http://d3nv1jy4u7zmsc.cloudfront.net/wp-content/uploads/2016/11/OBS21_BOOK_ISSUU.pdf.
http://www.itaucultural.org.br/revista/revista-observatorio-ic-n-21/
QUE CIDADE TE HABITA?
SAMPA NEGRA: PERIFERIA, CONTRACULTURA E ANTIRRACISMO
Salloma Salomão Jovino da Silva
[...] Panaméricas e Áfricas
utópicas, túmulo do samba, mais possível novo Quilombo de Zumbi.
Caetano Veloso
Estudamos a cidade negra-periférica que habita São Paulo,
refletindo sobre as presenças histórica e cultural dos descendentes de
africanos e sua marginalização constante no processo de modernização da cidade.
Localizam-se protagonistas artísticos culturais negrxs e perifericxs para compor um
novo mapa e salientar vozes silenciadas pelo racismo e apagadas frente ao elitismo
cultural. Questionamos a narrativa única de matriz modernista, que ordena a
história/memória oficial da cidade. E como alternativa instauramos perspectiva
afro-periférica num diálogo crítico com as bibliografias afro-brasileiras no
atlântico negro, em eixo hemisférico sul.
O otimista poeta baiano
viu a cidade de São Paulo em meados da década de 1970 como um espelho que não
refletia sua imagem e projetou-a como uma cidade negra, um moderno quilombo. O
panorama que construo aqui é incompleto e provisório, mas, carrega em si, os
contornos não retilíneos de experiência constituída de aprendizagens
intelectuais, escolares e extraescolares, acadêmicas e artísticas, entre uma
média cidade no interior de Minas Gerais e os arredores da capital paulista.
Trato de práticas e ideias que resultaram em vivências e interpretações,
leituras e trocas assistemáticas em diferentes circuitos de produção cultural e
artística, educação pública a ativismo antirracista.
Este texto pode ser
considerado uma versão sintética e prévia de um livro com o mesmo título a ser
publicado em breve. Minhas referências para construção da pesquisa têm sido
cursos, palestras, conferências e rodas de conversas que organizo e dos quais participo.
Conversas várias com coletivos artísticos e parceiros de aventura. São também leituras
de bibliografias sobre culturas urbanas contemporâneas, publicadas por
sociólogos, semiólogos, museólogos, gestores públicos e privados de cultura,
antropólogos, urbanistas, historiadores, artistas, jornalistas e ativistas.
Realizei pesquisa de
campo, entrevistando pessoas e acompanhando os trabalhos criativos que envolvem
grupos e coletivos de artes e linguagens múltiplas. Recolhi, sistematizei e
analisei parte das suas produções e discursos por meio de publicações como:
livros, revistas, fanzines, jornais, vídeos, folders, sites e toda sorte de material gráfico impresso e digital. Essa
produção subjaz o corpo do texto.
Minhas escolhas são
carregadas de intencionalidade política e afinidades estéticas. Assim fui sondando
narrativas e semânticas próprias do contexto e focalizando algumas cenas
contemporâneas de criação e difusão cinevideográfica e plástica, literária e
musical, dramatúrgica, teatral e performática. Produções múltiplas foram
focalizadas desde que autonomeadas negras e ou periféricas. Tendo-se em vista
ser passado o tempo em que o pesquisador, do alto do seu saber autorizado,
classificava e ordenava sem contestação das identidades por parte daqueles que
estudava.
Também chequei
instituições culturais públicas e privadas, observando seus discursos e
práticas, seus métodos e conceitos. A metodologia da pesquisa básica tem consistido
em aproximar os ouvidos dos silêncios e ruídos, dar atenção aos traços de
desenhos que, de tão finos, parecem invisíveis e apalpar objetos de memória
quase intangíveis, de tão negligenciados pela cultura dominante.
De posse dos dados
analíticos, tenho buscado mostrar as tensões e deslocamentos atuais. Para isso,
sempre que posso, saturo de perguntas consideradas incômodas as meganarrativas
hegemônicas. Intenciono esgarçar até o limite as telas canônicas que encobrem
os olhos dos naïfs e dar a ler textos
mal-intencionados. Meu objetivo final é
elaborar sínteses compreensivas de aspectos estéticos e históricos, étnicos e
políticos, sociais e culturais, considerados fundamentais nesses projetos e
assim desvelar estratégias e visões de mundo, colaborações e potencialidades,
conflitos e fragilidades, desejos e utopias na dinâmica sociocultural e
política na metrópole paulistana[1].
A web permite acessar
conteúdos cada vez mais completos e complexos em vários assuntos e plataformas,
mas principalmente imagens históricas e sons e músicas fora de catálogo para
meu deleite. Posso dar aos parceiros uma ideia geral sobre o que estamos
elaborando mediante leituras solidárias e testar hipóteses sobre comportamentos
digitais. Além de ser uma boa plataforma da autopromoção é uma ferramenta relativamente
barata de evidenciar aquilo que efetivamente fazemos, mas que, muitas vezes,
morre no vácuo.
Entretanto, na rede,
questões políticas importantes podem terminar facilmente em afrontas pessoais,
delírios de egos e brigas inócuas, mas rebocadas de erudição sociológica. Conquanto
também veicula ideias instigantes e úteis que deslocam a percepção para coisas
não percebidas antes, favorecendo o contato direto em encontros presenciais ou
trocas de afetos digitais. Sinto sua positividade em vários aspectos, evitando
o seu lado de simulacro, quando, certas postagens e fotos de vidas,
estranhamente coloridas, parecem bem mais virtuosas que as relações afetivas e
sociais construídas com ausências e solidariedades históricas.
Há mesmo uma espécie de
euforia comunicativa que também me arrebata, e eu a retroalimento, mas não sei
se é remédio ou compensação para essa falta de tempo para acarinhar os amigos e
gentes queridas. Confessando-a alimento contra uma solidãozinha progressiva,
uma dor pequena, mas corrosiva. Lenitivo para insônia ou compensação para necessidade
de trabalhar cada vez mais e receber cada vez menos. O tempo que sobra, eu
durmo e às vezes sonho. Esse texto tem tudo a ver com os devaneios. Algumas das
pessoas que abordei constituem coletivos e grupos culturais[2].
A rede me permitiu
entender muitas de minhas limitações e possibilidades comunicativas. Devo a ela
essa assunção, tornar efetivamente compreensível minha caminhada nesse
quadrante da esfera. Fiz-me com e sem lamento, mas sem autopiedade. Um intelectual
preto, educador público e artista periférico. É isso que soul.
No campo das artes negras
e periféricas, minha gratidão ao escritor, poeta, pesquisador e educador Allan
da Rosa; à artista plástica e professora Renata Felinto; à educadora e atriz-cantora
Naruna Costa; ao ator e pesquisador Márcio Castro; ao coreógrafo Firmino
Pitanga; aos poetas Sérgio Vaz e Márcio Batista; à professora e
coreógrafa-antropóloga Luciane Ramos; ao músico, ator e produtor Euller Alves e
ao produtor cultural Josiel Medrado. Especialmente devo à Cia Capulanas de
Artes Negras, Cooperifa, Sarau do Grajaú, Coletivo Negro, Sarau da Ponte pra
Cá, Sarau Perifatividade, Sarau do Binho, Cia de Teatro os Crespos, grupo Dança
Movimento Contínuo, Companhia de Teatro Clariô e à Esquina musical[3].
De certa forma esta
escrita ainda reflete a aprendizagem dialógica com professoras da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e da Universidade de São Paulo. Devem culpá-las
e também meus manos e manos feitos na lida, Rafael Galante (USP), Nirlene
Nepomuceno (UFBA), José Carlos Gomes da Silva (Unifesp), Maria Odila Dias e
Antonieta Antonacci (PUC-SP), Maria Cristina Wissembach e Marina Mello e Souza
(USP). Se eventualmente meus leitores perceberem neste trabalho, quando não
pude esconder vícios da escrita e retórica acadêmica, mal-aprendidas nesses anos
de treinamento escolar intensivo, não cismem muito. Garanto que sou o único corresponsável por tudo que penso, falo
e escrevo.
Por
ser São Paulo a cidade mais rica e luxuosa do país é também, por contraste,
aquela onde as iniquidades se pronunciam de forma mais radical e aguda. Mas
isso depende muito de onde você a vê.
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) tem sido uma
das mais importantes instituições corporativas patronais do país. De suas
fileiras saem funcionários de agências internacionais, ministros, governadores
e secretários de estado. No começo da década de 1990, reuniram-se em Curitiba
jornalistas e intelectuais, políticos e sindicalistas para discutir uma nova
visão de cidadania para um país recém-saído da ditadura civil militar. Júlio de
Mesquita Neto foi jornalista e proprietário do jornal O Estado de S. Paulo. O poderoso “Estadão”, considerado por uns máquina
de ideologia retrógrada, e, por outros, um modelo de empresa familiar de
comunicação. Mesquita Neto, demagogicamente vaticinava:
Ser cidadão não é só fugir da pobreza do campo
e se abrigar na miserável periferia das inchadas e violentas metrópoles
brasileiras de hoje em dia [...]. A cidadania de primeira classe é a exigência que
todo brasileiro, sem distinção de credo, raça, classe social, precisa fazer
para se considerar perfeitamente integrado ao mundo livre e civilizado, que está
sendo construído neste século XX[4].
Nossas elites têm uma visão bem definida do que seja, ou não, cidadania
aplicada ao contexto da sociedade brasileira, mas têm feito das “tripas
coração” para manter privilégios seculares, tidos como direitos especiais, ou
condicionado a participação social e política mediante as circunstâncias. As
regras democráticas e republicanas não são obras do acaso, mas utilizadas
conforme o contexto.
