
minha vida ganha algum. Agora estou, estamos a caminho de Tonande Porã: Salve
Zambi.
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