SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Bio-caminho

salloma Salomão Jovino da Silva, "Salloma Salomão é um dos vencedores do CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA RUTH DE SOUZA, em São Paulo, 2004. por dez anos foi Professor da FSA-SP, Produtor Cultural, Músico, Dramaturgo, Ator e Historiador. Pesquisador financiado pela Capes e CNPQ, investigador vistante do Instituto de Ciências Socais da Universidade de Lisboa. Orientações Dra Maria Odila Leite da Silva, Dr José Machado Pais e Dra Antonieta Antonacci. Lançou trabalhos artísticos e de pesquisa sobre musicalidades e teatralidades negras na diáspora. Segue curioso pelo Brasil e mundo afora atrás do rastros da diáspora negra. #CORRENTE- LIBERTADORA: O QUILOMBO DA MEMÓRIA-VÍDEO- 1990- ADVP-FANTASMA. #AFRORIGEM-CD- 1995- CD-ARUANDA MUNDI. #OS SONS QUE VEM DAS RUAS- 1997- SELO NEGRO. #O DIA DAS TRIBOS-CD-1998-ARUANDA MUNDI. #UM MUNDO PRETO PAULISTANO- TCC-HISTÓRIA-PUC-SP 1997- ARUANDA MUNDI. #A POLIFONIA DO PROTESTO NEGRO- 2000-DISSERTAÇÃO DE MESTRADO- PUC-SP. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- CD - 2002 -ARUANDA MUNDI #AS MARIMBAS DE DEBRET- ICS-PT- 2003. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- TESE DE DOUTORADO- 2005- PUC-SP. #FACES DA TARDE DE UM MESMO SENTIMENTO- CD- 2008- ARUANDA SALLOMA 30 ANOS DE MUSICALIDADE E NEGRITUDE- DVD-2010- ARUANDA MUNDI. Elenco de Gota D'Água Preta 2019, Criador de Agosto na cidade murada.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Sampa Negra: Periferia, contracultura e antirracismo


http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-content/uploads/2016/11/OBS21_BOOK_ISSUU.pdf.


http://www.itaucultural.org.br/revista/revista-observatorio-ic-n-21/

QUE CIDADE TE HABITA?
SAMPA NEGRA: PERIFERIA, CONTRACULTURA E ANTIRRACISMO

Salloma Salomão Jovino da Silva

[...] Panaméricas e Áfricas utópicas, túmulo do samba, mais possível novo Quilombo de Zumbi.
                                                                                                                                             Caetano Veloso

Estudamos a cidade negra-periférica que habita São Paulo, refletindo sobre as presenças histórica e cultural dos descendentes de africanos e sua marginalização constante no processo de modernização da cidade. Localizam-se protagonistas artísticos culturais negrxs e perifericxs para compor um novo mapa e salientar vozes silenciadas pelo racismo e apagadas frente ao elitismo cultural. Questionamos a narrativa única de matriz modernista, que ordena a história/memória oficial da cidade. E como alternativa instauramos perspectiva afro-periférica num diálogo crítico com as bibliografias afro-brasileiras no atlântico negro, em eixo hemisférico sul.
 
O otimista poeta baiano viu a cidade de São Paulo em meados da década de 1970 como um espelho que não refletia sua imagem e projetou-a como uma cidade negra, um moderno quilombo. O panorama que construo aqui é incompleto e provisório, mas, carrega em si, os contornos não retilíneos de experiência constituída de aprendizagens intelectuais, escolares e extraescolares, acadêmicas e artísticas, entre uma média cidade no interior de Minas Gerais e os arredores da capital paulista. Trato de práticas e ideias que resultaram em vivências e interpretações, leituras e trocas assistemáticas em diferentes circuitos de produção cultural e artística, educação pública a ativismo antirracista.
Este texto pode ser considerado uma versão sintética e prévia de um livro com o mesmo título a ser publicado em breve. Minhas referências para construção da pesquisa têm sido cursos, palestras, conferências e rodas de conversas que organizo e dos quais participo. Conversas várias com coletivos artísticos e parceiros de aventura. São também leituras de bibliografias sobre culturas urbanas contemporâneas, publicadas por sociólogos, semiólogos, museólogos, gestores públicos e privados de cultura, antropólogos, urbanistas, historiadores, artistas, jornalistas e ativistas.
Realizei pesquisa de campo, entrevistando pessoas e acompanhando os trabalhos criativos que envolvem grupos e coletivos de artes e linguagens múltiplas. Recolhi, sistematizei e analisei parte das suas produções e discursos por meio de publicações como: livros, revistas, fanzines, jornais, vídeos, folders, sites e toda sorte de material gráfico impresso e digital. Essa produção subjaz o corpo do texto. 
Minhas escolhas são carregadas de intencionalidade política e afinidades estéticas. Assim fui sondando narrativas e semânticas próprias do contexto e focalizando algumas cenas contemporâneas de criação e difusão cinevideográfica e plástica, literária e musical, dramatúrgica, teatral e performática. Produções múltiplas foram focalizadas desde que autonomeadas negras e ou periféricas. Tendo-se em vista ser passado o tempo em que o pesquisador, do alto do seu saber autorizado, classificava e ordenava sem contestação das identidades por parte daqueles que estudava.
Também chequei instituições culturais públicas e privadas, observando seus discursos e práticas, seus métodos e conceitos. A metodologia da pesquisa básica tem consistido em aproximar os ouvidos dos silêncios e ruídos, dar atenção aos traços de desenhos que, de tão finos, parecem invisíveis e apalpar objetos de memória quase intangíveis, de tão negligenciados pela cultura dominante.
De posse dos dados analíticos, tenho buscado mostrar as tensões e deslocamentos atuais. Para isso, sempre que posso, saturo de perguntas consideradas incômodas as meganarrativas hegemônicas. Intenciono esgarçar até o limite as telas canônicas que encobrem os olhos dos naïfs e dar a ler textos mal-intencionados. Meu objetivo final é elaborar sínteses compreensivas de aspectos estéticos e históricos, étnicos e políticos, sociais e culturais, considerados fundamentais nesses projetos e assim desvelar estratégias e visões de mundo, colaborações e potencialidades, conflitos e fragilidades, desejos e utopias na dinâmica sociocultural e política na metrópole paulistana[1].
A web permite acessar conteúdos cada vez mais completos e complexos em vários assuntos e plataformas, mas principalmente imagens históricas e sons e músicas fora de catálogo para meu deleite. Posso dar aos parceiros uma ideia geral sobre o que estamos elaborando mediante leituras solidárias e testar hipóteses sobre comportamentos digitais. Além de ser uma boa plataforma da autopromoção é uma ferramenta relativamente barata de evidenciar aquilo que efetivamente fazemos, mas que, muitas vezes, morre no vácuo.
Entretanto, na rede, questões políticas importantes podem terminar facilmente em afrontas pessoais, delírios de egos e brigas inócuas, mas rebocadas de erudição sociológica. Conquanto também veicula ideias instigantes e úteis que deslocam a percepção para coisas não percebidas antes, favorecendo o contato direto em encontros presenciais ou trocas de afetos digitais. Sinto sua positividade em vários aspectos, evitando o seu lado de simulacro, quando, certas postagens e fotos de vidas, estranhamente coloridas, parecem bem mais virtuosas que as relações afetivas e sociais construídas com ausências e solidariedades históricas.
Há mesmo uma espécie de euforia comunicativa que também me arrebata, e eu a retroalimento, mas não sei se é remédio ou compensação para essa falta de tempo para acarinhar os amigos e gentes queridas. Confessando-a alimento contra uma solidãozinha progressiva, uma dor pequena, mas corrosiva. Lenitivo para insônia ou compensação para necessidade de trabalhar cada vez mais e receber cada vez menos. O tempo que sobra, eu durmo e às vezes sonho. Esse texto tem tudo a ver com os devaneios. Algumas das pessoas que abordei constituem coletivos e grupos culturais[2].
A rede me permitiu entender muitas de minhas limitações e possibilidades comunicativas. Devo a ela essa assunção, tornar efetivamente compreensível minha caminhada nesse quadrante da esfera. Fiz-me com e sem lamento, mas sem autopiedade. Um intelectual preto, educador público e artista periférico. É isso que soul.
No campo das artes negras e periféricas, minha gratidão ao escritor, poeta, pesquisador e educador Allan da Rosa; à artista plástica e professora Renata Felinto; à educadora e atriz-cantora Naruna Costa; ao ator e pesquisador Márcio Castro; ao coreógrafo Firmino Pitanga; aos poetas Sérgio Vaz e Márcio Batista; à professora e coreógrafa-antropóloga Luciane Ramos; ao músico, ator e produtor Euller Alves e ao produtor cultural Josiel Medrado. Especialmente devo à Cia Capulanas de Artes Negras, Cooperifa, Sarau do Grajaú, Coletivo Negro, Sarau da Ponte pra Cá, Sarau Perifatividade, Sarau do Binho, Cia de Teatro os Crespos, grupo Dança Movimento Contínuo, Companhia de Teatro Clariô e à Esquina musical[3].
De certa forma esta escrita ainda reflete a aprendizagem dialógica com professoras da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade de São Paulo. Devem culpá-las e também meus manos e manos feitos na lida, Rafael Galante (USP), Nirlene Nepomuceno (UFBA), José Carlos Gomes da Silva (Unifesp), Maria Odila Dias e Antonieta Antonacci (PUC-SP), Maria Cristina Wissembach e Marina Mello e Souza (USP). Se eventualmente meus leitores perceberem neste trabalho, quando não pude esconder vícios da escrita e retórica acadêmica, mal-aprendidas nesses anos de treinamento escolar intensivo, não cismem muito. Garanto que sou o único corresponsável por tudo que penso, falo e escrevo.
Por ser São Paulo a cidade mais rica e luxuosa do país é também, por contraste, aquela onde as iniquidades se pronunciam de forma mais radical e aguda. Mas isso depende muito de onde você a vê.
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) tem sido uma das mais importantes instituições corporativas patronais do país. De suas fileiras saem funcionários de agências internacionais, ministros, governadores e secretários de estado. No começo da década de 1990, reuniram-se em Curitiba jornalistas e intelectuais, políticos e sindicalistas para discutir uma nova visão de cidadania para um país recém-saído da ditadura civil militar. Júlio de Mesquita Neto foi jornalista e proprietário do jornal O Estado de S. Paulo. O poderoso “Estadão”, considerado por uns máquina de ideologia retrógrada, e, por outros, um modelo de empresa familiar de comunicação. Mesquita Neto, demagogicamente vaticinava:

Ser cidadão não é só fugir da pobreza do campo e se abrigar na miserável periferia das inchadas e violentas metrópoles brasileiras de hoje em dia [...]. A cidadania de primeira classe é a exigência que todo brasileiro, sem distinção de credo, raça, classe social, precisa fazer para se considerar perfeitamente integrado ao mundo livre e civilizado, que está sendo construído neste século XX[4].      