O renomado historiador José Murilo de Carvalho, no mesmo evento
realizado em Curitiba, referido a pouco, mencionou a permanência da prática do
castigo físico em âmbito doméstico, mas também o uso recorrente da violência
contra as classes subalternas. Contrapunha: “A prática ainda comum no país
inteiro dos maus tratos e mesmo da tortura contra presos comuns por parte da
polícia reflete sem dúvida esta tradição escravista negadora dos mais elementares
direitos civis”[5].
O município de São Paulo, onde fica a sede da Fiesp, que detém a maior
arrecadação tributária, poderia ser também o lugar onde se oferecem os melhores
e mais abrangentes serviços públicos e também onde a cidadania democrática e
republicana se expressasse verdadeiramente. Isso, se a classe política local
exercesse suas atividades marcadas por padrões éticos razoáveis. Mas não, por décadas
a fio, a coisa pública paulistana tem sido presa da gatunagem, da expropriação
e do descalabro.
Recentemente foi repatriada parte dos recursos financeiros desviados para
contas em paraísos fiscais durante as gestões Maluf (1993-1997) e Pita
(1997-2001), e esses não são casos únicos. Milhões de reais surrupiados em
forma de propina de uma única obra, a construção da Avenida Roberto Marinho, implantada
sobre o córrego Águas Espraiadas, cujos esgotos subterrâneos deságuam na sede na
Rede Globo São Paulo, limites das zonas Sul e Oeste.
Podemos pensar sobre a “miserável periferia inchada”, citada por Júlio
de Mesquita, como a favela arribada dali da Zona Sul para que a Avenida Marinho
brotasse. Moradias precárias que se estendiam desde o Rio Pinheiros, atravessando
toda a parte baixa da Vila Santa Catarina, os fundos alagados da Cidade Ademar
e alcançavam o município industrial de Diadema. Subdividia-se para leste e
oeste, mudando de nome e fazendo curvas sobre brejos e beiradas de córregos.
Na parte designada Canão, perto do Buraco Quente, viveu e morreu Sabotage,
o anti-heroi da segunda geração hip hop[6].
O córrego morto da Zavuvus corre no mesmo sentido, do outro lado do morro da
Vila Santa Catarina. Gestão após gestão, os escândalos de apropriação privada
do bem público nos dão apenas uma medida da sua normalização e regra, algo que podemos
chamar de “negócios da corrupção estatal”.
A cidade abstrata poder ser um
conjunto de regras aos olhos dos legisladores, números para demógrafos,
traçados geométricos para urbanistas, categorias de consumidores para os
comerciantes e um grande enigma para seus moradores. Flagrar e compreender
concretamente a rua, o bairro, a região e a cidade é desvelar a nossa própria
existência nela e para além dela, daqueles com os quais convivemos no tempo da
construção social daquilo que chamamos vida.
Milton Santos[7]
(2009) ao estudar a cidade de São Paulo é quem denomina Modernidade Perversa
nosso padrão de inserção no mundo contemporâneo e indica que nesse modus existe associação intrínseca entre
miséria e abastança, e que ela pode ser desvendada. “Portanto, a modernização
de atividades é simultânea à expansão de formas econômicas menos modernas que
abrigam uma parcela da “pobreza” urbana, permitindo a existência de um setor
econômico diferenciado do setor do grande capital”[8].
A modernidade brasileira
combinou tecnologia, cultura artística, políticas urbanas, industrialização,
mas não abriu mãos de velhas formas de colonialismo interno, no trato com as
populações pobres, indígenas e negras[9].
Embora socialmente situados ao lado dos brancos pobres, nossa condução tem especificidades
que não podem ser anuladas, justamente pela longa duração e historicidade dos
racismos antinegro e anti-indígena. Os tataranetos dos paulistas quatrocentos
sequestraram para si a ideia de modernidade europeia, aproveitando que seus
pais e avós haviam feito fortuna, combinando tráfico clandestino, escravismo
altamente racionalizado e plantation. Nossa
concepção nacionalista de modernidade tem essas matrizes: patrimonialismo, escravismo
e racismo.
No Brasil, as instituições canônicas modernas[10],
quais sejam, os sistemas culturais, políticos e jurídicos, os sistemas de
comércio e escolares nacionais no século XX, sobretudo, ou pelo menos a partir
da década de 1930, tomaram os valores modernistas europeus como base discursiva
para gestar uma nova percepção de estado-nação e suprimiram qualquer possibilidade
de diversidade. Também sondaram as possibilidades de inserir o país, como
protagonista nas dinâmicas geopolíticas mundiais.
Ao mesmo tempo em que parte das lideranças políticas e culturais sonhavam
quase secretamente com essa nova sociedade, capaz de corresponder à fotografia econômica-cultural
germânica ou estadunidense, nossa intelligentsia
dava tratos às teorias sociais importadas para alcançar uma meta traçada no
século XIX: uma sociedade plenamente ocidental na cultura e racialmente branca
na “raça”. A mestiçagem coordenada seria, então, um estágio inevitável[11].
Chamamos colonialismo interno porque não se tratava mais de um projeto
de mudança imposto de fora para dentro, da metrópole para a colônia. Giralda
Seyferth (1996), estudiosa da imigração e da colonização, traça uma breve e
excepcional genealogia da formação do estado-nação no Brasil e das políticas de
imigração seletiva, que, no jargão político do ativismo negro e antirracista, tem
sido definida como uma das fases do “projeto de branqueamento” [12].
Os fazendeiros paulistas não
apenas lucraram largamente com a escravidão de plantation e o controle do estado monárquico, como também assumiram
a dianteira na batalha pela abolição da escravatura e contra o império. Quando
pensamos em São Paulo, não podemos perder de vista essa capacidade de mudar sem
mudar ou de reformismo reacionário das suas elites[13].
Segundo Santos (2009), já nos anos 1980, São Paulo rivalizava com a
antiga capital do império escravista em vários tópicos da produção cultural e
científica rapidamente passando-lhe à frente em números de empresas
publicitárias:
São Paulo por suas três universidades
estaduais, e sobretudo pela Universidade de São Paulo, representa muito mais da
metade de toda pesquisa científica produzida no país, em todos os campos do
saber. [...] Era em São Paulo onde se encontrava, em 1985, o maior número de
editoras de livros e folhetos. Pode-se, em consequência com base em sua força
econômica e nas relações cada vez mais íntimas entre economia e cultura,
admitir que São Paulo esteja se tornando, igualmente, metrópole cultural? [...]
A publicidade ilustra bem a ideia de polo mundial: São Paulo é centro difusor de interesse
publicitários de inúmeras marcas e firmas internacionais[14].
Sim, os filhos dos fazendeiros-burgueses
paulistas criaram tal instituição exemplar citada por Santos, com objetivo
confesso de preparar as novas elites para o mando. Milton Santos, considerado
um forasteiro naquela instituição, sentindo-se cansado, ao fim dos dias
resumia:
Os ditos chefes de escola na USP sempre foram
chefes políticos, que não precisam ter um corpo de ideias para poder se
afirmar, pois tinham poder de nomear, até quando podiam, até 1968. Isso não é
algo que se pode atribuir ao sistema de cátedra. [...] O que ele faz é produzir
um círculo de aderentes, mas não de discípulos [...]. Em outros lugares você
tem vergonha de fazer coisa igual. Nos Estados Unidos, a mobilidade é regra
dentro das universidades. Elas não aceitam o seu próprio aluno imediatamente.
Ele tem de circular e não pode fazer carreira inteira como acontece aqui na
USP, que é uma espécie de família; é considerado normal o menino entrar na
Escola de Aplicação e sair reitor. Sabemos que não adianta querer participar de
boa parte dos concursos, porque eles são para tais e tais pessoas que já estão
lá[15].
Santos
teve experiência de pesquisa, visibilidade e prestígio internacional por conta
da sua atividade professoral e de pesquisa fora do país. No Brasil, ao
contrário, deparou-se constantemente com preterimentos e depreciação
intelectual. Silenciou-se pelo fato de pertencer à geração da dor em segredo,
para qual, admitir as práticas racistas interpessoais e institucionais, era
considerado demonstração de fraqueza ou de vitimização. Chegou à África pela
primeira vez no início da década de 1960, antes do golpe civil militar, e lá
teve acesso aos revolucionários descolonizadores. Após o golpe no Brasil, foi encarcerado
por um período de 100 dias. Ao sair sob condição de prisão domiciliar, contou
com amigos e políticos conservadores para fugir e exilou-se na França, onde
lecionou.
Atuou na Universidade de Columbia (EUA), esteve à frente da criação e
instalação do primeiro curso de geografia no continente africano, na Tanzânia.
Sua leitura sofisticada, mas não direta das formas de manutenção do prestígio e
poder acadêmicos, sugere ter ampla analogia com as denúncias do racismo
antinegro dos movimentos negros brasileiros.
Podemos abordar seus deslocamentos no mundo acadêmico e no território da
diáspora como estratégia afro-atlântica, à medida em que reflete outras
narrativas de viagem de outros tantos descendentes de africanos dentro e fora
do Brasil. Seu saber técnico acadêmico pode perfeitamente ser contabilizado
como contribuição tecnológica própria ao atlântico negro, e sua crítica ao
corporativismo racial elitista da academia paulista, como um vetor no embate
contra-hegemônico e antirracista.
São Paulo é atualmente o mais
rico mercado de cultura, lazer e entretenimento do país, cujo custo individual
de um espetáculo ou evento da moda pode alcançar até dois salários mínimos. Não
é incomum espetáculos por 500 dólares. Um contingente razoável de pessoas
estimuladas paga alegremente para consumir tais serviços. Em nome do status ou
do sentimento de alta exclusividade, palacetes e prédios de luxo vendem festas,
shows, eventos gastronômicos e corporativos e espetáculos cult em salões vips. Pessoas
que sem tocar o chão levitam sobre a cidade. Jovens rastas definem a
cidade-ilha-lívia: Babilônia.
