A
curva da figueira grande.
A vida é o que é o que é. Da vida de
alguém que realmente viveu, não dá para por nem tirar nada. A vida é, e pronto.
Agora, o sonho de viver, esse é feito de tudo que a vida é, daquilo que ela não
foi e mais do que poderia ela ter sido.
Ele chegou a esse mote bem no fim. Quando
os olhos castanhos já se mostravam esbranquiçados e os sonhos esmaecidos pelo
desgaste. Mas não era só isso, posto que aprendeu a não dar privilégios as
tristezas, quedas e dores.
Agora que a vida se tornou bem mais
simples, não guardava quase nada das velhas tralhas. Vivia até bem nos dois
cômodos que herdou, uma meia-água nos
fundos da casa que ele próprio construiu. Levava consigo num bornal de fotografias
e textos manuscritos em papéis de embrulhos. Ali guardava sem zelo todas a alegrias
que foi recolhendo na trilha bem longa.
Agora lembrava.
Caminhou da Estação da luz até a praça da
bandeira. Parava e vacilava em meio a multidão levando mala e um bornal de brim
marrom. ficou olhando a cidade rodando
em volta de si. Os prédios , as pessoas , os carros, tudo em movimento e ele ali
parado no meio do mundo. Pensou: meu
deus que vai ser de mim?
Um primo que nem conhecia e outros
parentes distantes, pelo que disseram, moravam num tal de Parque Santo Antônio e
o ônibus saída dali. Tinha que descer na curva da Figueira Grande, depois subir
cortando caminho pelo morro do Jardim Cristina, atravessar o Jardim Tomas e
sair no Vaz de Lima, a pé.
O ônibus entrou num túnel, depois numa
avenida arboriza, prédios bonitos e antigos, virou um curva lenta a esquerda e
parou num ponto coberto. Muita gente subiu. Ela entrou bem ali. Puxou a mala
para debaixo do banco, porque não incomodar e sorriu. Ela abaixou a cabeça sem
expressão.
Avenida Santo Amaro, leu numa placa azul e
branca de metal, enquanto o coletivo só ia enchendo. O cobrador pedia que todos
se apertassem um pouco para caber mais. E o mais incrível, cabia. Avenida larga
aquela, nunca tinha visto, com jardim no meio, nunca tinha visto.
Os prédios ficando pra traz, casas
bonitas. Bairros de brancos, descobriu depois.
Um pequeno córrego e começaram aparecer as
fábricas de remédios e bicicletas, de chocolate e televisão, pensui , vai ser
fácil arranjar emprego. Queria logo trabalhar. Comprar uma bicicleta e talvez
uma televisão. Mas antes, tinha que chegar, se localizar. Mas tinha medo, nem
bem sabia do que, tinha medo.
Agora ficava mais certo de entender o que
se passou, agora ele pensava. Foi seu pai quem disse: Vai, vai logo, vai mesmo,
isso aqui não tem futuro. Aqui sua vida será enxada, será sempre inchada e
terra, é jovem e inteligente, tem pouco de estudo, deixa isso pra traz e vai.
Manda notícias e quando der manda um dinheirinho pra gente, aqui. A mãe olhou
lacrimosa e cismada, mas parece que concordava pelo seu silêncio e não gesto
pouco.
Os parentes e aderentes todos ali naquela apertada
casa, malocados e esperando três meses de plantio e um de colheita, quando não
cana, era café, se não tivesse geada forte, nem isso. As folhas do canavial
longas e compridas, as vezes cortam o couro feito navalha. Na mão que tem pele
fina as farpas fincam feito agulhas, arde muito e dó de dodói. Por isso o
couro, a pele e alma tem de ficar bem duro, como carcaça. Porém tem que tirar uma a uma as farpas antes
que nos atinjam o coração .
A vida tinha o ritmo do plantio e uma toada,
uma cantiga bem lenta , onde a viola chora. Alegria não durava muito, as vezes
pode faltar, mas em dezembro vem, a gente e todo povoado, esperando dezembro
após dezembro. A festa dura até 6 de janeiro, Dia de Santo Reis. No findo ano
de labuta, que vale por apenas esses poucos dias de chitas, festas, máscaras de
couro de cabra, chapéus de palha e fardas adornadas com fitas coloridas.
Dias ensolarados de cantoria e comprar
mantimentos, trazer roupa nova e sapato velho. Dias de matança do capado e de
fartura vingativa. Gravetos no campo mais próximo e oficio de criança, ele ia
quase sem resmungar, catar gravetos com os menores. Mas tinha muita cobra, então
aprendeu com o pai-do- pai-do-pai como fazer, cutucar com vara antes. Depois ganhava o comando da raspação do tacho
de cobre, o doce de leite, goiabada, fruta da época. O miúdo de porco e os pacotes de doce
divididos na vizinhança e no compadrio.
No brilho vivo dos olhos castanhos e nos
ouvidos de bicho sonoro vinha a Folia de Reis e os palhaços bem vestidos de
chita colorida, transpirando por debaixo da mascara e daquela roupa de cetim
engalanada.
Queria criança, sempre curioso, queria
saber quem era, mas nunca, nunquinha que ele revelava. Tirava
a máscara para beber água, mas no segredo de dentro da casa, depois
voltava para rua tirava verso, canta grosso e cantava fino. Em segunda e
terceira voz, por baixo da marcara abafada, geração apos geração, na beira da
serra da canastra. Era fantasma de mistério, ano a ano, mas sempre cantava
bonito, ele quase chorava de ouvir, mesmo sendo as mesmas cantigas. Sonhava com
aquelas violas e sanfonas, melodias e tambores, mas não tinha jeito para
aquilo, as mãos e braços haviam sido domados definitivos pela força do cabo da
enxada.