Nossas elites têm uma visão bem definida do que seja, ou não, cidadania aplicada ao contexto da sociedade brasileira, mas têm feito das “tripas coração” para manter privilégios seculares, tidos como direitos especiais, ou condicionado a participação social e política mediante as circunstâncias. As regras democráticas e republicanas não são obras do acaso, mas utilizadas conforme o contexto.
O renomado historiador José Murilo de Carvalho, no mesmo evento realizado em Curitiba, referido a pouco, mencionou a permanência da prática do castigo físico em âmbito doméstico, mas também o uso recorrente da violência contra as classes subalternas. Contrapunha: “A prática ainda comum no país inteiro dos maus tratos e mesmo da tortura contra presos comuns por parte da polícia reflete sem dúvida esta tradição escravista negadora dos mais elementares direitos civis”[5].    
O município de São Paulo, onde fica a sede da Fiesp, que detém a maior arrecadação tributária, poderia ser também o lugar onde se oferecem os melhores e mais abrangentes serviços públicos e também onde a cidadania democrática e republicana se expressasse verdadeiramente. Isso, se a classe política local exercesse suas atividades marcadas por padrões éticos razoáveis. Mas não, por décadas a fio, a coisa pública paulistana tem sido presa da gatunagem, da expropriação e do descalabro.
Recentemente foi repatriada parte dos recursos financeiros desviados para contas em paraísos fiscais durante as gestões Maluf (1993-1997) e Pita (1997-2001), e esses não são casos únicos. Milhões de reais surrupiados em forma de propina de uma única obra, a construção da Avenida Roberto Marinho, implantada sobre o córrego Águas Espraiadas, cujos esgotos subterrâneos deságuam na sede na Rede Globo São Paulo, limites das zonas Sul e Oeste.
Podemos pensar sobre a “miserável periferia inchada”, citada por Júlio de Mesquita, como a favela arribada dali da Zona Sul para que a Avenida Marinho brotasse. Moradias precárias que se estendiam desde o Rio Pinheiros, atravessando toda a parte baixa da Vila Santa Catarina, os fundos alagados da Cidade Ademar e alcançavam o município industrial de Diadema. Subdividia-se para leste e oeste, mudando de nome e fazendo curvas sobre brejos e beiradas de córregos.
Na parte designada Canão, perto do Buraco Quente, viveu e morreu Sabotage, o anti-heroi da segunda geração hip hop[6]. O córrego morto da Zavuvus corre no mesmo sentido, do outro lado do morro da Vila Santa Catarina. Gestão após gestão, os escândalos de apropriação privada do bem público nos dão apenas uma medida da sua normalização e regra, algo que podemos chamar de “negócios da corrupção estatal”.
A cidade abstrata poder ser um conjunto de regras aos olhos dos legisladores, números para demógrafos, traçados geométricos para urbanistas, categorias de consumidores para os comerciantes e um grande enigma para seus moradores. Flagrar e compreender concretamente a rua, o bairro, a região e a cidade é desvelar a nossa própria existência nela e para além dela, daqueles com os quais convivemos no tempo da construção social daquilo que chamamos vida. 
Milton Santos[7] (2009) ao estudar a cidade de São Paulo é quem denomina Modernidade Perversa nosso padrão de inserção no mundo contemporâneo e indica que nesse modus existe associação intrínseca entre miséria e abastança, e que ela pode ser desvendada. “Portanto, a modernização de atividades é simultânea à expansão de formas econômicas menos modernas que abrigam uma parcela da “pobreza” urbana, permitindo a existência de um setor econômico diferenciado do setor do grande capital”[8].
A modernidade brasileira combinou tecnologia, cultura artística, políticas urbanas, industrialização, mas não abriu mãos de velhas formas de colonialismo interno, no trato com as populações pobres, indígenas e negras[9]. Embora socialmente situados ao lado dos brancos pobres, nossa condução tem especificidades que não podem ser anuladas, justamente pela longa duração e historicidade dos racismos antinegro e anti-indígena. Os tataranetos dos paulistas quatrocentos sequestraram para si a ideia de modernidade europeia, aproveitando que seus pais e avós haviam feito fortuna, combinando tráfico clandestino, escravismo altamente racionalizado e plantation. Nossa concepção nacionalista de modernidade tem essas matrizes: patrimonialismo, escravismo e racismo.
No Brasil, as instituições canônicas modernas[10], quais sejam, os sistemas culturais, políticos e jurídicos, os sistemas de comércio e escolares nacionais no século XX, sobretudo, ou pelo menos a partir da década de 1930, tomaram os valores modernistas europeus como base discursiva para gestar uma nova percepção de estado-nação e suprimiram qualquer possibilidade de diversidade. Também sondaram as possibilidades de inserir o país, como protagonista nas dinâmicas geopolíticas mundiais.
Ao mesmo tempo em que parte das lideranças políticas e culturais sonhavam quase secretamente com essa nova sociedade, capaz de corresponder à fotografia econômica-cultural germânica ou estadunidense, nossa intelligentsia dava tratos às teorias sociais importadas para alcançar uma meta traçada no século XIX: uma sociedade plenamente ocidental na cultura e racialmente branca na “raça”. A mestiçagem coordenada seria, então, um estágio inevitável[11].
Chamamos colonialismo interno porque não se tratava mais de um projeto de mudança imposto de fora para dentro, da metrópole para a colônia. Giralda Seyferth (1996), estudiosa da imigração e da colonização, traça uma breve e excepcional genealogia da formação do estado-nação no Brasil e das políticas de imigração seletiva, que, no jargão político do ativismo negro e antirracista, tem sido definida como uma das fases do “projeto de branqueamento” [12].
Os fazendeiros paulistas não apenas lucraram largamente com a escravidão de plantation e o controle do estado monárquico, como também assumiram a dianteira na batalha pela abolição da escravatura e contra o império. Quando pensamos em São Paulo, não podemos perder de vista essa capacidade de mudar sem mudar ou de reformismo reacionário das suas elites[13]. 
Segundo Santos (2009), já nos anos 1980, São Paulo rivalizava com a antiga capital do império escravista em vários tópicos da produção cultural e científica rapidamente passando-lhe à frente em números de empresas publicitárias:

São Paulo por suas três universidades estaduais, e sobretudo pela Universidade de São Paulo, representa muito mais da metade de toda pesquisa científica produzida no país, em todos os campos do saber. [...] Era em São Paulo onde se encontrava, em 1985, o maior número de editoras de livros e folhetos. Pode-se, em consequência com base em sua força econômica e nas relações cada vez mais íntimas entre economia e cultura, admitir que São Paulo esteja se tornando, igualmente, metrópole cultural? [...] A publicidade ilustra bem a ideia de polo mundial: São Paulo é centro difusor de interesse publicitários de inúmeras marcas e firmas internacionais[14].
    
Sim, os filhos dos fazendeiros-burgueses paulistas criaram tal instituição exemplar citada por Santos, com objetivo confesso de preparar as novas elites para o mando. Milton Santos, considerado um forasteiro naquela instituição, sentindo-se cansado, ao fim dos dias resumia:

Os ditos chefes de escola na USP sempre foram chefes políticos, que não precisam ter um corpo de ideias para poder se afirmar, pois tinham poder de nomear, até quando podiam, até 1968. Isso não é algo que se pode atribuir ao sistema de cátedra. [...] O que ele faz é produzir um círculo de aderentes, mas não de discípulos [...]. Em outros lugares você tem vergonha de fazer coisa igual. Nos Estados Unidos, a mobilidade é regra dentro das universidades. Elas não aceitam o seu próprio aluno imediatamente. Ele tem de circular e não pode fazer carreira inteira como acontece aqui na USP, que é uma espécie de família; é considerado normal o menino entrar na Escola de Aplicação e sair reitor. Sabemos que não adianta querer participar de boa parte dos concursos, porque eles são para tais e tais pessoas que já estão lá[15].