Dentro da cidade, mas nas margens externas dos rios, os eventos
culturais periféricos denominados saraus têm uma história multifacetada, controversa
e épica. Atualmente há um sem-números de atividades realizadas nos mais
diversos pontos da periferia da cidade e também nos municípios do entorno. O
dramaturgo Marinho Pazzini, falecido diretor do grupo Clariô de Teatro,
contou-me uma versão sobre sua origem que talvez não possa ser considerada
muito edificante para alguns membros atuais dessa modalidade cultural.
Segundo Marinho, ao final dos anos 1970, jovens atores periféricos, que tinham
poucas alternativas no mercado cultural da metrópole, eram convidados por
senhoras da elite para animar suas tardes de chá inglês, recitando poemas e
fazendo modestas performances. Eles usavam “clássicos” da literatura e
dramaturgia nacional e “universal”[16].
Os saraus artístico-literários
cresceram de tal forma que, no ano 2015, o Sarau do Binho[17]
organizou na região de Campo Limpo o que pode ser considerado o maior evento de
literatura periférica do país. Congregaram na praça central do bairro mais de 100
editoras independentes e durante três dias e três noites debateram os circuitos
alternativos de criação, produção e circulação de livros artísticos e criativos
no país. Os desafios principais dos saraus têm sido principalmente romper os
limites de invisibilidades impostos pelo mercado livreiro tradicional e criar
formas alternativas de circulação da produção.
Contudo, o desafio maior da produção literária periférica e negra, a meu
ver, situa-se no campo político e estético. Aos criadores resta entender se tais
produções têm sido reprodutoras dos valores da cultura literária dominante e,
nesse caso, assumido a condição de uma subcultura. A partir daí, admitir que anseia
simplesmente ser incorporada aos circuitos da elite. Ou, em sentido contrário,
fomentar a cisão político-estética e inaugurar efetivamente outro campo
criativo. Nesse caso, negritude e periferia não são apenas retóricas de
identidade e lugar mas perspectivas de origem e destino, fontes de conteúdo e
forma.
Paulo Lins[18] é
certamente um dos escritores mais prestigiados do mercado editorial brasileiro
contemporâneo. Não há duvida de que, quanto à forma, sua escrita colocou em
cena um mundo social ofuscado pelos estigmas recorrentes de miséria, violência
e racismo. Diferente de Carolina Maria de Jesus, Lins experimenta com justiça e
em vida a visibilidade, o prestígio e o trânsito socioespacial pouco comum aos
criadores culturais negros e periféricos no Brasil.
As culturas musicais e
literárias urbanas brasileiras produzidas e relativamente evidenciadas dos anos
1990 para cá têm tematizado e sido produzida por pessoas advindas de favelas,
subúrbios e periferias não apenas do Sudeste. Considero que Ilê Ayê, Racionais,
Chico Sciense e Ba Kimbuta, assim como Paulo Lins, Sérgio Vaz, Ferrez, Allan da
Rosa e Jenifer Nascimento, levando-se em consideração tempos, modos e
paisagens, podem ser entendidos como cenas de um filme longo, fragmentado e de
difícil interpretação. Um filme sonoro, uma cacofonia emocionante. Uma película
inédita e de epílogo incerto cuja diretora é a história. Essa deusa conhecida e
estranha que não sabemos a origem e nem compreendemos os desígnios.
Numa segunda-feira, dia
13 de abril de 2015, Paulo Lins fez uma visita surpresa ao Sarau do Binho em
Taboão da Serra. O sarau é ambulante mas faz algumas paradas, sendo realizado
também no Espaço Clariô de Teatro. Lins estava bem descontraído e, provocado
por Binho, contemplou a todos com uma explanação livre e muito interessante de
sua experiência como escritor e nos deu alguma ideia da percepção que tem de
história e cultura e sobre a sociedade brasileira atual.
Entre outras coisas
contou que, ao ser interpelado por um canal de televisão estrangeiro a respeito
de sua condição, de ser o único negro em um grupo de 40 escritores brasileiros,
selecionados para a Feira do Livro de Frankfurt na Alemanha, respondeu não ter
notado ou pensado sobre o fato. Contudo, ao fornecer dados de sua biografia,
situou importância sociocultural dos morros e favelas cariocas e enfatizou a
“Pequena África”[19] como
parte do imaginário que influencia sua vida e obra. Após confidenciar que morava
em São Paulo havia um ano, encerrou a conversa com um belo e emocionado poema
em homenagem a sua mãe.
Há entre nós, na
periferia Sul, um poeta muito bacana que quer criar a Academia Periférica de
Literatura. Não considero impossível imaginar no futuro Paulo Lins talvez como
o segundo escritor negro e o primeiro autodeclarado na prestigiada instituição:
Academia Brasileira de Letras. As populações negras impedidas de frequentar as
escolas reservadas aos brancos médios, desde a década de 1920, designam suas
criações culturais destinadas à performance pública, “escolas e academias”.
Academias e escolas de samba, trata-se de ironia fina ou simples imitação?
A escrita ocidental foi
sequestrada e transformada em tecnologia de combate contra a desumanização de
escravizados africanos. Um dos mais antigos textos dessa saga foi escrito por
Olaudah Equiano[20]. Um
ioruba, que viveu na América, lutou e morreu na Inglaterra no final do século
XVIII.
Muito cedo, textos
técnicos, administrativos, comerciais e diplomáticos em português arcaico e latim
foram produzidos por centro-africanos ante aos contatos coloniais[21].
Alfabetizados negros surrupiaram as técnicas de escrita musical dos eruditos
brancos e produziram cultura musical negra e erudita no Brasil, desde fins do
século XVII.
Acompanhando nosso atlântico
negro sul podemos mesmo dizer que os textos abolicionistas de homens e mulheres
negras que circularam no mundo consistiram na primeira forma literária
singularmente negra, confeccionada com utilização da grafia ocidental, e tinham
cunho artístico inegável, assim como objetivos políticos confessos.
No Brasil atual as mais
altas taxas de analfabetismo são verificadas entre os pardos e negros. A
exclusão escolar é fato inconteste, e o racismo antinegro, como sistema de
controle, tem uma função especial nesse quesito. A modernidade não existiria
como conhecemos, sem a expansão exponencial da escrita e da leitura, mas também
das restrições do acesso a elas. O racismo antinegro não seria tão eficaz no
Brasil, não fosse a exclusividade de escolarização média e superior dos
eurodescendentes.
Quem lê no Brasil? O que
se lê no Brasil atualmente?
O movimento dos saraus tem gestado um novo mundo de leitores
e escritores nas periferias brasileiras. Aqui e acolá, pessoas e coletivos
indicam a existência efetiva de uma nova cultura escrita apropriada por novos
agentes sociais, cuja escolarização formal começa a atingir o ensino médio
completo. A faixa composta de novos e desconhecidos leitores desenvolvem
hábitos de consumo cultural pouco compreendidos, e até desconsiderados enquanto
tal, inclusive pelos produtores e livreiros periféricos.
Esse mercado de consumo
de livros faz circular obras, contraideologias, temas e materiais ainda não
capitalizados pela indústria cultural. Até quando?
Algumas questões cruciais
são: Até que ponto os produtores culturais marginais, negros e periféricos
estão produzindo valores culturais efetivamente novos e anti-hegemônicos e até onde
buscam simplesmente estratégias para serem incorporados pelas estruturas
institucionais da cultura dominante paulistana e nacional? Até que ponto esses
produtores têm consciência ou não do abismo social e cultural que distinguem e
separam os setores negromestiços e subalternos em relação às classes médias e
altas dentro da sociedade brasileira? Até que limite suas criações tomam esses
mundos apenas como conteúdo, mas não como forma? Periferia é um lugar de
enunciação ou há efetivamente uma estética específica?
Diferente da produção de
Paulo Lins, a criação e circulação periférica de literatura não conta com
nenhuma estrutura profissional de propaganda e difusão. Talvez de fato nem
possa ser designada mercado nos termos em que trabalha a indústria cultural
livreira. Exceto um ou outro poeta ou escritor consegue transpor a geografia
dos saraus e estabelecer diálogos e padrões de vendagem “autossustentáveis” e
continuidade criativa. Entretanto, é possível visualizar um quadro futuro em
que a leitura e escrita criativa não sejam mais privilégio de classe e raça,
exotismo ou rara exceção no Brasil.
Tenho coletado dados e
impressões sobre dois diferentes tipos de frustração entre criadores de
teatrais negros engajados, por exemplo, quando buscam em vão o reconhecimento
de suas obras pela crítica teatral convencional e pelo setor profissional a que
pertencem. Por vezes, não conseguem compreender que o sistemático desprezo que
suas criações sofrem, se deve-se tanto ao inusitado do seu lugar e perspectiva,
como a uma violenta reação do meio cultural hegemônico em que , onde suas
produções teimam serem inscritas.
Um setor social e
profissional que não admite a ideia de concorrência advinda de fora do círculo,
por isso incluem tais produções como algo de menor valor ou as denunciam como
alienígenas, estigmatizando-as pelo fato de não se enquadrarem nos padrões
“normais” de criatividade e fruição.
Avisado por Guerreiro
Ramos sobre o papel da autofagia entre nós, não podemos mais alegar
ingenuidade. Também estamos bem atentos à complacência estética e paternalismo
político, social e cultural enraizados nesse padrão de sociedade que herdamos.
Como podemos construir um modelo interno de crítica capaz de estimular a
criatividade, fomentar a visibilidade e buscar a unidade política que
necessitamos para suplantar a hegemonia da branquitude[22]?
A indústria do desejo tem proeminência na breve São Paulo, mas seus
famosos outdoors foram substituídos
paulatinamente por TVs de metrô e ônibus. Quais as imagens de São Paulo? Depende
de quando, como e por onde você
entra na cidade. Quero dizer, que veículo se penetra na cidade. Quais sentidos mobilizamos
para apreendê-la desde os primeiros contatos. E principalmente como nos deslocamos
nela, sendo dia ou noite. Quais partes dela acessamos?
