1990 – Guinada da Cultura Urbana.
A música R.E.P. (Ritmo e Poesia) destruiu simultaneamente e por completo a nossa ilusão escolar e ingênua da existência de uma cultura universal e outra cultura nacional genuína que nos pertencia. Fez isso por meio de jogo interpretativo que combinava contrastes simplificados. Essa forma bastante didática, nos mostrou poética e musicalmente unidades sociais conflitantes e separadas da sociedade paulistana e revelou a existência de duas realidades sociais urbanas paralelas, mas bem distintas, centro e periferia, mansão e favela.
Lembrando Edward Dubois, agora penso que as fronteiras nem sempre invisíveis entre estes dois mundos eram mantidas por um véu ideológico de suposta integração e involuntariamente alimentado pelos setores mais escolarizados das populações pobres, esse era meu caso. A Escola ( instituição) teve e tem seu papel de atenuadora dos conflitos sociais, com a inserção de conteúdos culturais aparentemente neutros e supostamente universais na nossa formação.
Luis ( LF do DMN) (2000. By Marco Aurélio Olimpio)
A Música R.E.P. e o Movimento Hip-Hop alargaram nossa concepção
de consciência social e nos ofereceram uma ideologia política, que para a juventude
pobre urbana que não existia antes, ou ao menos jamais advinda de dentro. Essa
ideologia pode ser definida como sustentada em Quatro Pês (na línguagem do
HipHop é 4P). Poder Para o Povo Preto e Paz.
Essa ideologia combinava, em termos de discurso a denuncia do racismo e da
exclusão social, a fixava uma filosofia baseada nas experiências de desemprego,
alcoolismo, degradação moral e contrapunha imagens do cotidiano dos pretos pobres e favelados e as
das elites brancas. Localizava a chave sociológica da dominação, as relações de
poder e sugeria o empoderamento contra a pobreza e racismo.
As culturas negras urbanas quase domesticadas pela indústria do entretenimento
e pelo folclorismo nacionalista, que haviam
sido primeiramente reprimidas com forças policiais e depois encapsuladas com artifícios
intelectuais e transformada em folclore renasciam sob ímpeto imprevisível. No
formato de cultura popular urbana o REP emergiu do setor mais degradado da
sociedade brasileira, as populações jovens urbanas sem trabalho e de baixa
renda. Favelados e periféricos jovens negromestiços ergueram a voz para denunciaram
a opressão social e juntaram fragmentos de identidades negras trabalhadas em vários
tempos e geografias da diáspora para fomentar uma ideologia nova e potente, que
ainda hoje produz sentido e frutos políticos e estéticos. Dança e política, canção e ideologia, estética
e sociabilidade fazem parte de um repertorio próprio da existência diaspórica
que os intelectuais cartesianos tem dificuldade e, lidar.
O termo Periferia foi transformado em plataforma identitária,
quer dizer lugar físico e simbólico agregador de coletividades diversas. Antes
disso periferia era útil somente as mídias, aos tecnocratas da habitação e aos
explorados do mercado imobiliário urbano. Coletividades compostas
prioritariamente de negromestiços, mas não só, também migrantes nordestinos e
mineiros, homens e mulheres, encontram na retórica e poética do R.E.P (embora
marcadamente misógino).
Kleber ou KLJ do Racionais Mcs. (2000. By Marco Aurélio Olimpio)
Tratava-se de uma dialética nova e que rapidamente se aprimorou a partir de São Paulo. Embora surgido como forma de entretenimento urbano dos sem-lazer e pouco escolarizados, os protagonistas do R.E.P o transformaram em movimento social e forjaram a emergência de politicas públicas de culturas, que antes se enceravam nas áreas centrais da cidade ou nas margens internas dos Rios Pinheiros, Tamanduatei e Tiete.
Que a Cultura Hip-Hop tenha influências estadunidenses em termos
musicais é certo e correto, mas a ideologia 4P foi forjada pela leitura
objetiva e pelas subjetividades das experiências de opressão e segregação sociocultural
e política negromestiça especificamente brasileiras. O racismo antinegro no
Brasil, embora inserido na dinâmica do racismo mundial tem seus fundamentos,
cores e traços próprios.