                Santos teve experiência de pesquisa, visibilidade e prestígio internacional por conta da sua atividade professoral e de pesquisa fora do país. No Brasil, ao contrário, deparou-se constantemente com preterimentos e depreciação intelectual. Silenciou-se pelo fato de pertencer à geração da dor em segredo, para qual, admitir as práticas racistas interpessoais e institucionais, era considerado demonstração de fraqueza ou de vitimização. Chegou à África pela primeira vez no início da década de 1960, antes do golpe civil militar, e lá teve acesso aos revolucionários descolonizadores. Após o golpe no Brasil, foi encarcerado por um período de 100 dias. Ao sair sob condição de prisão domiciliar, contou com amigos e políticos conservadores para fugir e exilou-se na França, onde lecionou.
Atuou na Universidade de Columbia (EUA), esteve à frente da criação e instalação do primeiro curso de geografia no continente africano, na Tanzânia. Sua leitura sofisticada, mas não direta das formas de manutenção do prestígio e poder acadêmicos, sugere ter ampla analogia com as denúncias do racismo antinegro dos movimentos negros brasileiros.
Podemos abordar seus deslocamentos no mundo acadêmico e no território da diáspora como estratégia afro-atlântica, à medida em que reflete outras narrativas de viagem de outros tantos descendentes de africanos dentro e fora do Brasil. Seu saber técnico acadêmico pode perfeitamente ser contabilizado como contribuição tecnológica própria ao atlântico negro, e sua crítica ao corporativismo racial elitista da academia paulista, como um vetor no embate contra-hegemônico e antirracista.   
São Paulo é atualmente o mais rico mercado de cultura, lazer e entretenimento do país, cujo custo individual de um espetáculo ou evento da moda pode alcançar até dois salários mínimos. Não é incomum espetáculos por 500 dólares. Um contingente razoável de pessoas estimuladas paga alegremente para consumir tais serviços. Em nome do status ou do sentimento de alta exclusividade, palacetes e prédios de luxo vendem festas, shows, eventos gastronômicos e corporativos e espetáculos cult em salões vips. Pessoas que sem tocar o chão levitam sobre a cidade. Jovens rastas definem a cidade-ilha-lívia: Babilônia.
Dentro da cidade, mas nas margens externas dos rios, os eventos culturais periféricos denominados saraus têm uma história multifacetada, controversa e épica. Atualmente há um sem-números de atividades realizadas nos mais diversos pontos da periferia da cidade e também nos municípios do entorno. O dramaturgo Marinho Pazzini, falecido diretor do grupo Clariô de Teatro, contou-me uma versão sobre sua origem que talvez não possa ser considerada muito edificante para alguns membros atuais dessa modalidade cultural.
Segundo Marinho, ao final dos anos 1970, jovens atores periféricos, que tinham poucas alternativas no mercado cultural da metrópole, eram convidados por senhoras da elite para animar suas tardes de chá inglês, recitando poemas e fazendo modestas performances. Eles usavam “clássicos” da literatura e dramaturgia nacional e “universal”[16].
Os saraus artístico-literários cresceram de tal forma que, no ano 2015, o Sarau do Binho[17] organizou na região de Campo Limpo o que pode ser considerado o maior evento de literatura periférica do país. Congregaram na praça central do bairro mais de 100 editoras independentes e durante três dias e três noites debateram os circuitos alternativos de criação, produção e circulação de livros artísticos e criativos no país. Os desafios principais dos saraus têm sido principalmente romper os limites de invisibilidades impostos pelo mercado livreiro tradicional e criar formas alternativas de circulação da produção.
Contudo, o desafio maior da produção literária periférica e negra, a meu ver, situa-se no campo político e estético. Aos criadores resta entender se tais produções têm sido reprodutoras dos valores da cultura literária dominante e, nesse caso, assumido a condição de uma subcultura. A partir daí, admitir que anseia simplesmente ser incorporada aos circuitos da elite. Ou, em sentido contrário, fomentar a cisão político-estética e inaugurar efetivamente outro campo criativo. Nesse caso, negritude e periferia não são apenas retóricas de identidade e lugar mas perspectivas de origem e destino, fontes de conteúdo e forma.
Paulo Lins[18] é certamente um dos escritores mais prestigiados do mercado editorial brasileiro contemporâneo. Não há duvida de que, quanto à forma, sua escrita colocou em cena um mundo social ofuscado pelos estigmas recorrentes de miséria, violência e racismo. Diferente de Carolina Maria de Jesus, Lins experimenta com justiça e em vida a visibilidade, o prestígio e o trânsito socioespacial pouco comum aos criadores culturais negros e periféricos no Brasil.
As culturas musicais e literárias urbanas brasileiras produzidas e relativamente evidenciadas dos anos 1990 para cá têm tematizado e sido produzida por pessoas advindas de favelas, subúrbios e periferias não apenas do Sudeste. Considero que Ilê Ayê, Racionais, Chico Sciense e Ba Kimbuta, assim como Paulo Lins, Sérgio Vaz, Ferrez, Allan da Rosa e Jenifer Nascimento, levando-se em consideração tempos, modos e paisagens, podem ser entendidos como cenas de um filme longo, fragmentado e de difícil interpretação. Um filme sonoro, uma cacofonia emocionante. Uma película inédita e de epílogo incerto cuja diretora é a história. Essa deusa conhecida e estranha que não sabemos a origem e nem compreendemos os desígnios.  
Numa segunda-feira, dia 13 de abril de 2015, Paulo Lins fez uma visita surpresa ao Sarau do Binho em Taboão da Serra. O sarau é ambulante mas faz algumas paradas, sendo realizado também no Espaço Clariô de Teatro. Lins estava bem descontraído e, provocado por Binho, contemplou a todos com uma explanação livre e muito interessante de sua experiência como escritor e nos deu alguma ideia da percepção que tem de história e cultura e sobre a sociedade brasileira atual.
Entre outras coisas contou que, ao ser interpelado por um canal de televisão estrangeiro a respeito de sua condição, de ser o único negro em um grupo de 40 escritores brasileiros, selecionados para a Feira do Livro de Frankfurt na Alemanha, respondeu não ter notado ou pensado sobre o fato. Contudo, ao fornecer dados de sua biografia, situou importância sociocultural dos morros e favelas cariocas e enfatizou a “Pequena África”[19] como parte do imaginário que influencia sua vida e obra. Após confidenciar que morava em São Paulo havia um ano, encerrou a conversa com um belo e emocionado poema em homenagem a sua mãe.
Há entre nós, na periferia Sul, um poeta muito bacana que quer criar a Academia Periférica de Literatura. Não considero impossível imaginar no futuro Paulo Lins talvez como o segundo escritor negro e o primeiro autodeclarado na prestigiada instituição: Academia Brasileira de Letras. As populações negras impedidas de frequentar as escolas reservadas aos brancos médios, desde a década de 1920, designam suas criações culturais destinadas à performance pública, “escolas e academias”. Academias e escolas de samba, trata-se de ironia fina ou simples imitação?   
A escrita ocidental foi sequestrada e transformada em tecnologia de combate contra a desumanização de escravizados africanos. Um dos mais antigos textos dessa saga foi escrito por Olaudah Equiano[20]. Um ioruba, que viveu na América, lutou e morreu na Inglaterra no final do século XVIII.
Muito cedo, textos técnicos, administrativos, comerciais e diplomáticos em português arcaico e latim foram produzidos por centro-africanos ante aos contatos coloniais[21]. Alfabetizados negros surrupiaram as técnicas de escrita musical dos eruditos brancos e produziram cultura musical negra e erudita no Brasil, desde fins do século XVII.
Acompanhando nosso atlântico negro sul podemos mesmo dizer que os textos abolicionistas de homens e mulheres negras que circularam no mundo consistiram na primeira forma literária singularmente negra, confeccionada com utilização da grafia ocidental, e tinham cunho artístico inegável, assim como objetivos políticos confessos.
No Brasil atual as mais altas taxas de analfabetismo são verificadas entre os pardos e negros. A exclusão escolar é fato inconteste, e o racismo antinegro, como sistema de controle, tem uma função especial nesse quesito. A modernidade não existiria como conhecemos, sem a expansão exponencial da escrita e da leitura, mas também das restrições do acesso a elas. O racismo antinegro não seria tão eficaz no Brasil, não fosse a exclusividade de escolarização média e superior dos eurodescendentes.
Quem lê no Brasil? O que se lê no Brasil atualmente?
O movimento dos saraus tem gestado um novo mundo de leitores e escritores nas periferias brasileiras. Aqui e acolá, pessoas e coletivos indicam a existência efetiva de uma nova cultura escrita apropriada por novos agentes sociais, cuja escolarização formal começa a atingir o ensino médio completo. A faixa composta de novos e desconhecidos leitores desenvolvem hábitos de consumo cultural pouco compreendidos, e até desconsiderados enquanto tal, inclusive pelos produtores e livreiros periféricos.
Esse mercado de consumo de livros faz circular obras, contraideologias, temas e materiais ainda não capitalizados pela indústria cultural. Até quando?         
Algumas questões cruciais são: Até que ponto os produtores culturais marginais, negros e periféricos estão produzindo valores culturais efetivamente novos e anti-hegemônicos e até onde buscam simplesmente estratégias para serem incorporados pelas estruturas institucionais da cultura dominante paulistana e nacional? Até que ponto esses produtores têm consciência ou não do abismo social e cultural que distinguem e separam os setores negromestiços e subalternos em relação às classes médias e altas dentro da sociedade brasileira? Até que limite suas criações tomam esses mundos apenas como conteúdo, mas não como forma? Periferia é um lugar de enunciação ou há efetivamente uma estética específica?
Diferente da produção de Paulo Lins, a criação e circulação periférica de literatura não conta com nenhuma estrutura profissional de propaganda e difusão. Talvez de fato nem possa ser designada mercado nos termos em que trabalha a indústria cultural livreira. Exceto um ou outro poeta ou escritor consegue transpor a geografia dos saraus e estabelecer diálogos e padrões de vendagem “autossustentáveis” e continuidade criativa. Entretanto, é possível visualizar um quadro futuro em que a leitura e escrita criativa não sejam mais privilégio de classe e raça, exotismo ou rara exceção no Brasil.
Tenho coletado dados e impressões sobre dois diferentes tipos de frustração entre criadores de teatrais negros engajados, por exemplo, quando buscam em vão o reconhecimento de suas obras pela crítica teatral convencional e pelo setor profissional a que pertencem. Por vezes, não conseguem compreender que o sistemático desprezo que suas criações sofrem, se deve-se tanto ao inusitado do seu lugar e perspectiva, como a uma violenta reação do meio cultural hegemônico em que , onde suas produções teimam serem inscritas.
Um setor social e profissional que não admite a ideia de concorrência advinda de fora do círculo, por isso incluem tais produções como algo de menor valor ou as denunciam como alienígenas, estigmatizando-as pelo fato de não se enquadrarem nos padrões “normais” de criatividade e fruição.
Avisado por Guerreiro Ramos sobre o papel da autofagia entre nós, não podemos mais alegar ingenuidade. Também estamos bem atentos à complacência estética e paternalismo político, social e cultural enraizados nesse padrão de sociedade que herdamos. Como podemos construir um modelo interno de crítica capaz de estimular a criatividade, fomentar a visibilidade e buscar a unidade política que necessitamos para suplantar a hegemonia da branquitude[22]?   
A indústria do desejo tem proeminência na breve São Paulo, mas seus famosos outdoors foram substituídos paulatinamente por TVs de metrô e ônibus. Quais as imagens de São Paulo? Depende de quando, como e por onde você entra na cidade. Quero dizer, que veículo se penetra na cidade. Quais sentidos mobilizamos para apreendê-la desde os primeiros contatos. E principalmente como nos deslocamos nela, sendo dia ou noite. Quais partes dela acessamos?
A suposta identidade paulistana não é muito antiga, mas, vigorosa, porque desde a chamada Revolução de 1932, e talvez dez anos antes, vem sendo tecida de fios finos de memórias reais e invenções ficcionais incríveis. Cidade arte pública[23], cidade monumentos[24], cidade projeto arquitetônico[25]. Involuntariamente, eu e Milton Santos contribuímos para alimentar essas texturas. Com nossos desejos e interdições alimentamos os discursos sobre os aspectos superlativos da cidade-cenário.   
Diferente de nós, a fotógrafa e produtora cultural Sheila Signário registra crianças sem teto. Em meio à violência desproporcional, as existências frágeis e erráticas, novos nomadismo. Ela sente-interpreta imageticamente a cidade aos olhos de infantes sem chances. Os fotógrafos Wilson Cortez e Guma Galina também têm realizado registros visuais inéditos, formando um belíssimo acervo fotobiográfico das beiras. Criam poesias visuais derramadas e épicas, imagens trespassadas e dramáticas de tudo que transborda vida urgente: música, cotidiano e beleza, teatros sem palco e dança. Panorama aberto e fluido das efêmeras cenas culturais periféricas. Em conjunto tramam e constroem uma contra contracultura imagética em que pululam negros e negras, seres periféricos. Dinamicamente criativos são criadores e personagens recriados visualmente. Cidade-texto negra de becos e vielas em contraposição aos jardins de alamedas alvas e arborizadas.
Por décadas, nas zonas pobres da cidade, as hordas de jovens negros e pobres perderam seus campinhos de várzeas para obras públicas. Sem choro nem registro. O fotógrafo, editor e videomaker Cassimano Nanau roda por ali, de câmera em punho, a partir do limítrofe sudoeste, Jardim Jaqueline. Vem fixando digitalmente o pouco que ainda escapou dessa determinação da política urbana. Terminais de ônibus, unidades básicas de saúdes, hospitais regionais e creches vão surgindo onde antes existiam os únicos espaços de lazer na periferia. É essa modernidade urbana tosca, perversa ou nada.
Quem são esses coletores de almas, passados e horizontes? Helder Girolamo, Alex Ribeiro, Grazii Ribeiro, Douglas Arruda, Ivan Lino? Você curador oficial os conhece? Viu algum catálogo de capa dura deles, com emblema de empresas mineradoras, secretarias ou ministérios?
Uma casa de cultura semiabandonada, aqui e ali um Centro de Educação Unificada (CEU), uma Fábrica de Cultura ou uma unidade do Serviço Social do Comércio (Sesc). Isso que tem sido capitalizado como “política cultural” nas propagandas das campanhas eleitorais dos candidatos aos cargos públicos. Marketing sem desfaçatez nos períodos que antecedem os pleitos municipais e estaduais. Cultura, arte e lazer para quem?
Desde os anos 1970, a pasta de Cultura foi separada da pasta de Higiene. A cidade teve em três tempos três atores e homens de teatro na pasta da Secretaria Municipal de Cultura. A partir da década de 1970: Sábato Magaldi, Gianfrancesco Guarnieri e Celso Fratesch. Por lá só passaram: músico, poeta, jornalista, filósofa, dois sociólogos, um urbanista[26]. Estes últimos formados na USP.
                                                      