A suposta identidade paulistana não é muito antiga, mas, vigorosa,
porque desde a chamada Revolução de 1932, e talvez dez anos antes, vem sendo
tecida de fios finos de memórias reais e invenções ficcionais incríveis. Cidade
arte pública[23],
cidade monumentos[24],
cidade projeto arquitetônico[25].
Involuntariamente, eu e Milton Santos contribuímos para alimentar essas
texturas. Com nossos desejos e interdições alimentamos os discursos sobre os
aspectos superlativos da cidade-cenário.
Diferente de nós, a fotógrafa e produtora cultural Sheila Signário
registra crianças sem teto. Em meio à violência desproporcional, as existências
frágeis e erráticas, novos nomadismo. Ela sente-interpreta imageticamente a
cidade aos olhos de infantes sem chances. Os fotógrafos Wilson Cortez e Guma
Galina também têm realizado registros visuais inéditos, formando um belíssimo
acervo fotobiográfico das beiras. Criam poesias visuais derramadas e épicas,
imagens trespassadas e dramáticas de tudo que transborda vida urgente: música,
cotidiano e beleza, teatros sem palco e dança. Panorama aberto e fluido das
efêmeras cenas culturais periféricas. Em conjunto tramam e constroem uma contra
contracultura imagética em que pululam negros e negras, seres periféricos. Dinamicamente
criativos são criadores e personagens recriados visualmente. Cidade-texto negra
de becos e vielas em contraposição aos jardins de alamedas alvas e arborizadas.
Por décadas, nas zonas pobres da cidade, as hordas de jovens negros e
pobres perderam seus campinhos de várzeas para obras públicas. Sem choro nem
registro. O fotógrafo, editor e videomaker Cassimano Nanau roda por ali, de
câmera em punho, a partir do limítrofe sudoeste, Jardim Jaqueline. Vem fixando
digitalmente o pouco que ainda escapou dessa determinação da política urbana. Terminais
de ônibus, unidades básicas de saúdes, hospitais regionais e creches vão
surgindo onde antes existiam os únicos espaços de lazer na periferia. É essa
modernidade urbana tosca, perversa ou nada.
Quem são esses coletores de almas, passados e horizontes? Helder
Girolamo, Alex Ribeiro, Grazii Ribeiro, Douglas Arruda, Ivan Lino? Você curador
oficial os conhece? Viu algum catálogo de capa dura deles, com emblema de
empresas mineradoras, secretarias ou ministérios?
Uma casa de cultura semiabandonada, aqui e ali um Centro de Educação
Unificada (CEU), uma Fábrica de Cultura ou uma unidade do Serviço Social do
Comércio (Sesc). Isso que tem sido capitalizado como “política cultural” nas
propagandas das campanhas eleitorais dos candidatos aos cargos públicos. Marketing
sem desfaçatez nos períodos que antecedem os pleitos municipais e estaduais.
Cultura, arte e lazer para quem?
Desde os anos 1970, a pasta de Cultura foi separada da pasta de Higiene.
A cidade teve em três tempos três atores e homens de teatro na pasta da
Secretaria Municipal de Cultura. A partir da década de 1970: Sábato Magaldi,
Gianfrancesco Guarnieri e Celso Fratesch. Por lá só passaram: músico, poeta,
jornalista, filósofa, dois sociólogos, um urbanista[26].
Estes últimos formados na USP.
A filósofa Marilena Chauí, professora da USP, assumiu o posto de Secretária
Municipal de Cultura no primeiro ano de governo Luiza Erundina, quando esta
pertencia ao Partido dos Trabalhadores. Introduziu uma inovação administrativa
ao implantar um sistema de Casas de Cultura, em antigos prédios desativados das
administrações regionais (atuais subprefeituras) da cidade. Durante os anos de
sua gestão ampla movimentação cultural foi registrada nas periferias, com
aparecimento e relativo reconhecimento de um conjunto de práticas e expressões
culturais novas de setores pobres e periféricos. Naquele contexto, a definição
recorrente era cultura popular. O que escapasse era catalogado como Cultura de
Massa.
Grupos de teatro, música, dança, literatura, circo, cinevídeo
encontraram refúgio provisoriamente nas 13 Casas de Cultura[27]
espalhadas nos extremos da metrópole. Era acolhimento e espaços para ensaio,
criação e circulação de suas produções. Contudo, os equipamentos públicos
centrais continuaram a ser utilizados nos mesmos padrões anteriores de
favorecimento e corporativismo, principalmente pelos chamados “corpos estáveis”[28]
e pelas empresas de entretenimento, devidamente “cadastradas” e inseridas nas
formas institucionais de fruição artística.
Independe da política
cultural dessa ou daquela gestão, as presenças negras citadinas são fatos socioculturais
já flagradas por alguns olhares e gravadas em registros esparsos, mas
consistentes pelas musicalidades e literaturas negra, marginal e periférica.
Nem sempre a memória oficial da cidade se dá conta de que africanos e seus descendentes
a estejam fabricando. Desde a formação do modesto burgo, circulando inclusive
no centro. Conhecemos melhor suas bordas e margens. Cruzamos biqueiras,
pinguelas e pontes. Morrendo nas avenidas e alamedas bem limpas da cidade como
operários e só? Até quilombos urbanos os negros paulistas vivenciaram na
formação da metrópole.
A cidade hegemônica se dá
conta da sua presença somente quando a tensão sai do nível do racismo
pretensamente cordial. Quando a tensão latente eclode. A desigualdade produz um
tipo de legitimidade discursiva que na maioria das vezes se referenda na noção
liberal de competência e igualdade jurídica formal. Saudosos somos de uma Chauí
questionadora e contundente dos anos 1980. Tratando da questão do silêncio e
poder cultural, ela salientava:
Quando examinamos
as precondições que dão direito a alguém para agir, falar e ouvir descobrimos
que esse direito é dado apenas para aqueles que possuem os conhecimentos
científicos, técnicos, artísticos e filosóficos estipulados pelos dominantes;
faz , fala e escuta quem “sabe” e possui “cultura”. O resto obedece porque é
incompetente. O mito da “competência” significa simplesmente um enorme processo
de uso de uma certa cultura para excluir da ação social, política e cultural e
do discurso do conhecimento todos aqueles que foram economicamente e
politicamente excluídos. Pela “competência” se realiza a invalidação social,
política e cultural dos “incompetentes”. Ora, quem em nossa sociedade é o incompetente
por excelência, senão os trabalhadores, as mulheres, os negros, os índios, os
homossexuais, os jovens, as crianças, os velhos?[29]
Após a implementação
mal-acabada do sistema de casas de cultura, talvez seja provável que a maior
inovação política cultural na cidade e no estado tenha sido a regulamentação do
financiamento público da criação, produção e circulação artístico-cultural, por
meio do sistema de fomento. Qual seja, um regramento de apoio financeiro a
grupos e indivíduos via licitação pública, sempre condicionada à contrapartida.
Mas, ainda assim, grupos identificados com estéticas artísticas hegemônicas
denominadas universais, introduziram em alguns editais, cláusulas impeditivas
quase imperceptíveis, que criam barreiras intransponíveis às estéticas
emergentes e aos grupos culturais periféricos ou divergentes.
Medrando sob a velha e
nobre São Paulo, encontramos a teimosa Sampa Negra nos poemas, textos
jornalísticos e memórias de Luiz Gama[30],
nas pinturas e falas de José Correia Leite transcritas por Luiz da Silva Cuti
(1992)[31],
na poética de Lino Guedes e nas polifonias literárias prefiguradas pelas várias
edições do Grupo Quilombhoje de Literatura Negra. Atualmente podemos senti-la
pulsar nas edições radiofônicas e impressas da Toró, editora concebida pelo
poeta, ensaísta e pesquisador Allan da Rosa. Essas contraculturas negras e
periféricas paulistanas são nossas locomotivas para a modernidade negada.
Outras memórias e
histórias negras vão se configurando, à medida que prospectamos novos e velhos materiais,
ideias, canções, poemas, imagens e textos. Montamos cenários de possibilidades
interpretativas, como quebra-cabeças de tempos, geografias e figuras humanas. Vai
se confirmando que, ao ativismo negro brasileiro e paulistano, as artes
engajadas têm sido fundamentais na construção de jogos de contraste e
alteridades. No deslocamento dos dispositivos de poder[32] e
instauração de outras relações, mas, nem por isso, mais equilibradas. Ainda.
Entendendo que quem define sua arte como negra sabe o risco
que corre, mas quer intencionalmente enfatizar a especificidade e diversidade
cultural da ascendência africana. Isso significa colocar intencionalmente em
evidência visões de mundo que dialogam com a cultura ocidental contemporânea,
mas não podem ser completamente incorporados, nem refletidos por ela sem
tensão.
Os críticos desinformados
gritam que isso é essencializar ou mitificar a África. Esquecem que durante os
dois últimos séculos quem inventou e inventariou as raças foram os intelectuais
ocidentais. Quem transformou a raça em categoria social fundamental para
conhecimento da diversidade humana, definitivamente hierarquizada, foram os
filósofos e cientistas ocidentais. Também foram eles a definir o fim de sua
validade. Diferente do que se deu no ocidente, ninguém aqui está reivindicando
a superioridade racial dos negros, mas as singularidades culturais das
civilizações africanas e seus desdobramentos na diáspora.
De fato, a África tem
funcionado aqui, em muitas circunstâncias diaspóricas, como princípio
civilizatório organizador de imaginários, discursos e recursos. Não se trata de
continuidades mas de reinvenções. Em outras palavras, elaboração[RB1] de narrativas alternativas a
“historia única” do mundo, como indica a escritora Chimamanda Adiche[33].
Essa reivindicação de
pertencimento surge a partir de lugares, situações, sensibilidades e princípios
civilizatórios absolutamente distintos, embora provocados pelo mesmo movimento
da expansão econômica e cultural do ocidente. Seus resultados culturais,
políticos e estéticos também são e só podem ser de outra natureza. Nesses casos,
a África é uma inflexão temática e conceitual oportuna e necessária; revela
perspectiva e prospecção e é simultaneamente passado revisto, presente reposto
e futuro antecipado.