Em termos de prática cotidiana difundia formas simples de
autopreservação com base na amizade e na configuração de pequenas células de autossuficiência
e produção cultural autônomas. O núcleo
discursivo da poética REP recaia na acusação veemente do Estado pela violência, ainda hoje corriqueira, cometidas pelas
forças de segurança e para isso pedia a
Paz. Mas não a mesma Paz, paz de cemitério dos movimentos da classe média
branca, que podem ser traduzidos como melhores armamentos para política, mais
liberdade para matar e maior sofisticação do modelo repressivo.
Principalmente evocava a
compreensão da ordem social para localizar a fonte da opressão, se não
pressupunha uma revolução armada pregava uma reversão total da hierarquia. Forjava simultaneamente a mensagem moral de
autoestima e autopreservação que fez muito sentido para um setor urbano
totalmente desassistido pelas politicas públicas e menosprezado pelas
organizações políticas tradicionais, os partidos. Esse fenômeno surgiu por
volta do início dos anos 1990 e durou até por volta de 2007, quando uma
terceira geração de Repers surgiu na cena da produção musical.
Antonio Pinto, Sulei Chan e Salloma (2000. By Marco Aurélio Olimpio)
Auto estima, isto é: Somos negros e pobres e esse sociedade pra nós é foda, se liga nisso mano se quiser continuar vivo.
Trabalhando incialmente ao nível das letras e atitudes com um
discurso textual, visual e corporal relativamente simples e fundamentado em
contrastes binários, que dividia o mundo
em dois polos, centro e periferia, boys e do gueto, polícia e otário, mulher e
homem, negros e brancos, racistas e manos. Além da música e da dança a cultura
Hip Hop conseguiu infundir nos seus participantes, ao menos na periferia de São
Paulo, profundo gosto pela leitura e escrita, pelas linguagens das imagens,
constituir uma nova cena de discussão política e de reflexão sobre identidades
étnica e etária. Podemos atribuir também
a cultura Hip Hop uma percepção positiva da Escola Pública, como um local de
segurança, expressão cultural e ascensão
social.
Um divisor de águas desse processo pode ser identificado no
Programa “Rapensando a Educação”
desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação entre 1990 e 1991, foi concebido como uma interlocução
entre a escola pública e as comunidades periféricas e mediada pelos jovens
portadores de cultura Hip Hop na cidade de São Paulo. Traduziu-se na realização
de uma série de oficinas de criatividade realizadas na escolas municipais:
Grafite, Musicalidade, Dança e em diversas outras linguagens. Ainda hoje há uma
memória significativa dessas ações que circulam oralmente pela cidade.
Na prática simbolicamente registra o encontro de ativistas
negros antirracistas da geração de 1970, sobretudo ligados ao MNU ( Movimento
Negro Unificado) com os jovens Repers, grupos Racionais MCs e DMN, através
deles se inicia uma das colaborações políticas e criativas mais interessantes dos Movimentos Negros
Brasileiros Contemporâneos. Essa articulação rende frutos ainda hoje e em
alguns momentos chegou a ajudar a definir as eleições na cidade de São Paulo,
embora não haja pesquisas sobre participação politica partidária e tendência de
voto da juventude urbana.
Esta ideia de que seria
possível sobreviver do fazer cultural, fora uma hipótese testada pela geração
do Hip-Hop paulistana da década de 1990 em duas circunstâncias, no município de
São Paulo e em Diadema, uma cidade industrial na área metropolitana. Apoiados pela
Secretaria Municipal de Educação, quando pasta era comandada por Mario Sergio
Cortela, esse comboio de Repers, Mcs, Grafiteiros e Dançarinos de Breack
circulou pelas escolas da cidade de São Paulo e região metropolitana
mobilizando alunos educadores e ativistas.
Essa inovação estabeleceu
um diálogo pouco comum entre cultura escolar e a cultural jovem extra-escola,
nromalete vista com grande preconceito pelos educadores formais. As escolas
públicas tornaram-se espaço formativo ocupado por educadores não escolarizados
ou com baixa escolaridades, mas portadores de uma mensagem a qual a escola
pública ainda hoje é capaz de assimilar.