A filósofa Marilena Chauí, professora da USP, assumiu o posto de Secretária Municipal de Cultura no primeiro ano de governo Luiza Erundina, quando esta pertencia ao Partido dos Trabalhadores. Introduziu uma inovação administrativa ao implantar um sistema de Casas de Cultura, em antigos prédios desativados das administrações regionais (atuais subprefeituras) da cidade. Durante os anos de sua gestão ampla movimentação cultural foi registrada nas periferias, com aparecimento e relativo reconhecimento de um conjunto de práticas e expressões culturais novas de setores pobres e periféricos. Naquele contexto, a definição recorrente era cultura popular. O que escapasse era catalogado como Cultura de Massa.
Grupos de teatro, música, dança, literatura, circo, cinevídeo encontraram refúgio provisoriamente nas 13 Casas de Cultura[27] espalhadas nos extremos da metrópole. Era acolhimento e espaços para ensaio, criação e circulação de suas produções. Contudo, os equipamentos públicos centrais continuaram a ser utilizados nos mesmos padrões anteriores de favorecimento e corporativismo, principalmente pelos chamados “corpos estáveis”[28] e pelas empresas de entretenimento, devidamente “cadastradas” e inseridas nas formas institucionais de fruição artística.  
Independe da política cultural dessa ou daquela gestão, as presenças negras citadinas são fatos socioculturais já flagradas por alguns olhares e gravadas em registros esparsos, mas consistentes pelas musicalidades e literaturas negra, marginal e periférica. Nem sempre a memória oficial da cidade se dá conta de que africanos e seus descendentes a estejam fabricando. Desde a formação do modesto burgo, circulando inclusive no centro. Conhecemos melhor suas bordas e margens. Cruzamos biqueiras, pinguelas e pontes. Morrendo nas avenidas e alamedas bem limpas da cidade como operários e só? Até quilombos urbanos os negros paulistas vivenciaram na formação da metrópole.
A cidade hegemônica se dá conta da sua presença somente quando a tensão sai do nível do racismo pretensamente cordial. Quando a tensão latente eclode. A desigualdade produz um tipo de legitimidade discursiva que na maioria das vezes se referenda na noção liberal de competência e igualdade jurídica formal. Saudosos somos de uma Chauí questionadora e contundente dos anos 1980. Tratando da questão do silêncio e poder cultural, ela salientava:

Quando examinamos as precondições que dão direito a alguém para agir, falar e ouvir descobrimos que esse direito é dado apenas para aqueles que possuem os conhecimentos científicos, técnicos, artísticos e filosóficos estipulados pelos dominantes; faz , fala e escuta quem “sabe” e possui “cultura”. O resto obedece porque é incompetente. O mito da “competência” significa simplesmente um enorme processo de uso de uma certa cultura para excluir da ação social, política e cultural e do discurso do conhecimento todos aqueles que foram economicamente e politicamente excluídos. Pela “competência” se realiza a invalidação social, política e cultural dos “incompetentes”. Ora, quem em nossa sociedade é o incompetente por excelência, senão os trabalhadores, as mulheres, os negros, os índios, os homossexuais, os jovens, as crianças, os velhos?[29]               