Filhos de brancos e de pretos, correndo pela estrada atrás de
passarinho. Xingamentos de macaco só ,quando briga. Chora não filho todos são
filhos de deus. Ele olhava pra cima cara de pergunta. Quem é deus? Na certa
deus tá muito velho e anda cochilando demais.
Congado descia enfileirado, passava na
porta da casa e rodava. A batida dos tambores ficava bem forte, o coração dele menino
sincronizava. Todos iam para o alpendre
da casa e até o pé de pimenta-do-reino, mesmo que bem fincado no chão, também
dançava. Claro que não, era o vento que
dava. Mas não importa, era sua alegria que mudava tudo no mundo em volta.
Sozinho para capital. Nem chorando, nem
sorrindo, sozinho para capital, fazer a vida. Para trás ficaram os palhaços e a
folia, a cantoria e os pretos batuqueiros, os reluzentes do Congado. Caiu em
si.
O coletivo ficava mais lento na medida que
ia subindo gente e o cobrador apertando. Uma estátua enorme de soldado no meio
da avenida, Borba Gato, um herói paulista dessas bandas, graças a Sérgio
Buarque. Mais tarde ele veio a saber. Gostava de ler para exercício, largo
Isabel Schimidt, Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro, largo 13 de maio, a
avenida Suzana Rodrigues. Fábricas e gente saindo, fim de turno. Gente cinzenta
e falante, gente apinhada nos pontos e nos ônibus. Pouco mais que jardineiras,
pouco mais que paus-de-arara, com gente pendurada nas varas, morcegadas, viradas
de ponta cabeça, ainda que pareçam de
pé.
Apredeu
longo a gíria, bumba, busão, busum, negreiro. Hummm negreiro só de madrugada,
quando vinha do baile. Subiu por um
pequeno aclive asfaltado, era a Ponte do Socorro. Uma construção diferente de
tudo que tinha visto, forte, alta, bonita, de concreto armado e ferro, com
gente passando na beira de um lado para outro, andando rápido. Avenida se
dividiu em duas e estreitou um pouco, para um lado Rio Bonito, para outro
Guarapiranga.
Pode também ver que a cidade era dividida
por um rio e ligada pela ponte, como realmente é ate agora. Do lado esquerdo a represa de Guarapiranga,
do lado direito mais fabricas e fabricas e fabricas. Isso é que ouvia dizer
como sendo o progresso. A cidade é moderna, dizia o cego o seu filho. A
aventura começa no coração do navio”.
Estrada de Mboy Mirim, que nome esquisito
ou estranho, ele pensou e riu para si mesmo.
Quanto mais o ônibus singrava lerdo por aquela estrada, mais ficava
apertada, enquanto o roto coletivo despejava gente nos pontos e calçadas
estreitas. Era tarde, quase noite. Piraporinha, outra igreja, uma pequena
subida e uma curva acentuada a direita,
fim do asfalto, uma arvore grande, Ponto final. Figueira Grande. Todos desceram
e saíram andando, sem olhar para traz apressando a passo e se dispersando em
muitas direções.
Voltou ao ônibus e perguntou a motorista,
que ainda sentado e suando, respondeu sem nem mesmo olhar para ele. Disse: Suba
esse pequeno morro ao lado da arvore, vire a direita e siga por uma rua coberta
de paralelepípedos até o fim. Vire a direita, verá um morro maior ainda, terá
de subir até o fim, passar por um conjunto de casas bem iguais, siga a rua
principal e vai alcançar o Vaz de Lima. Assim ele fez até chegar a um largo
cheio de comércio, quer dizer, duas padarias, um quitanda de legumes, um banca
de frutas e outra de pastel e caldo de
cana, algumas lojinhas de roupa e uma pequena farmácia.
Tinha memória do bar do Ângelo Japonês e
rua 25, timidamente perguntou na banca e uma senhora branca e gorda o olhou de
cima abaixo e seus olhos pararam justamente quando mirava sua mala. Antes de responder,
perguntou onde queria ir. Pegou a
informação, mas não seguiu a risca,
preferiu as orientações que parente enviou, na carta que recebeu.
Casa nenhuma tinha reboco por fora,
pintura então nem se fala. Carros velhos morriam no meio do morro, fuscas e
ximbicas, nada de calhambeques como das canções de Roberto e Erasmo. Onde
estava o progresso que tanto prometeram os mais sabidos?
Agora ali, naqueles papeis velhos vinha
tudo, detalhe por detalhe. Cabeça que brota imagem. Tudo de repente vem. Vem cheiro, vem gosto, vem tudo. Procura no mundo, mas nada acha, não é mentira, é passado, bom que se foi.
A filha que vivia na casa da frente aprendeu a desgostar dele. O achava fracassado, medroso e velho. Tinha ódio por conta da mãe e do olho no olho. Sempre quis a coisa mais fácil, mas não deu, pra ele não deu.
A filha que vivia na casa da frente aprendeu a desgostar dele. O achava fracassado, medroso e velho. Tinha ódio por conta da mãe e do olho no olho. Sempre quis a coisa mais fácil, mas não deu, pra ele não deu.
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