Agustus Legbanus
Pirapóricus
Desde o século XVI, os
sem-escrita povos de cor, insistem em se comunicar por meios de textos, tidos e
havidos como exclusivos dos teutônicos, dos gregos e dos latinos. Aprendemos na
escola que gente bárbara, gente preta, gente índia são gentes, mas não tão
plenamente. A escrita é uma forma de elevação da alma, só para iluminados.
Segundo nossos bem intencionados
professores (as) a Música nasceu na Grécia, a Literatura também nasceu lá, mas chegou
a maturidade em Roma e a filosofia verdadeira conheceu seu apogeu na Alemanha.
Essas verdades sem relativização se erguem como muros de concreto contra nós,
negromestiços, silvícolas, caipiras e maletrados. Uma inversão, que coloca a
escrita como tendo sido anterior ao pensamento, nos ensina a ter profundo
desprezo ou vergonha dos nossos ancestrais, apagando todas as experiências
culturais que acumulamos ao longo dos últimos 5 séculos de massacre físico e
simbólico.
Via de regra meus
alunos repetem o mantra sobre a brasilidade, dizendo que, no Brasil todos somos
mestiços e iguais. Quando pergunto quantos textos de escritores indígenas leram
na escola desde a infância, ficam com cara de paisagem. Quando trago textos de
Ailton Krenak, Marcos Terena, Kaka Werá, primeiramente se mostram céticos e
confusos, depois vão compreendendo aos poucos como foram lesados na sua
compreensão parcial e racista de mundo. Por
vezes as aulas se transformam em banquetes de signos, principalmente quando
somos colocados diante de fragmentos de Allan da Rosa, Ferréz, Paulo Lins,
Priscila Preta, Sergio Vaz, Fábio Mandingo, Jenyffer Nascimento e outras e
outros que agora brotam como pragas anticanônicas nas beiras da escola,
erodindo aquelas montanhas de saber recomendadas por Antônio Candido. Ervas
daninhas nos jardins, que criam novas paisagens na aridez da brancura textual e
nos permitem outras inscrições de imaginários.
Não se trata, como
querem alguns, de uma luta excludente do escrito contra as oralidades, mas de
uma estratégia de usar todas as possiblidades expressivas que podemos lançar
mão, para comunicar formas diversas de estar no mundo e se senti-lo tal como
como ele se apresenta: difuso, múltiplo, complexo e de difícil apreensão na sua
totalidade.
O ocidente cristebranco
quis transformar o humanismo em um ideal exclusivo seu, até que o racismo, a
intolerância e o lucro, quase o feriram de morte. O humanismo não morreu, mas
foi jogado no lixo bem doente por eles nesse novo início de mais um século
cristão. Por isso podemos agora resgatá-lo e inscrever nele todas as negações a
que fomos submetidos, mas também podemos redimensioná-lo e torná-lo uma
bandeira carcomida, puída e furada, mas efetivamente universal e potente.
É nisso que estamos
trabalhando nas beiras das metrópoles dos países economicamente periféricos,
nas bordas das nações com alto poder econômico e grande concentração de poder,
prestígio e mando. Nas margens de cidades encasteladas do antigo terceiro
mundo, no limiar do terceiro milênio. Tramamos revoltas cotidianas, mesmo
sabendo de antemão das derrotas e mortes seletivas.
Augusto Cerqueira, não
é um poeta qualquer, é um visionário com delay de dois séculos passados. Chegou
atrasado nesse mundo. Por isso seus óculos podem ter sido tanto de Lampião,
como de John Lennon. Ele não foi ao funeral, mas ficou com esse pertence. Foi
um presente calculado, mas não previsível. Seu desejo de sacrifício, de morrer
pelas artes e feitiçarias, seu romantismo é maravilindamente anacrônico.
O que mantem de sotaque
não é estilo, é persistência, cajuína da infância baiana. Quando o vejo em cena,
penso num lugar que me leva, com sua voz aguda e áspera, voz de cantador
oitocentista, um Fabião das queimadas, um Lucas de Feira. Mais um blasfemo negro-mestiço ameaçando
invadir a cidade com sua viola, sua pistola e sua ira.
Uma virilidade quase
juvenil, eu diria. Mas não é fanfarronice e nem mascara neném. Veja o. Acredita
nas suas próprias palavras bastante, a ponto de poder se deixar passar por ridículo,
bebum, maltrapilho, hippie, rastafari. Antes
já via e ouvia muitos falando bem e mal de seres como eles. São
pessoas-meteoros, aparições, encantamentos. São fachos de luz, coriscos em
noites muito densas. Não entendemos seus desígnios por exercícios de empatia,
nem estudo ou pesquisa. São mistérios da
existência humana. São vidas condensadas num eterno vir-a-ser.
Agora com o lançamento
deste livro, podemos reter dele uma fotografia limpa e organizada. Isso em
contraste com sua figura humana aparentemente desleixada, apaixonantemente
estranha e rústica, imprecisa e fugidia.
Os textos periféricos
estão em busca do oceano e também de identidades. Uns são acrônimos de
autoestima, outros são haikais de territórios, outros xerocopias de antologias
consagradas, há ainda cotoveladas em pistas de corrida, bulas de existência.
Mas há também bilros pacientemente enredados, versinhos acumulados entre
guardanapos de boteco, papéis de pão e folhas soltas de cadernos escolares. Vez
em quando, distraído do show, flagro delicadezas modestas que repousam sem luz
ou brilho, hieróglifos feitos com batom, ou a lápis de sobrancelha.
O mais provável é que
daqui alguns milênios, os textos-cantigas-poemas de Augustus, sejam recitados anualmente
por celibatários desnudos em festas de Legbás. Folguedos realizados anualmente
em torno dos monumentos fálicos gigantescos, que um dia foram erguidos com
grande pompa em “pedras pisadas” longe do cais, na quebrada. Quando após o
transbordo das represas, saberemos enfim por fragmentos de textos psicografados,
desses festivais secretos de gozo e vida, nas ruínas submersas, da lendária
cidade de Piraporinha, que fica do outro lado do rio, no sentido oposto a
Pompéia.
Salloma Salomão é
músico e professor negro-periférico.
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