Após a implementação mal-acabada do sistema de casas de cultura, talvez seja provável que a maior inovação política cultural na cidade e no estado tenha sido a regulamentação do financiamento público da criação, produção e circulação artístico-cultural, por meio do sistema de fomento. Qual seja, um regramento de apoio financeiro a grupos e indivíduos via licitação pública, sempre condicionada à contrapartida. Mas, ainda assim, grupos identificados com estéticas artísticas hegemônicas denominadas universais, introduziram em alguns editais, cláusulas impeditivas quase imperceptíveis, que criam barreiras intransponíveis às estéticas emergentes e aos grupos culturais periféricos ou divergentes.       
Medrando sob a velha e nobre São Paulo, encontramos a teimosa Sampa Negra nos poemas, textos jornalísticos e memórias de Luiz Gama[30], nas pinturas e falas de José Correia Leite transcritas por Luiz da Silva Cuti (1992)[31], na poética de Lino Guedes e nas polifonias literárias prefiguradas pelas várias edições do Grupo Quilombhoje de Literatura Negra. Atualmente podemos senti-la pulsar nas edições radiofônicas e impressas da Toró, editora concebida pelo poeta, ensaísta e pesquisador Allan da Rosa. Essas contraculturas negras e periféricas paulistanas são nossas locomotivas para a modernidade negada.
Outras memórias e histórias negras vão se configurando, à medida que prospectamos novos e velhos materiais, ideias, canções, poemas, imagens e textos. Montamos cenários de possibilidades interpretativas, como quebra-cabeças de tempos, geografias e figuras humanas. Vai se confirmando que, ao ativismo negro brasileiro e paulistano, as artes engajadas têm sido fundamentais na construção de jogos de contraste e alteridades. No deslocamento dos dispositivos de poder[32] e instauração de outras relações, mas, nem por isso, mais equilibradas. Ainda.
Entendendo que quem define sua arte como negra sabe o risco que corre, mas quer intencionalmente enfatizar a especificidade e diversidade cultural da ascendência africana. Isso significa colocar intencionalmente em evidência visões de mundo que dialogam com a cultura ocidental contemporânea, mas não podem ser completamente incorporados, nem refletidos por ela sem tensão.
Os críticos desinformados gritam que isso é essencializar ou mitificar a África. Esquecem que durante os dois últimos séculos quem inventou e inventariou as raças foram os intelectuais ocidentais. Quem transformou a raça em categoria social fundamental para conhecimento da diversidade humana, definitivamente hierarquizada, foram os filósofos e cientistas ocidentais. Também foram eles a definir o fim de sua validade. Diferente do que se deu no ocidente, ninguém aqui está reivindicando a superioridade racial dos negros, mas as singularidades culturais das civilizações africanas e seus desdobramentos na diáspora.
De fato, a África tem funcionado aqui, em muitas circunstâncias diaspóricas, como princípio civilizatório organizador de imaginários, discursos e recursos. Não se trata de continuidades mas de reinvenções. Em outras palavras, elaboração[RB1]  de narrativas alternativas a “historia única” do mundo, como indica a escritora Chimamanda Adiche[33].        
Essa reivindicação de pertencimento surge a partir de lugares, situações, sensibilidades e princípios civilizatórios absolutamente distintos, embora provocados pelo mesmo movimento da expansão econômica e cultural do ocidente. Seus resultados culturais, políticos e estéticos também são e só podem ser de outra natureza. Nesses casos, a África é uma inflexão temática e conceitual oportuna e necessária; revela perspectiva e prospecção e é simultaneamente passado revisto, presente reposto e futuro antecipado.
Num passado recente, alguns descendentes de africanos desconfiavam das imagens de selvageria e barbárie do passado. Outros hoje o fazem com a retórica de caos e desesperança projetados pela mídia sobre o continente africano. Rebouças reteve da África uma ideia de futuro da humanidade[34]. A inviabilidade da África no mundo contemporâneo parece significar, por conseguinte, a inviabilidade também dos afrodescendentes espalhados pelo mundo.
Capulanas é o nome escolhido por jovens atrizes negras para dar materialidade à sua Companhia de Artes Negras. Trata-se nominalmente das protagonistas de seu próprio enredo: Débora Marçal, Priscila Preta Obaci, Adriana Paixão, Carol Ewaci e Flávia Rosa, todas oriundas de grupos culturais e artísticos que surgiram e atuam na Região Sul, na periferia de São Paulo nos últimos dez anos.
Movidas por um desejo insaciável de aprendizagem e revisão estética, atravessaram as fronteiras do teatro, da dança-afro e das musicalidades negras para instaurar dramaturgia e performance autoral nas periferias da cidade. A pesquisa tornou-se uma palavra de ordem e tem ditado o ritmo dos trabalhos e das apresentações. Por isso, para quem as assiste de tempos em tempos fica com a impressão imediata de constante refazer-se, mas, muito mais que isso. Seu último espetáculo, Sangoma, em que repertoriam experiências de curas, a partir de medicina tradicional africana, tendo-se em vista a saúde das mulheres negras, principais vítimas do racismo aplicado a campo do saber médico como sistema de controle racial antinegro. A saúde mental foi a medida mais saliente e eficaz contra os inadequados, mas não faltou projeto e práticas de esterilização massiva.    
Capulanas é ação e reflexão contínua, superação de limites sociais e artísticos, revisão de conceitos e depuração dos dramas pessoais e tudo isso sempre no sentido da sofisticação do conteúdo em foco, do aprimoramento técnico, textual e interpretativo. O grupo tem uma base técnica composta também por homens negros jovens, que perseguem os mesmos objetivos, mas há uma singularidade firmada nas experiências socioculturais das mulheres negras do passado e do presente que o define e coloca sua cara no mundo.
 Originalmente é uma palavra de origem no tronco linguístico bantu (línguas definidas pelos pesquisadores como nigero-congolesas), especificamente pertence ao subgrupo linguístico tsonga que é falado na costa leste da África por quase 3,5 milhões de pessoas em Moçambique, Zimbábue e Suazilândia. Capulanas por aquelas bandas é o nome que se dá a um tecido utilizado pelas mulheres para cobrir a parte inferior do corpo, uma espécie de canga. Ocasionalmente, cumpre papel de sobressaia podendo ser também jogado sobre os ombros como xale, turbante, anteparo de objetos levados à cabeça ou ainda as mães os usam para transportar os nenês às costas. No passado, era produzido artesanalmente, mas desde o século XX passou a ser industrializado fora da África e comercializado por lojas e ambulantes nas feiras dos centros urbanos.
Capulanas soma-se, pela temática, a outros grupos teatrais que tomam as questões culturais, raciais e étnicas negras como feixe para daí extrair filigranas de negritudes variadas. Esse é o caso do Coletivo Negro, Os Crespos, Teatro Popular Solano Trindade, Quizumba, entre outros, em São Paulo e arredores.   
Num sentido, vislumbramos as biografias e criações estético-poéticas, mas também os textos jornalísticos e técnicos produzidos em diferentes âmbitos por figuras de abolicionistas negrxs como Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Teodoro Sampaio e Manuel Querino, entre uma centena de nomes. Evocando Frantz Fanon[35] em sua exegese dos efeitos sociais e psíquicos racismo do antinegro, também devemos nos preparar do ponto de vista de uma ética intelectual negra, capaz de por foco sobre contradições e equívocos, ambiguidades e ansiedades humanas, as quais, nós negrxs, não estamos isentxs.
Em outro sentido, podemos acatar Gilroy, fazendo a crítica ao caráter anglofônico, por vezes até hermético do seu atlântico negro. Ajustando a frequência do nosso receptor para localizar melhor o atlântico negro no eixo Sul. Por exemplo, quando nossos vetores diaspóricos negrxs brasileirxs elaboraram e emitiram sinais gráficos, sonoros e imagéticos codificados pelas matrizes africanas ou quando leram e processaram as informações, conteúdos estético e políticos, produzindo estímulos contra-hegemônicos e ressignificaram aqueles que alcançaram o porto de Santos.
Falo aqui de canais marcadamente negros, em fluxos descontínuos e desiguais, em emissões e recepções na direção dos mundos negros situados seja nos EUA seja Senegal, Cuba, Martinica ou Europa. Da mesma maneira, podemos inventariar e dar a conhecer as múltiplas projeções e imaginários que a África foi assumindo nos discursos e produções culturais afro-diaspóricas brasileiras. Imaginários transformados em canções, roupas, adereços, gravuras, pinturas, performances públicas e privadas, missas, discos, espetáculos, coreografias, discursos políticos, práticas religiosas etc[36].
Podemos ainda observar como educadores, artistas, intelectuais e pessoas negras comuns lançaram mão de tecnologias próprias da sociedade moderna para criar projetos e utopias, objetos e ideias vinculadas a história e cultura afro-diaspóricas, quando não para demonstrar outras possibilidades de uso desses sistemas fora da ordem vigente. Nesse sentido, creio que as máquinas voadoras do José do Patrocínio e os projetos arquitetônicos dos irmãos Rebouças já não podem ser dissociados das ações políticas destes em prol da abolição da escravatura. Trata-se de criatividade e liberdade, inventividade e criação artística, mudança social e revolta tecnológica.       
As tarefas de uma intelectualidade negra contemporânea politicamente comprometida são urgentes e variadas. Ainda estamos por mapear e considerar histórica e culturalmente como válidos os indícios deixados pelos viajantes baianos e fluminenses que faziam comércio de artigos religiosos entre Rio de Janeiro-Salvador e Golfo do Benim nos séculos XIX e XX. Como também podemos interpretar as relações, visitas e correspondências duradouras de ativistas negrxs brasileirxs de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, com o poeta Cubano Nicolas Guillén com membros da Frente Negra Brasileira, a bailarina estadunidense Katherine Dunhan com os ativistas do Teatro Experimental do Negro e os constantes laços do professor e coreógrafo estadunidense-baiano Cleyde Morgan com a geração de Firmino Pitanga e Mário Gusmão, a partir de Salvador desde a década de 1970.
Podemos também preparar nossos espíritos e sensibilidades para suportar a leitura labial de feições vincadas pela perda, distância e profunda melancolia, vozes plasmadas por lábios, textos e criações artísticas e intelectuais de homens e mulheres negras enviados para outros exílios, novas diásporas. Diásporas negras autoimpostas, ou não, emigração a ter que viver a dor da eterna proscrição ou invisibilidade em sua própria sociedade como, por exemplo, no século XIX, Rebouças, e no século XX, o bailarino Ismael Ivo, o músico Nana Vasconcelos, o compositor Moacyr Santos, o sociólogo Guerreiro Ramos ou o perfomer e compositor Satranga de Lima e sua poética homoafetiva.
Acima de tudo, devemos nos preparar melhor para receber verdadeiros bombardeios supostamente fraternos e interraciais de todos os lados, tal como no passado receberam Guerreiro Ramos, Abdias e Maria Nascimento do grupo ligado ao sociólogo Luis Aguiar da Costa Pinto[37]. Ou estarmos atentos também aos embates profundamente desiguais, como aqueles travados pelos membros da Frente Negra Brasileira contra a intelectualidade paternalista e racista dos anos 1930[38]. Ou ainda aquela travada por Peter Fry nos anos 1970 contra os ativistas, fundadores do Movimento Negro Unificado em São Paulo, por ocasião de sua pesquisa sobre Cafundó ao lado de Carlos Vogt e Robert Slenes[39].    
Nossa questão aqui é pensar: Como ativistas e intelectuais, artistas e criadores culturais negrxs têm experimentado e interpretado esse modernismo reacionário no Brasil? Em tudo vamos desconstruindo ou parcialmente confirmando percepções mais ou menos conflitantes sobre a presença negra em São Paulo.
Florestan Fernandes (2010) fez uma trajetória acadêmica e política admiravelmente comprometida com a desconstrução da mística da democracia racial freyreiana. Contudo, não deixou de construir interpretações equivocadas que, num primeiro momento, tenderam a sustentar a ideia de incapacidade dos negros à adaptação às sociedades de classes, revelando profunda negligência à compreensão do racismo tradicional e estrutural. Qual seja, buscou as origens, causas e motivações para as desigualdades raciais contemporâneas no passado escravagista, quando na verdade lá estão apenas suas matrizes, mas não os mecanismo de sua perpetuação e desdobramentos.
Uma passagem crítica do seu pensamento pode ser localizada em texto apresentado em 1976 nos Estados Unidos e publicada em circuito fechado:

A situação histórica, porém, não é tão adversa à população negra, como foi durante o primeiro ciclo de prosperidade econômica da cidade, dos fins do século XIX, dos fins do século XIX à crise de 1929. Então a população negra vivia dentro da cidade mas sem pertencer a ela, tratava-se de uma condição extrema de isolamento cultural e de marginalização socieconômica. As oportunidades iam para os brancos, especialmente para as famílias tradicionais ou imigrantes. O progresso estuante não existia para o meio negro, mergulhado na mais extrema desorganização social, pauperismo e desalento, uma fase dramática e amarga, que suscitou a imagem do emparedamento do negro[40].          