Num passado recente, alguns
descendentes de africanos desconfiavam das imagens de selvageria e barbárie do
passado. Outros hoje o fazem com a retórica de caos e desesperança projetados
pela mídia sobre o continente africano. Rebouças reteve da África uma ideia de
futuro da humanidade[34]. A
inviabilidade da África no mundo contemporâneo parece significar, por
conseguinte, a inviabilidade também dos afrodescendentes espalhados pelo mundo.
Capulanas é o nome
escolhido por jovens atrizes negras para dar materialidade à sua Companhia de
Artes Negras. Trata-se nominalmente das protagonistas de seu próprio enredo:
Débora Marçal, Priscila Preta Obaci, Adriana Paixão, Carol Ewaci e Flávia Rosa,
todas oriundas de grupos culturais e artísticos que surgiram e atuam na Região Sul,
na periferia de São Paulo nos últimos dez anos.
Movidas por um desejo
insaciável de aprendizagem e revisão estética, atravessaram as fronteiras do teatro,
da dança-afro e das musicalidades negras para instaurar dramaturgia e
performance autoral nas periferias da cidade. A pesquisa tornou-se uma palavra
de ordem e tem ditado o ritmo dos trabalhos e das apresentações. Por isso, para
quem as assiste de tempos em tempos fica com a impressão imediata de constante
refazer-se, mas, muito mais que isso. Seu último espetáculo, Sangoma, em que repertoriam
experiências de curas, a partir de medicina tradicional africana, tendo-se em
vista a saúde das mulheres negras, principais vítimas do racismo aplicado a
campo do saber médico como sistema de controle racial antinegro. A saúde mental
foi a medida mais saliente e eficaz contra os inadequados, mas não faltou projeto
e práticas de esterilização massiva.
Capulanas é ação e
reflexão contínua, superação de limites sociais e artísticos, revisão de
conceitos e depuração dos dramas pessoais e tudo isso sempre no sentido da
sofisticação do conteúdo em foco, do aprimoramento técnico, textual e
interpretativo. O grupo tem uma base técnica composta também por homens negros
jovens, que perseguem os mesmos objetivos, mas há uma singularidade firmada nas
experiências socioculturais das mulheres negras do passado e do presente que o
define e coloca sua cara no mundo.
Originalmente é uma palavra de origem no
tronco linguístico bantu (línguas definidas pelos pesquisadores como
nigero-congolesas), especificamente pertence ao subgrupo linguístico tsonga que
é falado na costa leste da África por quase 3,5 milhões de pessoas em
Moçambique, Zimbábue e Suazilândia. Capulanas por aquelas bandas é o nome que
se dá a um tecido utilizado pelas mulheres para cobrir a parte inferior do
corpo, uma espécie de canga. Ocasionalmente, cumpre papel de sobressaia podendo
ser também jogado sobre os ombros como xale, turbante, anteparo de objetos
levados à cabeça ou ainda as mães os usam para transportar os nenês às costas.
No passado, era produzido artesanalmente, mas desde o século XX passou a ser
industrializado fora da África e comercializado por lojas e ambulantes nas
feiras dos centros urbanos.
Capulanas soma-se, pela
temática, a outros grupos teatrais que tomam as questões culturais, raciais e
étnicas negras como feixe para daí extrair filigranas de negritudes variadas.
Esse é o caso do Coletivo Negro, Os Crespos, Teatro Popular Solano Trindade, Quizumba,
entre outros, em São Paulo e arredores.
Num sentido, vislumbramos as
biografias e criações estético-poéticas, mas também os textos jornalísticos e
técnicos produzidos em diferentes âmbitos por figuras de abolicionistas negrxs
como Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Teodoro Sampaio e Manuel Querino, entre
uma centena de nomes. Evocando Frantz Fanon[35]
em sua exegese dos efeitos sociais e psíquicos racismo do antinegro, também devemos
nos preparar do ponto de vista de uma ética intelectual negra, capaz de por
foco sobre contradições e equívocos, ambiguidades e ansiedades humanas, as
quais, nós negrxs, não estamos isentxs.
Em outro sentido, podemos acatar Gilroy, fazendo a crítica ao caráter anglofônico,
por vezes até hermético do seu atlântico negro. Ajustando a frequência do nosso
receptor para localizar melhor o atlântico negro no eixo Sul. Por exemplo,
quando nossos vetores diaspóricos negrxs brasileirxs elaboraram e emitiram
sinais gráficos, sonoros e imagéticos codificados pelas matrizes africanas ou
quando leram e processaram as informações, conteúdos estético e políticos, produzindo
estímulos contra-hegemônicos e ressignificaram aqueles que alcançaram o porto
de Santos.
Falo aqui de canais marcadamente negros, em fluxos descontínuos e
desiguais, em emissões e recepções na direção dos mundos negros situados seja
nos EUA seja Senegal, Cuba, Martinica ou Europa. Da mesma maneira, podemos
inventariar e dar a conhecer as múltiplas projeções e imaginários que a África
foi assumindo nos discursos e produções culturais afro-diaspóricas brasileiras.
Imaginários transformados em canções, roupas, adereços, gravuras, pinturas,
performances públicas e privadas, missas, discos, espetáculos, coreografias,
discursos políticos, práticas religiosas etc[36].
Podemos ainda observar como educadores, artistas, intelectuais e pessoas
negras comuns lançaram mão de tecnologias próprias da sociedade moderna para
criar projetos e utopias, objetos e ideias vinculadas a história e cultura afro-diaspóricas,
quando não para demonstrar outras possibilidades de uso desses sistemas fora da
ordem vigente. Nesse sentido, creio que as máquinas voadoras do José do
Patrocínio e os projetos arquitetônicos dos irmãos Rebouças já não podem ser
dissociados das ações políticas destes em prol da abolição da escravatura.
Trata-se de criatividade e liberdade, inventividade e criação artística,
mudança social e revolta tecnológica.
As tarefas de uma intelectualidade negra contemporânea politicamente
comprometida são urgentes e variadas. Ainda estamos por mapear e considerar
histórica e culturalmente como válidos os indícios deixados pelos viajantes
baianos e fluminenses que faziam comércio de artigos religiosos entre Rio de
Janeiro-Salvador e Golfo do Benim nos séculos XIX e XX. Como também podemos
interpretar as relações, visitas e correspondências duradouras de ativistas
negrxs brasileirxs de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, com o poeta Cubano Nicolas
Guillén com membros da Frente Negra Brasileira, a bailarina estadunidense Katherine
Dunhan com os ativistas do Teatro Experimental do Negro e os constantes laços do
professor e coreógrafo estadunidense-baiano Cleyde Morgan com a geração de
Firmino Pitanga e Mário Gusmão, a partir de Salvador desde a década de 1970.
Podemos também preparar nossos
espíritos e sensibilidades para suportar a leitura labial de feições vincadas
pela perda, distância e profunda melancolia, vozes plasmadas por lábios, textos
e criações artísticas e intelectuais de homens e mulheres negras enviados para
outros exílios, novas diásporas. Diásporas negras autoimpostas, ou não,
emigração a ter que viver a dor da eterna proscrição ou invisibilidade em sua
própria sociedade como, por exemplo, no século XIX, Rebouças, e no século XX, o
bailarino Ismael Ivo, o músico Nana Vasconcelos, o compositor Moacyr Santos, o
sociólogo Guerreiro Ramos ou o perfomer e compositor Satranga de Lima e sua
poética homoafetiva.
Acima de tudo, devemos nos preparar melhor para receber verdadeiros
bombardeios supostamente fraternos e interraciais de todos os lados, tal como
no passado receberam Guerreiro Ramos, Abdias e Maria Nascimento do grupo ligado
ao sociólogo Luis Aguiar da Costa Pinto[37].
Ou estarmos atentos também aos embates profundamente desiguais, como aqueles
travados pelos membros da Frente Negra Brasileira contra a intelectualidade paternalista
e racista dos anos 1930[38].
Ou ainda aquela travada por Peter Fry nos anos 1970 contra os ativistas,
fundadores do Movimento Negro Unificado em São Paulo, por ocasião de sua
pesquisa sobre Cafundó ao lado de Carlos Vogt e Robert Slenes[39].
Nossa questão aqui é pensar: Como ativistas e intelectuais, artistas e
criadores culturais negrxs têm experimentado e interpretado esse modernismo
reacionário no Brasil? Em
tudo vamos desconstruindo ou parcialmente confirmando percepções mais ou menos
conflitantes sobre a presença negra em São Paulo.
Florestan Fernandes (2010)
fez uma trajetória acadêmica e política admiravelmente comprometida com a desconstrução
da mística da democracia racial freyreiana. Contudo, não deixou de construir interpretações
equivocadas que, num primeiro momento, tenderam a sustentar a ideia de
incapacidade dos negros à adaptação às sociedades de classes, revelando
profunda negligência à compreensão do racismo tradicional e estrutural. Qual
seja, buscou as origens, causas e motivações para as desigualdades raciais
contemporâneas no passado escravagista, quando na verdade lá estão apenas suas
matrizes, mas não os mecanismo de sua perpetuação e desdobramentos.
Uma passagem crítica do
seu pensamento pode ser localizada em texto apresentado em 1976 nos Estados
Unidos e publicada em circuito fechado:
A
situação histórica, porém, não é tão adversa à população negra, como foi
durante o primeiro ciclo de prosperidade econômica da cidade, dos fins do
século XIX, dos fins do século XIX à crise de 1929. Então a população negra
vivia dentro da cidade mas sem pertencer a ela, tratava-se de uma condição
extrema de isolamento cultural e de marginalização socieconômica. As
oportunidades iam para os brancos, especialmente para as famílias tradicionais
ou imigrantes. O progresso estuante não existia para o meio negro, mergulhado
na mais extrema desorganização social, pauperismo e desalento, uma fase
dramática e amarga, que suscitou a imagem do emparedamento do negro[40].