Com palestras e oficinas de Grafite, Discotecagem, Musicalidades e
Escrita de letras. No mesmo período a prefeitura de Diadema instalou na cidade
um centro cultural designado a “Casa do Hip-hop”. Aquele espaço concentrou
pesquisas estéticas e estudos sobre a cultura Hip-Hop no Brasil e nos Estados
Unidos. Foi nesse contexto que se iniciou o reconhecimento social e
profissionalização dos educadores culturais periféricos.
A ideia chocante e
potente de que os jovens negros pobres são sobreviventes no gueto não é
retórica é uma elaboração poética de uma realidade quase sem poesia alguma.
Diante de uma pressão
social sem precedentes a juventude urbana paulistana, normalmente acuada entre
a cultura do consumo, a violência de estado, a semicidadania e a violência
social, encontra entre os dejetos do “lixo
ocidental”, as flâmulas que podem ser ressignificadas e transformadas em modos de ser e estar no
mundo. É nessa chave interpretativa que se pode focalizar nos movimentos
culturais negroperiféricos.
Luis LF (DMN) e Pivete (Pavilhão Nove) (Acervo pessoal dos artistas, autor não identificado)
Luis LF (DMN) e Pivete (Pavilhão Nove) (Acervo pessoal dos artistas, autor não identificado)
Suas figuras mais
proeminentes começam a se constituir como um tipo novo de liderança social e política e por
isso passaram a serem cortejadas pelas
empresas médias e grandes de comunicação, universidades, corporações e
instituições estatais ligadas a educação, artes e culturas. Prêmios, convênios, títulos, fomentos não são
exatamente estratégias de esvaziamento do conflito político-cultural, mas
funcionam como tal, diante da fragilidade da nossa crítica.
Uma tradição cultural no
Brasil é o fato das linguagens artísticas, nas suas cinco modalidades (Música,
Dança, Literatura, Artes Plásticas, Teatro e Cinema) serem cultivadas e
exercidas hegemonicamente por pessoas e ou instituições advindas das classes
altas, salvo as exceções já catalogadas.
Isto posto significa reconhecer o caráter racial dessa hegemonia. Os
eurodescentes são detentores do poder em todas as esferas da vida social,
embora o discurso de pertencimento nacional, cuja ênfase recaia sobre o caráter
transcendental da raça e na valorização da mestiçagem cultural, como uma forma de
distensão sociopolítica.
Nem mesmo as mudanças
sociais e políticas recentes, como maior índice de escolarização dos setores
sociais historicamente mais empobrecidos e alternância política e a emergência
de novas elites regionais e nacional foram a capazes de modificar
substancialmente a concentração de status e poder das elites de origens
europeias.
O máximo de organização
que as lideranças negras obtiveram redundou na formação de uma classe média
negra urbana ruidosa, cujo discurso e
praticas é até vigorosa, mas ainda incapaz de construir a unidade necessária a
mudança estrutural que racismo também estrutural reclama. Ou seja sem mudar as
regras do poder racial no qual o brancos figuram no topo da pirâmide. Em outras
palavras não tem sido possível transformar o poder cultural e simbólico em
poder político.
Tem sido o desafio e
paradoxo dos movimentos negros brasileiros que obtém lugares menores nas
estruturas politicas, porem não conseguem atingir o objetivo enunciado ainda
nos anos 1930, que é construir um movimento unitário negro de âmbito nacional
ou internacional (já que o racismo antinegro tem dimensão mundial). A
fragmentação política tem sido o desafio mais recorrente e o mais o trágico
dilema da luta negra no país, algo
constatado já na década de 1940, por exemplo, por um intelectual e ativista
como Guerreiro Ramos.
Uma pequena minoria dos intelectuais emergentes transforma-se
tradutores e mediadores dos códigos
identitários contraditórios e difusos das periferias e da população negras, mas
efetivamente seguem isolados nos pequenos grupos e onde são publicamente
cultuados como figuras carismáticas e supra-humanas. Nos bastidores
apresentam-se autoritários, mesquinhos e distanciados da massa humana que os
revência. Cortejam figuras e instituições detentoras de recursos financeiros ou
materiais capazes de promover seus feitos, seus bordões e sua imagem. Alimentam
assim as relação paternalista como padrão de tratamento entre setores
subalternos e as elites.