Um longo e sinuoso caminho tem sido percorrido na sociedade brasileira para levá-la primeiramente ao reconhecimento da existência dos racismos em geral, depois convencer a opinião pública em geral das especificidades dos racimos antinegro e anti-indígena no fazer-se dessa mesma sociedade. O reconhecimento ou não do fenômeno tem a ver com a legitimidade para que se possa cobrar do estado e da sociedade uma nova abordagem do problema.
Durante mais de meio século o ativismo antirracista se embateu com instituições hegemônicas, justamente nesse sentido. Nos últimos 20 anos eclodiram novas consciências negras, não apenas no meio urbano, como também no meio negro rural, em regiões onde os movimentos negros não tinham assento. Houve uma verdadeira descentralização dos movimentos negros, que tem se voltado muito mais para formação interna do que para o debate externo. Os ativismos negros descentralizados, em larga medida, têm produzido como efeito esgotar os pequenos dutos de prestígio das lideranças negras institucionalmente atreladas, gerando demandas e ações não previstas nos calendários e agendas oficiais.
A recolha de demandas das comunidades negras e seu carreamento para os canais institucionais de participação política, por décadas, funcionaram como estratégia de ascensão social individual, mas também represou nas bordas as frustrações e tensões acumuladas pelos baixíssimos níveis de mobilidade. Acima de tudo, assimilou as justificativas para a violência sistêmica, qual seja, aplicação desproporcional das penas ou mesmo eliminação física e sistemática dos indivíduos mediante as características raciais.
A relativa democratização das ferramentas de comunicação digitais a distância e a inovação tecnológica como um todo potencializaram essa tendência de descentralização, que vinha se processando no interior das populações negras desde início da década de 1980. Contudo as instituições, de maneira geral, ainda não assimilaram por completo os índices dessa profunda mudança.
De maneira geral, os ativistas antirracistas, intelectuais e pesquisadores negros têm atribuído pouca ou nenhuma atenção aos estudos sobre a parcela branca da população brasileira. Não por razões instrumentais, mas também por isso é importante compreender os parâmetros, as dinâmicas, o mecanismo da reprodução e a perpetuação da hegemonia dos brancos brasileiros sobre negros, mestiços e indígenas.
Por detrás de uma história triunfalista da imigração europeia repousam tensões e hierarquias entre brancos, degradações e discriminação entre estes e trabalhadores brancos e negros, xenofobia, como interações, intercâmbios e experiências de convivências interraciais a serem conhecidas e enfatizadas[41].
Podemos mesmo tratar de uma tradição afro-brasileira de diferentes tentativas solapar a hegemonia branca no âmbito da cultura letrada e artística. Essa tradição de um ativismo político, artístico e cultural, em que predominam descendentes de africanos, aos quais nos referimos como Movimentos Negros.        
Este texto nasceu do debate desenvolvido em torno do conteúdo racista presente na peça de teatro encenado pelo grupo paulista Os Fofos, no Instituto Itaú Cultural no primeiro semestre de 2015. A peça cuja criação teria acontecido nos anos 1990 já havia sido encenada várias vezes, e segundo seu diretor jamais teria sido alvo de qualquer contestação. Contudo no próprio público emergiu um artista que, questionando o referido diretor, trouxe o fragmento de um registro textual, no qual uma espectadora da mesma peça submeteu o conteúdo do texto dramatúrgico a questionamentos sobre seu caráter antinegro.
Não pretendi tratar da peça de teatro em si, mas da permanência do silenciamento do racismo de maneira geral na sociedade brasileira e da especificidade do racismo antinegro no meio artístico cultural paulista. Ou seja, desenvolvo aqui uma reflexão específica sobre o que defino como pacto racial brasileiro e da sua manutenção no âmbito da cultura e, sobretudo, da cultura artística.
Estou definindo como cultura toda forma de existência material e simbólica humana e afirmando como cultura artística toda expressão estética, passível de exploração econômica ou não. Trata-se de convenções questionáveis, mas ao mesmo tempo amplamente aceitas e difundidas por meio da escolarização e dos veículos de comunicação massiva. Sua origem é certamente a Europa ocidental e sua imposição se deu mundialmente no processo que podemos chamar de expansão do ocidente.
O racismo antinegro é um fenômeno complexo porque envolve formas nem sempre visíveis de discriminação e outras práticas tradicionais de rebaixamento e destrato social de difícil percepção e logo de igual dificuldade na denúncia e combate aberto. Sobretudo, envolvem também novos consensos interpretativos, que se embatem com estabelecimentos conceituais, manipulados por setores culturais, acadêmicos e políticos hegemônicos. A interpretação do racismo antinegro tem sido, por conseguinte, desde a década de 1930, um campo de disputa intelectual e política.
Também podemos escalonar leituras do ativismo antirracista desde os negros dramas de Hamilton Cardoso e Eduardo de Oliveira e Oliveira e erigir novos símbolos. Quiseram nos mostrar os prenúncios das novas relações raciais, quando se constataram o esgotamento e a armadilha da fixidez das teorias de classe para compreender e refutar os racismos. Porém, tal inovação metodológica foi adiada ou mesmo abortada pelo desaparecimento precoce de ambos. Mortes sem explicação, nem sentido, a não ser o Negro Drama.
Beatriz Nascimento e Abdias Nascimento partiram de conceitos similares, mas elaboraram diferentes versões tendo em vista a atualização do conceito Quilombo para moldar novas realidades sociais urbanas negras e brasileiras na segunda metade do século XX. Ambos parecem ter se afinado à ideia de Malcom X de que o retorno à África era de natureza simbólica, e a transformação dos valores civilizatórios africanos em signos de libertação serviriam como espécie de condutores de energia vital. Beatriz e Abdias antecedidos por Clóvis Moura parecem ter experimentado essa espécie de epifania intelectual afro-diaspórica ante à brisa mística do atlântico sul.           
Hoje, em meados da década de 2010, poetas que frequentam as sessões de reconstrução de vínculos e autoestima realizadas pela Cooperifa e do Sarau do Binho, Sarau do Grajaú, Sarau da Ponte Pra Cá e tantos outros também reivindicam uma memória quilombola e retomam a mística do texto escrito e declamado. Palmares e Canudos estão lá. Erguem novos signos identitários, como aqueles do nego Jansem em seu inaugural Quilombo Imaginário de Santo Amaro, nos anos iniciais da década de 1980[42].
Algumas são formas longevas de auto-organização, criação e difusão artístico-culturais, outras são ONGs oportunistas e parasitárias que penetram no território, atraídas pelas possibilidades de exploração de mão de obra e obtenção da legitimidade necessária ao acesso de novos financiamentos em agências nacionais e estrangeiras. Ali, aqueles enraizados enunciam as tentativas e possibilidades de uso e inovação das linguagens artísticas ocidentais, combinadas com códigos e signos de origem africana ou afro-diaspóricas criteriosamente escolhidas. A contar por Equiano, Luiz Gama, Guerreiro Ramos, Beatriz Nascimento parece que esse tem sido um método recorrente e eficaz.
Sejam como estratégias, tecnologias ou veículos são Barcos Negros na Kalunga Infinda. Isso nos coloca em compasso com uma espécie de cosmopolitismo negro, que possibilita elaboração de versões, contranarrativas ou “narrativas dissidentes da modernidade” brasileira, que tem combinado tanto mudança social e tecnológica constante com manutenção e controle social, tradicionalismo político e cultural.
Hall (2005) caracteriza a modernidade como sociedade da mudança enquanto nos passa a impressão que não haveria mudança nas sociedades tradicionais[43]. Esse aspecto do seu pensamento nos parece um tanto equivocado, no sentido que, também nas sociedades tradicionais, as mudanças se processam de forma que pode ser compreendida como mais lentas. Nesse caso, a analogia da modernidade como mudança rápida e constante pode ser considerada uma forma de autoelogio do ocidente a si mesmo, uma herança hegeliana da concepção de história como movimento. Mas a filosofia da história de Hegel é justamente o ponto nodal da negação de historicidade às civilizações africanas.