Um longo e sinuoso caminho
tem sido percorrido na sociedade brasileira para levá-la primeiramente ao
reconhecimento da existência dos racismos em geral, depois convencer a opinião
pública em geral das especificidades dos racimos antinegro e anti-indígena no
fazer-se dessa mesma sociedade. O reconhecimento ou não do fenômeno tem a ver
com a legitimidade para que se possa cobrar do estado e da sociedade uma nova
abordagem do problema.
Durante mais de meio
século o ativismo antirracista se embateu com instituições hegemônicas, justamente
nesse sentido. Nos últimos 20 anos eclodiram novas consciências negras, não
apenas no meio urbano, como também no meio negro rural, em regiões onde os
movimentos negros não tinham assento. Houve uma verdadeira descentralização dos
movimentos negros, que tem se voltado muito mais para formação interna do que para
o debate externo. Os ativismos negros descentralizados, em larga medida, têm produzido
como efeito esgotar os pequenos dutos de prestígio das lideranças negras
institucionalmente atreladas, gerando demandas e ações não previstas nos
calendários e agendas oficiais.
A recolha de demandas das
comunidades negras e seu carreamento para os canais institucionais de
participação política, por décadas, funcionaram como estratégia de ascensão
social individual, mas também represou nas bordas as frustrações e tensões
acumuladas pelos baixíssimos níveis de mobilidade. Acima de tudo, assimilou as
justificativas para a violência sistêmica, qual seja, aplicação desproporcional
das penas ou mesmo eliminação física e sistemática dos indivíduos mediante as
características raciais.
A relativa democratização
das ferramentas de comunicação digitais a distância e a inovação tecnológica
como um todo potencializaram essa tendência de descentralização, que vinha se
processando no interior das populações negras desde início da década de 1980.
Contudo as instituições, de maneira geral, ainda não assimilaram por completo
os índices dessa profunda mudança.
De maneira geral, os
ativistas antirracistas, intelectuais e pesquisadores negros têm atribuído
pouca ou nenhuma atenção aos estudos sobre a parcela branca da população
brasileira. Não por razões instrumentais, mas também por isso é importante
compreender os parâmetros, as dinâmicas, o mecanismo da reprodução e a perpetuação
da hegemonia dos brancos brasileiros sobre negros, mestiços e indígenas.
Por detrás de uma história
triunfalista da imigração europeia repousam tensões e hierarquias entre
brancos, degradações e discriminação entre estes e trabalhadores brancos e
negros, xenofobia, como interações, intercâmbios e experiências de convivências
interraciais a serem conhecidas e enfatizadas[41].
Podemos mesmo tratar de
uma tradição afro-brasileira de diferentes tentativas solapar a hegemonia
branca no âmbito da cultura letrada e artística. Essa tradição de um ativismo
político, artístico e cultural, em que predominam descendentes de africanos, aos
quais nos referimos como Movimentos Negros.
Este texto nasceu do
debate desenvolvido em torno do conteúdo racista presente na peça de teatro
encenado pelo grupo paulista Os Fofos, no Instituto Itaú Cultural no primeiro
semestre de 2015. A peça cuja criação teria acontecido nos anos 1990 já havia
sido encenada várias vezes, e segundo seu diretor jamais teria sido alvo de
qualquer contestação. Contudo no próprio público emergiu um artista que,
questionando o referido diretor, trouxe o fragmento de um registro textual, no
qual uma espectadora da mesma peça submeteu o conteúdo do texto dramatúrgico a
questionamentos sobre seu caráter antinegro.
Não pretendi tratar da
peça de teatro em si, mas da permanência do silenciamento do racismo de maneira
geral na sociedade brasileira e da especificidade do racismo antinegro no meio
artístico cultural paulista. Ou seja, desenvolvo aqui uma reflexão específica
sobre o que defino como pacto racial brasileiro e da sua manutenção no âmbito
da cultura e, sobretudo, da cultura artística.
Estou definindo como cultura toda forma de existência
material e simbólica humana e afirmando como cultura artística toda expressão
estética, passível de exploração econômica ou não. Trata-se de convenções
questionáveis, mas ao mesmo tempo amplamente aceitas e difundidas por meio da
escolarização e dos veículos de comunicação massiva. Sua origem é certamente a
Europa ocidental e sua imposição se deu mundialmente no processo que podemos
chamar de expansão do ocidente.
O racismo antinegro é um
fenômeno complexo porque envolve formas nem sempre visíveis de discriminação e
outras práticas tradicionais de rebaixamento e destrato social de difícil
percepção e logo de igual dificuldade na denúncia e combate aberto. Sobretudo,
envolvem também novos consensos interpretativos, que se embatem com
estabelecimentos conceituais, manipulados por setores culturais, acadêmicos e
políticos hegemônicos. A interpretação do racismo antinegro tem sido, por
conseguinte, desde a década de 1930, um campo de disputa intelectual e
política.
Também podemos escalonar
leituras do ativismo antirracista desde os negros dramas de Hamilton Cardoso e
Eduardo de Oliveira e Oliveira e erigir novos símbolos. Quiseram nos mostrar os
prenúncios das novas relações raciais, quando se constataram o esgotamento e a armadilha
da fixidez das teorias de classe para compreender e refutar os racismos. Porém,
tal inovação metodológica foi adiada ou mesmo abortada pelo desaparecimento
precoce de ambos. Mortes sem explicação, nem sentido, a não ser o Negro Drama.
Beatriz Nascimento e
Abdias Nascimento partiram de conceitos similares, mas elaboraram diferentes
versões tendo em vista a atualização do conceito Quilombo para moldar novas
realidades sociais urbanas negras e brasileiras na segunda metade do século XX.
Ambos parecem ter se afinado à ideia de Malcom X de que o retorno à África era
de natureza simbólica, e a transformação dos valores civilizatórios africanos
em signos de libertação serviriam como espécie de condutores de energia vital.
Beatriz e Abdias antecedidos por Clóvis Moura parecem ter experimentado essa
espécie de epifania intelectual afro-diaspórica ante à brisa mística do atlântico
sul.
Hoje, em meados da década de 2010, poetas que frequentam as
sessões de reconstrução de vínculos e autoestima realizadas pela Cooperifa e do
Sarau do Binho, Sarau do Grajaú, Sarau da Ponte Pra Cá e tantos outros também
reivindicam uma memória quilombola e retomam a mística do texto escrito e declamado.
Palmares e Canudos estão lá. Erguem novos signos identitários, como aqueles do
nego Jansem em seu inaugural Quilombo Imaginário de Santo Amaro, nos anos
iniciais da década de 1980[42].
Algumas são formas longevas de auto-organização, criação e difusão
artístico-culturais, outras são ONGs oportunistas e parasitárias que penetram
no território, atraídas pelas possibilidades de exploração de mão de obra e
obtenção da legitimidade necessária ao acesso de novos financiamentos em
agências nacionais e estrangeiras. Ali, aqueles enraizados enunciam as tentativas e possibilidades
de uso e inovação das linguagens artísticas ocidentais, combinadas com códigos
e signos de origem africana ou afro-diaspóricas criteriosamente escolhidas. A
contar por Equiano, Luiz Gama, Guerreiro Ramos, Beatriz Nascimento parece que
esse tem sido um método recorrente e eficaz.
Sejam como estratégias,
tecnologias ou veículos são Barcos Negros na Kalunga Infinda. Isso nos coloca
em compasso com uma espécie de cosmopolitismo negro, que possibilita elaboração
de versões, contranarrativas ou “narrativas dissidentes da modernidade”
brasileira, que tem combinado tanto mudança social e tecnológica constante com
manutenção e controle social, tradicionalismo político e cultural.
Hall (2005) caracteriza a
modernidade como sociedade da mudança enquanto nos passa a impressão que não
haveria mudança nas sociedades tradicionais[43]. Esse
aspecto do seu pensamento nos parece um tanto equivocado, no sentido que,
também nas sociedades tradicionais, as mudanças se processam de forma que pode
ser compreendida como mais lentas. Nesse caso, a analogia da modernidade como
mudança rápida e constante pode ser considerada uma forma de autoelogio do
ocidente a si mesmo, uma herança hegeliana da concepção de história como
movimento. Mas a filosofia da história de Hegel é justamente o ponto nodal da
negação de historicidade às civilizações africanas.
Como poderíamos pensar em
mudança rápida se temos consciência de 400 anos de duração do tráfico negreiro
e escravidão legal e, ao menos, 250 anos de racismo científico?
Algumas práticas negras e
antirracistas que atuam na cidade abrem mão da institucionalização e acatam o
signo do movimento constante e tudo aquilo que é provisório e efêmero. Não há sede,
nem hierarquia e primam por uma relação fraterna e horizontal entre os membros
jovens masculinos e femininos. Certamente existem conflitos e problemas
variados, mas esses grupos de jovens negros e negras têm conseguido lidar com
desafios criativos e educacionais, com ações concretas e elaborações
intelectuais e artísticas muito complexas. Por isso, teimo em mencionar o
trabalho que o Terça Afro realiza para fechar este texto.
Aqui São Paulo. Cantaram Racionais Mcs. Terça Afro nasce nesse contexto e
faz emergir o que Stive Biko definiu como Consciência Negra na luta contra o
racismo institucional na África do Sul.. Qual seja, um impulso político e cultural
capaz de mobilizar os negrxs do mundo, em torno de um projeto de emancipação
política e racial definitiva e humanizadora.
A consciência negra,
entretanto, não pode ser aprendida em uma cartilha filosófica dogmática e
fechada como imaginam as mentalidades autoritárias. Justamente porque deve
estar circunscrita a cada dinâmica política, conjuntura temporal e contexto
específico. Lá, Biko lançou um petardo cognitivo que pode ou não ser capturado
e submetido a novos desígnios.