Embora parte do discurso
recorra a figuras da revolta, levante e ruptura, na prática o que se vê é
continuidade ou mudanças superficiais nos padrões de dominação social
racializadas. Não obstante um campo de trabalho novo se configura nas
periferias paulistanas. Os arteducadores são jovens de sexo masculino em sua
maioria, muitos com escolarização de nível superior obtido na rede de ensino
privado que muito prosperou na regiões pobres para explorar a massa de
sem-faculdades.
Detentores de técnicas
artísticas e conhecimentos práticos em música, dança, literatura, fotografia
e cinema digital esses educadores
receberam um tratamento diferenciado do Estado, por meio de uma política
pública elaborada às pressas, em meados dos
anos 2006, para responder a pressão da opinião pública,
quando ficou evidentes os massacres contra a juventude urbana cometidas como
forma de retaliação, pelas forças policiais nos episódios conhecidos como
“ataques do PCC).
Os trabalhadores
artístico-culturais representam uma nova figura no cenário das periferias onde
predominavam o desemprego estrutural, ou o trabalho informal, o bico. Outra presença nas periferias é trabalho
semiformal nas empresas terceirizadas e Ongs voltadas ao atendimento social,
que completam os serviço público em forma de convênios. As creches em sua
maioria são resultados desse tipo de convenio, o que revela a omissão
sistemática do estado em relação a infância periférica.
As mães trabalhadoras
recorrem aos parentes e amigos, quando não a cuidadoras informais que lotam
suas casas e quintais de crianças, como forma de complemento da renda. Os que
têm ímpeto empreendedor e algum recurso financeiro conseguem transformar essas
práticas em pequenas creches e escolas, que atendem até 200 crianças em espaços
onde não caberia nem a metade disso.
Os saraus ganharam força
nessa época, mas suas raízes encontram-se na décadas de 1970, sobretudo nas
atividades culturais das Cebs (Comunidades Eclesiais de Base), nos festivais e
encontros culturais estudantis e nos eventos privados da elite paulistana.
Entretanto na década de 2000 os saraus se constituíram em polos aglutinadores
dos anseios de parte da juventude periféricas porque construíram uma ideologia
e uma pratica social extremamente sofistica, que combinava produção
artística-cultural e alternativa e modo de vida.
Considerações Finais
A modernidade é a maior
invenção do mundo ocidental e ao mesmo tempo sua maior falácia. As promessas e de equidade e liberdade jamais
se cumpriram nem mesmo nas sociedades ocidentais mais opulentas. Seu maior legado, ou seja, o humanismo, agora
se transformou em lixo ou retórica. Lixo porque uma das caraterísticas reveladas
na dinâmica da modernização mundializada é a capacidade de exploração estatal
coorporativa ou pessoal de todo e qualquer tipo de recurso, até sua exaustão,
deixando no caminho os desejos materiais e espirituais.
O humanismo como forma de
pensar a existência e diversidade humana e estender seus limites e para além da
Europa branca e civilizada, na verdade se esgotou no quadrante norte. O Estado
que se preconizava o árbitro das iniquidades,
efetivamente se tornou um senhor
arrogante, mas subalterno do capital e por pouco não foi totalmente
esvaziado do seu poder normativo e agregador. O progresso técnico foi capturado
irremediavelmente pelas corporações capitalista e os estado tornou seu refém.
Por fim o Humanismo foi
atirado no lixo e por isso agora surge como estandarte nas mãos do
excluídos de todos os pontos do planeta.
Nas periferias das periferias do mundo industrializado os mais subalternos e
excluídos entre todos sujeitos sociais reivindicam pautas que foram catadas no
lixo da modernidade. Aquilo que não foi capturado totalmente pelo mercado de
consumo, qual seja, as linguagens artísticas, e educação escolar, o direito a
diversidade, a cidadania, o direito a
existir nas cidades, agora figuram nas bocas dos sem coletes, sem empregos, sem
casa, sem cultura e também dos portadores de estatutos rebaixados de cidadania
ou de hipocidadãos.
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