Como poderíamos pensar em mudança rápida se temos consciência de 400 anos de duração do tráfico negreiro e escravidão legal e, ao menos, 250 anos de racismo científico?
Algumas práticas negras e antirracistas que atuam na cidade abrem mão da institucionalização e acatam o signo do movimento constante e tudo aquilo que é provisório e efêmero. Não há sede, nem hierarquia e primam por uma relação fraterna e horizontal entre os membros jovens masculinos e femininos. Certamente existem conflitos e problemas variados, mas esses grupos de jovens negros e negras têm conseguido lidar com desafios criativos e educacionais, com ações concretas e elaborações intelectuais e artísticas muito complexas. Por isso, teimo em mencionar o trabalho que o Terça Afro realiza para fechar este texto.
Aqui São Paulo. Cantaram Racionais Mcs. Terça Afro nasce nesse contexto e faz emergir o que Stive Biko definiu como Consciência Negra na luta contra o racismo institucional na África do Sul.. Qual seja, um impulso político e cultural capaz de mobilizar os negrxs do mundo, em torno de um projeto de emancipação política e racial definitiva e humanizadora.
A consciência negra, entretanto, não pode ser aprendida em uma cartilha filosófica dogmática e fechada como imaginam as mentalidades autoritárias. Justamente porque deve estar circunscrita a cada dinâmica política, conjuntura temporal e contexto específico. Lá, Biko lançou um petardo cognitivo que pode ou não ser capturado e submetido a novos desígnios.
Numa conjuntura de profunda desigualdade e racismo antinegro e anti-indígena que se reinventa, o que podem fazer jovens negrxs além de viver sob o impacto cotidiano da segregação? Qual função e propósito têm um grupo de jovens negrxs envolvidos com artes, culturas, memórias e identidades? Que tipo de ação tem condições de realizar frente ao niilismo, individualismo, narcisismo dirigido a eles pela indústria do entretenimento e do consumo em geral?
Pelo que tenho acompanhado, eles respondem a esses desafios produzindo micro anti-ideologias e práticas políticas fundamentadas em quatro pilares: negritudes, sociabilidades, artes e afetos.
Negritudes: admitem a existência de pertencimentos diversos à origem africana e tomam como positiva a diversidade negra experiencial histórica e subjetiva. Fuçam e reviram as memórias, histórias e africanidades. Visitam figuras humanas históricas vivas, mas desaparecidas para estabelecer um diálogo intenso com as histórias africanas e diaspóricas.
Sociabilidades: elaboram sofisticadas estratégias para um “estar juntos”, convivendo, partilhando, descobrindo, gerando tensão e relaxando as relações a partir da criação e execução de programas, projetos e eventos. Contornam conflitos pessoais e competitividades para partilhar horizontalmente os desafios e retornos (financeiros e emocionais) advindos de cada ação planejada e desenvolvida.
Artes: encontram nas linguagens codificadas como expressivas as estratégias e os veículos para comunicar suas experiências e reanimar memórias negras abandonadas pelo espólio da guerra cultural-racial antinegra. Elaboram, fazem fluir e intercambiam imagens fílmicas e fotográficas digitais; textos sonoros, impressos e virtuais; conteúdos e valores musicais; técnicas de registro e formas criativas e tecnológicas.
Afetos: lançam desafios para a aproximação direta, fomentam troca de gentilezas, mas não escamoteiam dissidências, medos e divergências. Politizam o carinho e a violência, tratando da tendência ao isolamento como um fator de adoecimento que incidem sobre os urbanos, mas desumanizam mais aqueles socialmente abandonados e segregados.
Tanto na percepção de Beatriz Nascimento como na de Abdias do Nascimento, as experiências sociopolíticas designadas Quilombos poderiam servir como plataforma tecnológica para redimensionamento da presença negra na sociedade brasileira. Isto é, preconizavam como devir, uma nova forma de fazer política no Brasil que valorizasse as matrizes culturais africanas presentes no nosso imaginário. Talvez, por compreenderem criticamente o monopólio das elites brancas sobre as instituições culturais, sociais e políticas (partidárias) convencionais, vislumbraram uma rota de fuga para os descendentes de africanos, de forma que mantiveram fortalecidos e aptos para um novo tipo de confronto.                  
A ação cultural, artística e política chamada Terça Afro é um diapasão afinado com os pressupostos de Biko, definidos como Consciência Negra e simultaneamente repercutem os Quilombismos de Beatriz e Abdias Nascimento e Quilombagem de Clóvis Moura. O aquilombamento tem permitido construir autoimagem a partir de dentro e elaborar ferramentas de arqueologia cultural e tecnologias de combate ao racismo normativo e cotidiano.
Um grupo de jovens urbanxs, autodefindxs como negrxs que a partir de sua própria experiência interpretam a realidade brasileira, girando seus binóculos digitais para captar e processar os dados sobre a periferia da cidade mais rica do país. Constatam as continuidades dos diagnósticos feitos por gerações anteriores de ativistas. O racismo antinegro é rápido, dinâmico. Turva a visão, dilata-se, readapta-se para manter as hierarquias estruturais e seculares.
A base do trabalho? Rodas de conversas com convidados e abertas ao público. Numa primeira olhada, suas estratégias parecem ser bastante simples, mas não são, a saber, convivência, diálogo, criação estética e leituras/interpretações das experiências de si e dos outros.
Cárcere e morte são temas bastante caros aos movimentos negros que, desde a década de 1970, têm aprofundado crítica ao fenômeno que Abdias teria indicado como “genocídio do negro Brasileiro” bem antes que as políticas de segurança, baseadas no noção estadunidense de “tolerância zero”, fossem implementadas por aqui.
Jovens negrxs autores de suas próprias biografias, que buscam compor uma visão de campo e, ao mesmo tempo, redigir um contradiscurso que fortalece o sentimento de pertença e ao mesmo tempo se contrapõe aos meios de comunicação, os quais cotidianamente normalizam a violência racial e naturalizam as chacinas epidêmicas.
Ouço a bela canção do Paul Gilroy (2002) sobre o atlântico negro, embora não possa assimilar sua concepção de Escravo Sublime. Aparto-me do admirável sociólogo negro no caso de sua interpretação metafísica e cristã: as culturas negras da diáspora nascem, sobretudo, da sublimação da dor e sofrimento dos escravizados. Talvez ele tenha lido e assimilado involuntariamente alguns sermões do Padre Vieira disponíveis em língua inglesa[44].
Proponho interpretar como nascente e base do desenvolvimento das modernidades negras os resíduos e fragmentos de culturas africanas originárias, combinadas com elementos, saberes, tecnologias e símbolos advindos de escolhas éticas, estéticas e políticas elaboradas marginalmente na expansão do ocidente, que chamamos, criticamente, Modernidade. Tal alargamento do mundo sob determinações coloniais e imperialistas já não deve ser lido apenas em um sentido.
Atemo-nos aos protagonismos e empreendimentos culturais e estéticos de sujeitos e coletividades negras no fazer-se da sociedade contemporânea tornados opacos ou nulos pelo eurocentrismo inofensivo. Talvez nosso sociólogo tenha ouvido demasiadamente inglês e menos afro os Negro Spirituals apresentados a ele por Wiliam Du Bois[45]. Na elaboração do conceito, ao confundir subalternidade com passividade e quase anulou todo protagonismo que ele próprio prospectou e deu lume.
Nosso navio então faz rotas próprias ao atlântico sul. Tal como Gilroy, não podemos abandonar a língua e nem os sistemas de pensamento dos colonizadores, mas podemos também fazer exercícios para não nos comportarmos como tal. A noção de cidadania aplicada ao mundo da cultura, que temos participado da construção, não foi definida em gabinetes de empresas jornalísticas, nem em seminários patrocinados por empresários, nem em congresso de partidos políticos. Ela tem sido gestada na prática cotidiana. Daí a noção de que a sociedade brasileira é efetivamente múltipla no âmbito das formas de conceber ideias, atitudes, práticas, criações estéticas. Trata-se de uma concepção advinda da concretude das experiências socioculturais e étnicas e refletem um refinamento da noção de cidadania, que vai muito além da conquista dos direitos a vida e prosperidade material. Trata-se de um outro humanismo.             

