Sobre a liberdade e dignidade de
ontem e de hoje- Lançamento de africanos Livres- A
Abolição do tráfico de escravos no Brasil. Beatriz Mamigoniam USP- Auditório Fernand Braudel. 31-08-2017
USP São Paulo.
Texto revisto e aumentado.
Penso apenas nessa espécie de ilusão
desastrada que trata de ver uma contrariedade e uma incompatibilidade
fundamentais entre a evocação ou o estudo do passado e o interesse permanente
pelos fatos do nossos dias. (...) Ninguém menos apto, em realidade para
conhecer e valorizar o passado do que aquele que voluntariamente fecha os olhos
à sua época, às solicitações e aos estímulos do mundo que o cerca.
Sergio
Buarque de Holanda
Salloma Salomão
Muito me honra participar dessa roda
de conversa sobre a liberdade dos meus antepassados. Agradeço a professora
Beatriz pela oportunidade e as professoras Íris Kantor e Cristina Cortez
Wissembach pelo convite. Sou Salloma Salomão Jovino da Silva, professor de
História da África e da Diáspora na Fundação Santo André em São Paulo.
Entretanto, farei isso ao meu modo,
primeiramente colocando um pouco de poética na prosa acadêmica. Se esse grupo
tão especial e selecionado de historiadoras me permitir. Pausa.
Ouvem esse silêncio que agora
ecoa aqui entro? Esse silêncio ensurdecedor,
que vem lá de fora? Vocês podem sentir?
Hoje aqui quais palavras não
devem ser pronunciadas para que não abalem esse mundo. Esse mundo branco
preservado a bala.
Voces podem ouvir como eu as
palavras ainda impronunciáveis/ Palavras
grunhidas entre os dentes cerrados. Elas querem dizer o que essas
palavras? Ouçam.
Mãe, ainda me lembro das
guerras/ Dos corpos dos teus filhos, espalhados pelo chão/ Aqueles
vândalos, Milhares e milhares e milhares
de sonhos dilacerados/
Ninguém, ninguém esteve na tua pele pra saber/ Que suportar o
medo, o sol, o sal e frio/Nos convés e porões daqueles navios.
Aqueles vândalos, Milhares e
milhares e milhares de sonhos dilacerados.
Teus olhos brancos de marfim,
cravejados de ébano/ Sangrando lágrimas de fel.
Aqueles vândalos, Milhares e
milhares e milhares de sonhos dilacerados. Pausa
Segundo Emília Viotti da Costa:
“Toda obra de história é ao mesmo
tempo uma visão do passado e um retrato do presente, um diálogo a partir do
presente entre o historiador, suas inquietações, seus projetos, de um lado, e
os traços deixados pelo passado do outro. A obra também é expressão das
tendências da historiografia, dos debates teóricos, metodológicos e das lutas
políticas existentes na época da sua elaboração.”[1]
Nesse momento da sociedade
brasileira, parece imprescindível falar, refletir e pensar sobre a liberdade, sobre
suas aplicações e significados e também sobre sua ausência prática para alguns
milhões de pessoas, tanto ontem, quanto hoje. Beatriz nos leva a visualizar
como nossa sociedade lidou com dois aspectos considerados fundamentais na
modernidade, aquelas heranças imprescindíveis da expansão ocidental o Direito e
Liberdade. Mostra como Legislação antiescravista foi operada no império, quase
com exclusividade por homens brancos abastados, educados e letrados. Nos mostra
com contundente objetividade os limites de aplicação de prescritos legais em prol
dos mais frágeis numa sociedade escravagista, racista e patriarcal, e que
talvez nem seja a nossa.
Parece importante lembrar que a
estrutura legal e jurídica brasileira do século XIX foi aquela que passou quase
incólume do período colonial a era joanina e dali ao império. Conquanto a
constituição de 1823 tinha introduzido leves alterações a herança jurídica colonial lusa, mas nada significativo se
alterou, quanto a condição geral da população escravizada. Exceto ao decreto
que regulamentou a pena de morte e a dirigiu especificamente aos escravizados
que assassinassem seus algozes.[2]
Aprendemos com o pensamento negro
moderno que independência não significa liberdade e a legalidade da opressão
pode ser algo global, quanto moralmente inquestionável, tal como por séculos se
viu. Por uma dialética maravilinda muito própria da nossa cultura e realidade
específica, a “Historiografia das Marias”, muito nos tem ajudado a entender os
processos de manutenção das hierarquias e privilégios da branquitude
brasileira. Referindo-se trabalhadores livres nos oitocentos Maria Sylvia de Carvalho Franco:
“Essa ambiguidade se torna
inteligível e, a bem dizer, se desfaz, quando se lembra que no Brasil de então
se confundiam as esferas da vida pública e privada. Nessas condições, o Estado
é visto e usado como “propriedade” do grupo social que o controla. O aparelho
governamental nada mais é que parte do sistema de poder desse grupo,
imediatamente submetido a sua influência, um elemento para o qual se volta e
utiliza sempre que as circunstancias o indiquem como meio adequado. Só nessa
qualidade se legitima a atuação do estado.”[3]
Esse é o ponto de contato entre Sociologia
e História engajada produzida pelas orientandas de dois mestres paulistas,
Sergio Buarque de Hollanda e Florestan Fernandes. De Maria Isaura a Maria
Sylvia, de Maria Odila e Maria Cristina, parece haver aí, mais do que
coincidência na devoção a virgem.