Numa conjuntura de profunda desigualdade e racismo antinegro
e anti-indígena que se reinventa, o que podem fazer jovens negrxs além de viver
sob o impacto cotidiano da segregação? Qual função e propósito têm um grupo de
jovens negrxs envolvidos com artes, culturas, memórias e identidades? Que tipo
de ação tem condições de realizar frente ao niilismo, individualismo,
narcisismo dirigido a eles pela indústria do entretenimento e do consumo em
geral?
Pelo que tenho
acompanhado, eles respondem a esses desafios produzindo micro anti-ideologias e
práticas políticas fundamentadas em quatro pilares: negritudes, sociabilidades,
artes e afetos.
Negritudes: admitem a
existência de pertencimentos diversos à origem africana e tomam como positiva a
diversidade negra experiencial histórica e subjetiva. Fuçam e reviram as
memórias, histórias e africanidades. Visitam figuras humanas históricas vivas,
mas desaparecidas para estabelecer um diálogo intenso com as histórias
africanas e diaspóricas.
Sociabilidades: elaboram
sofisticadas estratégias para um “estar juntos”, convivendo, partilhando,
descobrindo, gerando tensão e relaxando as relações a partir da criação e
execução de programas, projetos e eventos. Contornam conflitos pessoais e
competitividades para partilhar horizontalmente os desafios e retornos
(financeiros e emocionais) advindos de cada ação planejada e desenvolvida.
Artes: encontram nas
linguagens codificadas como expressivas as estratégias e os veículos para
comunicar suas experiências e reanimar memórias negras abandonadas pelo espólio
da guerra cultural-racial antinegra. Elaboram, fazem fluir e intercambiam
imagens fílmicas e fotográficas digitais; textos sonoros, impressos e
virtuais; conteúdos e valores musicais; técnicas de registro e formas
criativas e tecnológicas.
Afetos: lançam desafios
para a aproximação direta, fomentam troca de gentilezas, mas não escamoteiam
dissidências, medos e divergências. Politizam o carinho e a violência,
tratando da tendência ao isolamento como um fator de adoecimento que incidem
sobre os urbanos, mas desumanizam mais aqueles socialmente abandonados e
segregados.
Tanto na percepção de Beatriz Nascimento como na de Abdias
do Nascimento, as experiências sociopolíticas designadas Quilombos poderiam
servir como plataforma tecnológica para redimensionamento da presença negra
na sociedade brasileira. Isto é, preconizavam como devir, uma nova forma de
fazer política no Brasil que valorizasse as matrizes culturais africanas
presentes no nosso imaginário. Talvez, por compreenderem criticamente o
monopólio das elites brancas sobre as instituições culturais, sociais e
políticas (partidárias) convencionais, vislumbraram uma rota de fuga para os
descendentes de africanos, de forma que mantiveram fortalecidos e aptos para
um novo tipo de confronto.
A ação cultural,
artística e política chamada Terça Afro é um diapasão afinado com os
pressupostos de Biko, definidos como Consciência Negra e simultaneamente
repercutem os Quilombismos de Beatriz e Abdias Nascimento e Quilombagem de Clóvis
Moura. O aquilombamento tem permitido construir autoimagem a partir de dentro
e elaborar ferramentas de arqueologia cultural e tecnologias de combate ao
racismo normativo e cotidiano.
Um grupo de jovens
urbanxs, autodefindxs como negrxs que a partir de sua própria experiência
interpretam a realidade brasileira, girando seus binóculos digitais para
captar e processar os dados sobre a periferia da cidade mais rica do país.
Constatam as continuidades dos diagnósticos feitos por gerações anteriores de
ativistas. O racismo antinegro é rápido, dinâmico. Turva a visão, dilata-se,
readapta-se para manter as hierarquias estruturais e seculares.
A base do trabalho? Rodas
de conversas com convidados e abertas ao público. Numa primeira olhada, suas
estratégias parecem ser bastante simples, mas não são, a saber, convivência,
diálogo, criação estética e leituras/interpretações das experiências de si e
dos outros.
Cárcere e morte são temas bastante caros aos movimentos negros que,
desde a década de 1970, têm aprofundado crítica ao fenômeno que Abdias teria
indicado como “genocídio do negro Brasileiro” bem antes que as políticas de
segurança, baseadas no noção estadunidense de “tolerância zero”, fossem
implementadas por aqui.
Jovens
negrxs autores de suas próprias biografias, que buscam compor uma visão de
campo e, ao mesmo tempo, redigir um contradiscurso que fortalece o sentimento
de pertença e ao mesmo tempo se contrapõe aos meios de comunicação, os quais cotidianamente
normalizam a violência racial e naturalizam as chacinas epidêmicas.
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Ouço a bela canção do Paul
Gilroy (2002) sobre o atlântico negro, embora não possa assimilar sua concepção
de Escravo Sublime. Aparto-me do admirável sociólogo negro no caso de sua
interpretação metafísica e cristã: as culturas negras da diáspora nascem,
sobretudo, da sublimação da dor e sofrimento dos escravizados. Talvez ele tenha
lido e assimilado involuntariamente alguns sermões do Padre Vieira disponíveis
em língua inglesa[44].
Proponho interpretar como nascente e base do desenvolvimento
das modernidades negras os resíduos e fragmentos de culturas africanas
originárias, combinadas com elementos, saberes, tecnologias e símbolos advindos
de escolhas éticas, estéticas e políticas elaboradas marginalmente na expansão
do ocidente, que chamamos, criticamente, Modernidade. Tal alargamento do mundo
sob determinações coloniais e imperialistas já não deve ser lido apenas em um
sentido.
Atemo-nos aos protagonismos
e empreendimentos culturais e estéticos de sujeitos e coletividades negras no
fazer-se da sociedade contemporânea tornados opacos ou nulos pelo eurocentrismo
inofensivo. Talvez nosso sociólogo tenha ouvido demasiadamente inglês e menos
afro os Negro Spirituals apresentados
a ele por Wiliam Du Bois[45].
Na elaboração do conceito, ao confundir subalternidade com passividade e quase
anulou todo protagonismo que ele próprio prospectou e deu lume.
Nosso navio então faz rotas próprias ao atlântico sul. Tal
como Gilroy, não podemos abandonar a língua e nem os sistemas de pensamento dos
colonizadores, mas podemos também fazer exercícios para não nos comportarmos
como tal. A noção de cidadania aplicada ao mundo da cultura, que temos
participado da construção, não foi definida em gabinetes de empresas
jornalísticas, nem em seminários patrocinados por empresários, nem em congresso
de partidos políticos. Ela tem sido gestada na prática cotidiana. Daí a noção
de que a sociedade brasileira é efetivamente múltipla no âmbito das formas de
conceber ideias, atitudes, práticas, criações estéticas. Trata-se de uma
concepção advinda da concretude das experiências socioculturais e étnicas e
refletem um refinamento da noção de cidadania, que vai muito além da conquista
dos direitos a vida e prosperidade material. Trata-se de um outro humanismo.
Salloma Salomão
Músico, historiador e produtor cultural.
Doutor em história pela PUC-SP. Pesquisador associado ao Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa. Versa sobre práticas culturais afro-diaspóricas
e africanidades com ênfase em música e teatro. (Contatos: mosaiconegrobras.blogspot.com;
sallomasallomao@gmail.com)
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contra os novos conformistas. Tradução: André Glaser. São Paulo: Editora Unesp,
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[1] Alguns dos meus interlocutores estão disseminados pelo
país, e nossas interfaces têm sido feitas via web e eventualmente corpo a
corpo. Por exemplo, com o artista multimídia Délcio Teobaldo (RJ), a professora
Ione da Silva Jovino (mana) da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG-PR)
e Denise Barata da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É
importante citar também o músico afro-mineiro e parceiro nas canções Satranga
de Lima (Monteral-Paris), a pesquisadora Patrícia Schor (Países Baixos) e o
sociólogo e professor José Machado Pais do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa (ICS-UL-PT).
[2] Alguns se tornaram amigos para toda e qualquer obra,
entre os quais menciono o músico e professor Amailton Magno Azevedo, o livre
pensador Eduardo Bonzatto e as pesquisadoras Karina Poli e Nirlene Nepomuceno
(Bebel). Sou grato também a Augusto Lopes, Eduardo Rosas Negras e Jean Tible,
respectivamente, ex-alunos e professor do Centro Universitário Fundação Santo
André. Figura ímpar nesse trajeto tem sido a produtora cultural Baby Amorim
criadora da rede social Aruanda Mundi, uma das coordenadoras do Bloco Afro Ilú
Oba de Min.
[3] Minhas parceiras de reflexão e ação sobre teatro
negro, dramaturgia e negritude têm sido primordialmente as atrizes,
pesquisadoras e arte-educadoras-sociais Priscila Preta Obaci, Flávia Rosa, Débora
Marçal, Adriana Paixão, Carol Ewaci, Jé Oliveira, Maitê Freitas e Thais Dias.
Tenho dívidas impagáveis também com os fotógrafos e designers Helder Girolamo
Scantanburlo, Guma e Nanau Cassimano e Alex Ribeiro.
[4] NETO, Júlio de Mesquita.
Publicação financiada pelo Banco Bamerindus. Ciclo de Debates: Cidadão
brasileiro. Realizado em Curitiba de ago-nov 1991. Cidadão brasileiro. São
Paulo: Cultura Editores Associados, 1992, p. 12.
[5] Idem, p. 98.
[6] Rapper paulistano. Assassinado
em 2003, desenvolveu uma nova estética musical, introduzindo elementos do samba
urbano na poética e rítmica da música rep
(ritmo e poesia). Para saber mais veja: TONI, C. Sabotage - um lugar: Biografia oficial de Mauro Mateus dos Santos.
São Paulo: Literatura, 2013.