Salloma Salomão
Músico, historiador e produtor cultural. Doutor em história pela PUC-SP. Pesquisador associado ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Versa sobre práticas culturais afro-diaspóricas e africanidades com ênfase em música e teatro. (Contatos: mosaiconegrobras.blogspot.com; sallomasallomao@gmail.com)


Referências bibliográficas
ALMEIDA, Patrícia Ferreira de; MARCELINO, Julio Cesar José; NETO, João Luiz de Brito. Movimentações pela cultura. Painel dos movimentos culturais da região leste de São Paulo. 1980-1990. São Paulo: Movimento Cultural Penha, 2004.
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WILLIANS, Raymond. Política do modernismo: contra os novos conformistas. Tradução: André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.   



[1] Alguns dos meus interlocutores estão disseminados pelo país, e nossas interfaces têm sido feitas via web e eventualmente corpo a corpo. Por exemplo, com o artista multimídia Délcio Teobaldo (RJ), a professora Ione da Silva Jovino (mana) da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG-PR) e Denise Barata da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É importante citar também o músico afro-mineiro e parceiro nas canções Satranga de Lima (Monteral-Paris), a pesquisadora Patrícia Schor (Países Baixos) e o sociólogo e professor José Machado Pais do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL-PT).

[2] Alguns se tornaram amigos para toda e qualquer obra, entre os quais menciono o músico e professor Amailton Magno Azevedo, o livre pensador Eduardo Bonzatto e as pesquisadoras Karina Poli e Nirlene Nepomuceno (Bebel). Sou grato também a Augusto Lopes, Eduardo Rosas Negras e Jean Tible, respectivamente, ex-alunos e professor do Centro Universitário Fundação Santo André. Figura ímpar nesse trajeto tem sido a produtora cultural Baby Amorim criadora da rede social Aruanda Mundi, uma das coordenadoras do Bloco Afro Ilú Oba de Min.
[3] Minhas parceiras de reflexão e ação sobre teatro negro, dramaturgia e negritude têm sido primordialmente as atrizes, pesquisadoras e arte-educadoras-sociais Priscila Preta Obaci, Flávia Rosa, Débora Marçal, Adriana Paixão, Carol Ewaci, Jé Oliveira, Maitê Freitas e Thais Dias. Tenho dívidas impagáveis também com os fotógrafos e designers Helder Girolamo Scantanburlo, Guma e Nanau Cassimano e Alex Ribeiro. 
[4] NETO, Júlio de Mesquita. Publicação financiada pelo Banco Bamerindus. Ciclo de Debates: Cidadão brasileiro. Realizado em Curitiba de ago-nov 1991. Cidadão brasileiro. São Paulo: Cultura Editores Associados, 1992, p. 12.
[5]  Idem, p. 98.
[6] Rapper paulistano. Assassinado em 2003, desenvolveu uma nova estética musical, introduzindo elementos do samba urbano na poética e rítmica da música rep (ritmo e poesia). Para saber mais veja: TONI, C. Sabotage - um lugar: Biografia oficial de Mauro Mateus dos Santos. São Paulo: Literatura, 2013.     
[7] Milton Santos traçou um perfil muito interessante de São Paulo, com dados já considerados um tanto defasados por serem dos anos 1980, mas algumas análises ainda valem. Nosso caso, especialmente a segunda análise do cap. 2. Veja: SANTOS, Milton. Por uma economia política da cidade. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 80.  
[8] Idem, p. 92.
[9] Para alguns autores brasileiros parece ser muito complexa a ideia de colonialismo interno. Meu argumento é bastante simples. Tanto a vinda da família real portuguesa como a manutenção da ordem escravista, assim como a maior inserção das elites brasileiras de origem portuguesa no mercado mundial de coisas e pessoas, em nada denota uma ruptura da lógica colonial. Mas sua permanência mais atroz encontra-se no âmbito da cultura e da mentalidade. Para verificar argumentação contrária, consulte: GOMES, Heloisa Toller: Crítica pós-colonial em questão. Disponível em: >http://revistabrasil.org/revista/ingles/heloisa.htm<. Acessado em: 13 mai. 2013.

[10] Para uma definição crítica de modernidade e modernismo, assim como para sondar suas semânticas e historicidade, vale consultar: WILLIANS, Raymond. Política do modernismo: contra os novos conformistas. Tradução: André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
[11] Sílvio Romero, um intelectual comprometido com a causa da mestiçagem racionalizada pelo estado, por vezes, questionava o que via como tendência de formação de guetos de povos brancos na região sul, em vez de sua disseminação por todo o território de forma a facilitar o embranquecimento progressivo e surgimento de um padrão racial mais homogêneo da população nacional.   
[12] SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na politica de imigração e colonização. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (Org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.
[13] Segundo Rei Andrews, as elites paulistas construíram seu próprio projeto de imigração-branqueamento, tendo-o perseguido sistematicamente até a década de 1960. ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Tradução: Magda Lopes. Bauru-São Paulo: Edusc.
[14] Idem, p. 29-31.
[15] SANTOS, Milton. Testamento intelectual. Perfis Brasileiros. Entrevistado por Jesus de Paula Assis. Colaboração de Maria Encarnação Sposito. São Paulo: Editora Unesp, 2004, p. 14-15.
[16] A raiz etmológica do termo é a palavra latina seranus, pôr do sol, entardecer, anoitecer.  
[17] Binho é um poeta radicado na região de Campo Limpo, Zona Sul. Realizava encontros em um bar, até que o espaço foi desativado pela gestão Kassab, sob a alegação de falta de infraestrutura. Desde então as atividades são realizadas de forma itinerante por uma equipe reunida em torno de um projeto de expansão da leitura e escrita criativas. Seu raio de atuação tem se expandido para as regiões do Mercosul.    
[18] LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
[19] MOURA, Roberto. A casa da tia Ciata. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.
[20] O texto de Olaudah Equiano é um entre pouco mais de uma dezena de relatos e romances de escravizados. Textos autorais autobiográficos com elementos ficcionais. Ainda difícil de serem encontrados em língua portuguesa. Veja: EQUIANO, Olaudah. The interesting narrative and other writings. Vicent Carretta (Ed.). New Zealand: Penguin Books, 1995. Uma publicação interessante é também a coletânea: GATE JR., Henry Louis. The classic slave narratives. New York: Signet Classic, 2002.      
[21] LAHON, Didier. O negro no coração do Império: uma memória a resgatar: séculos XV XIX. Coleção entre Culturas. Lisboa: Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural, Ministério da Educação, 1999.
[22] Por branquitude estou designando tanto e hegemonia socioeconômica dos descendentes de europeus no Brasil como também a discursividade e projeções de imaginários eurocêntricos sobre todos tipos de criação cultural e artísticas.
[23] “Arte Pública”, trabalhos apresentados nos seminários de arte pública realizados pelos Sesc e Usis, 17-19 de out. 1995 e 19-21 nov. 1996. São Paulo: Sesc, 1998. 
[24] Obras de arte em logradouros públicos de São Paulo, regional Vila Mariana. Coordenação de Cecília Moura Leite Ribeiro e Janice Gonçalves. São Paulo: DPH, 1993.
[25] TENTORI, Francesco. P. M. Bardi. Com as crônicas artísticas “L’Ambrosiano” 1930-1933. Tradução: Eugênia Gorini Esmeraldo. São Paulo: Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
[26] Para uma pequena e concisa história crítica das políticas culturais na cidade, veja: ALMEIDA, Patrícia Ferreira de; MARCELINO, Julio Cesar José; NETO, João Luiz de Brito. Movimentações pela cultura. Painel dos movimentos culturais da região leste de São Paulo. 1980-1990. São Paulo: Movimento Cultural Penha, 2004.
[27] Tudo indica que esse modelo foi copiado da política cultural desenvolvida no México na década de 1970. Ao menos, cheguei a essa conclusão ao ler um caderno publicado pelo Partido dos Trabalhadores em 1985 na cidade de Porto Alegre. Veja: CHAUI, Marilena. Política cultural. 2 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.
[28] Corpos estáveis são as designações institucionais para orquestra, coral lírico e corpo de bailado do Teatro Municipal de São Paulo, que agora, sob auditoria, consome 50% do orçamento público municipal.
[29] Idem, p. 21.
[30] Veja: FERREIRA, Ligia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São Paulo: Imprensa oficial do Estado, 2011. Ainda: AZEVEDO, Elciene. Orfeu da Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas-São Paulo: Editora Unicamp, 1999.
[31] LEITE, José Correia. E disse o velho militante José Correia Leite, depoimento e artigos. Organizado por Luis Silva Cuti. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
[32] Stuart Hall, já citado, utiliza esse termo para refletir sobre formas de resistência cultural, nas quais os despossuídos e subalternos por algum momento interpelam ou interditam as formas culturais hegemônicas e impõem uma agenda ou demanda. 
[33] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY>. Chimamanda Adichie. O perigo de uma História única. Acessado em: 16 jul. 2016.
[34] André Rebouças, engenheiro, negro, brasileiro do século XIX, abolicionista e próximo da Casa Imperial de Bragança propunha como projeto modernizador do Brasil, concomitantemente à supressão da aristocracia agrária, da grande propriedade e do escravismo. Estudou na França e percorreu o mundo em busca de novas tecnologias que pudessem ser introduzidas no Brasil. Prevendo as perseguições republicanas exilou-se na Europa em 1889 e depois viajou pela África. Uma biografia tanto múltipla e próspera quanto trágica e previsível; morreu numa ilha atlântica. Não se sabe ainda hoje se por suicídio ou por uma queda acidental. Veja: SANTOS, Sydney M. G dos. André Rebouças e seu tempo. Vozes: Rio de janeiro, 1985.     
[35] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
[36] Essa rica história cultural tem sido tratada com preconceito enorme nos meios acadêmico e cultural. Episodicamente, pesquisadores têm tratado da dispersão de artistas e intelectuais negros ou da passagem de artistas caribenhos e estadunidenses pelo Brasil. Contudo, parece haver fluxos descontínuos, mas não menos importantes integrando produções artísticas, ações políticas e projetos sociais de afro-brasileirxs, com interlocutorxs negrxs ou não em volta do mundo, cujos canais não advém da indústria cultural.      
[37] Ver: PINTO, L. A. Costa. O negro no Rio de Janeiro: Relações de raça numa sociedade em mudança. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1998. Ver também: MAIO, Marcos Chor. A questão racial no pensamento de Guerreiro Ramos. In: SANTOS, Ricardo Ventura; MAIO, Marcos Chor. Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz: Centro Cultural Branco do Brasil, 1999, p. 179-194.
[38] Tanto no primeiro Congresso do Negro Brasileiro, organizado por Gilberto Freyre e Solano Trindade, em Recife, 1934, quanto no segundo, realizado em 1937, organizado por Edison Carneiro, em Salvador, lideranças negras enviaram representantes para apresentar protesto e fazer denúncias contra o racismo. Em ambos os congressos, os intelectuais se fecharam em conchas, e a imprensa local noticiou a participação como baderna, caso de polícia. A intelligentsia brasileira reagiu às críticas contra os elitismo e racismo, fazendo um silêncio obsequioso que durou muitas décadas.     
[39] Ver a introdução: FRY, Peter; VOGT, Carlos. Cafundó: a África no Brasil: linguagem e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
 
[40] FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 122.
[41] Por exemplo, de uma carta publicada em um jornal negro da cidade por um trabalhador fluminense recém-chegado à cidade, ao perceber as barreiras sociorraciais, define como “guerra muda e odiosa, texto em texto de: DOMINGUES, Petrônio José. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Editora Senac-São Paulo, 2004, p. 113. 
[42] Jansem Rafael. Alfaiate, professor público, participou de grupos musicais e publicações populares. Em canções e poemas, contestava o racismo antinegro como também reivindicava a noção do triplo pertencimento étnico.  
[43] HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tadeu Tomaz da Silva e Guaracira Lopes Louro. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
[44] GILROY, Paul. O atlântico negro – modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes/CEAA. Editora 34, 1993.
[45] DUBOIS. W. E. B. As almas da gente negra. Tradução, introdução e notas: Heloisa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda Editora, 1999.








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