[7] Milton Santos traçou um perfil
muito interessante de São Paulo, com dados já considerados um tanto defasados
por serem dos anos 1980, mas algumas análises ainda valem. Nosso caso,
especialmente a segunda análise do cap. 2. Veja: SANTOS, Milton. Por uma economia política da cidade. 2
ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 80.
[8] Idem, p. 92.
[9] Para alguns autores brasileiros parece ser muito
complexa a ideia de colonialismo interno. Meu argumento é bastante simples. Tanto
a vinda da família real portuguesa como a manutenção da ordem escravista, assim
como a maior inserção das elites brasileiras de origem portuguesa no mercado
mundial de coisas e pessoas, em nada denota uma ruptura da lógica colonial. Mas
sua permanência mais atroz encontra-se no âmbito da cultura e da mentalidade. Para
verificar argumentação contrária, consulte: GOMES, Heloisa Toller: Crítica pós-colonial em questão.
Disponível em: >http://revistabrasil.org/revista/ingles/heloisa.htm<.
Acessado em: 13 mai. 2013.
[10] Para uma definição
crítica de modernidade e modernismo, assim como para sondar suas semânticas e
historicidade, vale consultar: WILLIANS, Raymond. Política do modernismo: contra os novos conformistas. Tradução:
André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
[11] Sílvio Romero, um intelectual
comprometido com a causa da mestiçagem racionalizada pelo estado, por vezes,
questionava o que via como tendência de formação de guetos de povos brancos na
região sul, em vez de sua disseminação por todo o território de forma a
facilitar o embranquecimento progressivo e surgimento de um padrão racial mais
homogêneo da população nacional.
[12] SEYFERTH, Giralda. Construindo
a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na politica de imigração
e colonização. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (Org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 1996.
[13] Segundo Rei Andrews, as elites paulistas construíram seu
próprio projeto de imigração-branqueamento, tendo-o perseguido sistematicamente
até a década de 1960. ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo
(1888-1988). Tradução: Magda
Lopes. Bauru-São Paulo: Edusc.
[14] Idem, p. 29-31.
[15] SANTOS, Milton. Testamento intelectual. Perfis Brasileiros. Entrevistado por Jesus
de Paula Assis. Colaboração de Maria Encarnação Sposito. São Paulo: Editora
Unesp, 2004, p. 14-15.
[16] A raiz etmológica do termo é a
palavra latina seranus, pôr do sol,
entardecer, anoitecer.
[17] Binho é um poeta radicado na
região de Campo Limpo, Zona Sul. Realizava encontros em um bar, até que o
espaço foi desativado pela gestão Kassab, sob a alegação de falta de
infraestrutura. Desde então as atividades são realizadas de forma itinerante
por uma equipe reunida em torno de um projeto de expansão da leitura e escrita
criativas. Seu raio de atuação tem se expandido para as regiões do Mercosul.
[19] MOURA, Roberto. A casa da tia Ciata. Rio de Janeiro:
Funarte, 1983.
[20] O texto de Olaudah Equiano é
um entre pouco mais de uma dezena de relatos e romances de escravizados. Textos
autorais autobiográficos com elementos ficcionais. Ainda difícil de serem
encontrados em língua portuguesa. Veja: EQUIANO, Olaudah. The
interesting narrative and other writings. Vicent Carretta (Ed.). New Zealand: Penguin Books, 1995.
Uma publicação interessante é também a coletânea: GATE JR., Henry Louis. The
classic slave narratives.
New York: Signet Classic, 2002.
[21] LAHON, Didier. O negro no
coração do Império: uma memória a resgatar: séculos
XV XIX. Coleção entre Culturas. Lisboa: Secretariado Coordenador dos
Programas de Educação Multicultural, Ministério da Educação, 1999.
[22] Por branquitude estou
designando tanto e hegemonia socioeconômica dos descendentes de europeus no
Brasil como também a discursividade e projeções de imaginários eurocêntricos
sobre todos tipos de criação cultural e artísticas.
[23] “Arte Pública”, trabalhos
apresentados nos seminários de arte pública realizados pelos Sesc e Usis, 17-19
de out. 1995 e 19-21 nov. 1996. São Paulo: Sesc, 1998.
[24] Obras de arte em logradouros
públicos de São Paulo, regional Vila Mariana. Coordenação de Cecília Moura Leite
Ribeiro e Janice Gonçalves. São Paulo: DPH, 1993.
[25] TENTORI, Francesco. P. M. Bardi. Com as crônicas artísticas
“L’Ambrosiano” 1930-1933. Tradução: Eugênia Gorini Esmeraldo. São Paulo: Instituto
Lina Bo e Pietro Maria Bardi: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
[26] Para uma pequena e concisa
história crítica das políticas culturais na cidade, veja: ALMEIDA, Patrícia
Ferreira de; MARCELINO, Julio Cesar José; NETO, João Luiz de Brito. Movimentações pela cultura. Painel dos
movimentos culturais da região leste de São Paulo. 1980-1990. São Paulo: Movimento
Cultural Penha, 2004.
[27] Tudo indica que esse modelo
foi copiado da política cultural desenvolvida no México na década de 1970. Ao
menos, cheguei a essa conclusão ao ler um caderno publicado pelo Partido dos
Trabalhadores em 1985 na cidade de Porto Alegre. Veja: CHAUI, Marilena. Política cultural. 2 ed. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1984.
[28] Corpos estáveis são as
designações institucionais para orquestra, coral lírico e corpo de bailado do
Teatro Municipal de São Paulo, que agora, sob auditoria, consome 50% do
orçamento público municipal.
[29] Idem, p. 21.
[30] Veja: FERREIRA, Ligia Fonseca. Com a palavra Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. São
Paulo: Imprensa oficial do Estado, 2011. Ainda: AZEVEDO,
Elciene. Orfeu da Carapinha. A trajetória
de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas-São Paulo: Editora
Unicamp, 1999.
[31] LEITE, José Correia. E disse o velho militante José Correia
Leite, depoimento e artigos.
Organizado por Luis Silva Cuti. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura,
1992.
[32] Stuart Hall, já citado,
utiliza esse termo para refletir sobre formas de resistência cultural, nas
quais os despossuídos e subalternos por algum momento interpelam ou interditam
as formas culturais hegemônicas e impõem uma agenda ou demanda.
[33] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY>.
Chimamanda Adichie. O perigo de uma História única. Acessado em: 16 jul. 2016.
[34] André Rebouças, engenheiro,
negro, brasileiro do século XIX, abolicionista e próximo da Casa Imperial de
Bragança propunha como projeto modernizador do Brasil, concomitantemente à
supressão da aristocracia agrária, da grande propriedade e do escravismo.
Estudou na França e percorreu o mundo em busca de novas tecnologias que pudessem
ser introduzidas no Brasil. Prevendo as perseguições republicanas exilou-se na
Europa em 1889 e depois viajou pela África. Uma biografia tanto múltipla e
próspera quanto trágica e previsível; morreu numa ilha atlântica. Não se sabe
ainda hoje se por suicídio ou por uma queda acidental. Veja: SANTOS, Sydney M.
G dos. André Rebouças e seu tempo.
Vozes: Rio de janeiro, 1985.
[35] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução:
Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
[36] Essa rica história cultural tem
sido tratada com preconceito enorme nos meios acadêmico e cultural.
Episodicamente, pesquisadores têm tratado da dispersão de artistas e
intelectuais negros ou da passagem de artistas caribenhos e estadunidenses pelo
Brasil. Contudo, parece haver fluxos descontínuos, mas não menos importantes
integrando produções artísticas, ações políticas e projetos sociais de afro-brasileirxs, com interlocutorxs negrxs ou não em volta do mundo, cujos canais não advém da
indústria cultural.
[37] Ver: PINTO, L. A. Costa. O negro no Rio de Janeiro: Relações de
raça numa sociedade em mudança. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1998. Ver
também: MAIO, Marcos Chor. A questão
racial no pensamento de Guerreiro Ramos. In: SANTOS, Ricardo Ventura; MAIO,
Marcos Chor. Raça, ciência e sociedade.
Rio de Janeiro: Fiocruz: Centro Cultural Branco do Brasil, 1999, p. 179-194.
[38] Tanto no primeiro Congresso do
Negro Brasileiro, organizado por Gilberto Freyre e Solano Trindade, em Recife, 1934,
quanto no segundo, realizado em 1937, organizado por Edison Carneiro, em
Salvador, lideranças negras enviaram representantes para apresentar protesto e
fazer denúncias contra o racismo. Em ambos os congressos, os intelectuais se
fecharam em conchas, e a imprensa local noticiou a participação como baderna,
caso de polícia. A intelligentsia
brasileira reagiu às críticas contra os elitismo e racismo, fazendo um silêncio
obsequioso que durou muitas décadas.
[39] Ver a introdução: FRY, Peter; VOGT,
Carlos. Cafundó: a África no Brasil:
linguagem e sociedade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
[40] FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre
poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 122.
[41] Por exemplo, de uma carta
publicada em um jornal negro da cidade por um trabalhador fluminense recém-chegado
à cidade, ao perceber as barreiras sociorraciais, define como “guerra muda e
odiosa, texto em texto de: DOMINGUES, Petrônio José. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São
Paulo no pós-abolição. São Paulo: Editora Senac-São Paulo, 2004, p. 113.
[42] Jansem Rafael. Alfaiate, professor
público, participou de grupos musicais e publicações populares. Em canções e
poemas, contestava o racismo antinegro como também reivindicava a noção do
triplo pertencimento étnico.
[43] HALL, Stuart. Identidade
cultural na pós-modernidade. Tradução: Tadeu Tomaz da Silva e Guaracira
Lopes Louro. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
[44] GILROY, Paul. O atlântico
negro – modernidade e dupla
consciência. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes/CEAA. Editora
34, 1993.
[45] DUBOIS. W. E. B. As almas da
gente negra. Tradução, introdução
e notas:
Heloisa Toller Gomes. Rio de
Janeiro: Lacerda Editora, 1999.
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