Mesmo diante da vasta bibliografia
dos mais vários temas sobre a sociedade brasileira do século XX, Beatriz nos
surpreende com demografia dos africanos livres e referenda a importância das
categorias emancipados transitórios e
emancipados em definitivo, condições que embaralham as fronteiras entre
escravizados, livres, forros e alforriados com as quais já estávamos quase que
naturalmente familiarizados, em se tratando do oitocentos.
Pretendo encanar aqui uma falsa insolência,
inspirada em Cyro Pisanjes, um preto Mina, uma das pessoas reportadas pela
pesquisadora. Um homem “livre”, que reivindica libertação definitiva após duas décadas
de trabalho compulsório (ou seja, na condição de emancipado transitório).
Cansado de esperar a liberdade por meio da aplicação da legislação vigente e diante
das manipulações regimentais, escreveu uma carta de próprio punho, exigindo
imediata liberação de si e de seu filho. Naquelas circunstâncias foi caraterizado nos seguintes termos:
“Este africano é um rancoroso e
vingativo, como são aqueles de sua raça em geral, e desde que ele se sinta
ferido por ter perdido a queixa injusta que ele procurou contra o reclamante,
ele nutre pensamentos terríveis contra o reclamante....um ex-servo do Estado, e
chefe de uma grande família, com aproximadamente cinquenta anos de bons
serviços ao país, que vê a sua existência em perigo e exposta à perigosa faca
de um africano bárbaro, perigoso e selvagem sem moral ou religião, um
analfabeto que só respira vingança”
Considerei as imagens evocadas por
este documento muito atuais, isso se levarmos em consideração certas
correspondências recentemente prospectadas nas redes sociais brasileiras. Mas
meu objetivo aqui não é falar do racismo antinegro no Brasil atual, mas antes dialogar
com a obra de Beatriz Mamigonian.
Uma tese de excelência sobre os
descaminhos da liberdade de africanos no Brasil no século XIX, a autora nos
convida a torcer por aqueles que ontem tiveram de enfrentar toda sorte de
quedas, perdas e danos. Descobertas magníficas sobre as estratégias das elites
brancas de ontem para adiar, protelar, desvirtuar e confundir os espíritos dos
benfazejos. Há tempos que não lia um texto tão liso e reto, tão profundo na
descrição e conciso nos porquês. A
pesquisadora tomou uma atitude rara nesses tempos de insegurança acadêmica,
após defender a tese e obter o título continuou sua labuta, por ter consciência
de que o resultado alcançado estava aquém ao seu desejo de elucidação.
Ao fim, parece ter encontrado o Baobá
símbolo das africanidades brasileira no Rio Grande do Norte e nos brinda com
essa Simbologia da árvore milenar africana transposta para terras brasileiras.
Um brisa intelectual, numa corrente historiográfica árida e que nos últimos
tempos convertida por alguns pesquisadores comprometidos com a manutenção da
ordem social, em filosofia da indiferença com seu viés francamente antidemocrático
e antinegro.
Entrevemos com o texto a ação
ordinária de escravizadores de circunstâncias ou de segunda linha, quais sejam:
deputados, senadores, delegados de polícia, servidores públicos de extratos
variados. Aqueles que por princípio deveriam
zelar pelo cumprimento da lei, sistematicamente aproveitaram a tradição
escravista e manipulação dos direitos pro-abolição, para obter trabalho
gratuito público e privado de africanos. Todos abutres da liberdade.
Numa amostragem breve, a autora nos
afirma que 50% dos africanos submetidos ao trabalho compulsório morriam antes
de se completar o tempo da “concessão” ou do engajamento outros 15% antes da
conquista da liberação efetiva. Sem medo
de incorrer em anacronismo, algo me diz que é possível ver continuidade dessas
práticas naquelas adotadas para obter trabalho compulsório nas colônias de
alienados em Barbacena Minas Gerais, Engenho Velho no Rio de Janeiro e em
Franco da Rocha em São Paulo, ao longo do século XX.
Eu gostei muito desse trabalho,
especialmente daqueles tópicos em que a autora expressa em um certo ponto da
pesquisa um compromisso de tentar assumir uma perspectiva histórica daqueles
homens e mulheres negras cujas vidas passaram a figurar de um lado como joguete
da lei antiescravista, e do outro como objeto da tradição escravagista.
Durante leitura, me fez lembrar o
tempo inteiro da obra da historiadora Luciene Azevedo[4] que penetra
nas tramas escravistas, revelando detalhes da cultura institucionalizada da
violência, por meio de textos de
processos-crimes ocorridos real província de São Paulo. Ela que já me encantara com sua pesquisa
sobre Luiz Gama, O Orfeu de carapinha, alargou e tornou mais complexo as
semânticas da liberdade, embora por contradição. Ainda que ao fim nos mostre
que “o campo da lei e do direito” não era assim tão “indeterminado de lutas e
conquistas” de interesses diversos, quanto nos quis fazer acreditar pela
retórica apaixonada.
Gama chegou mesmo defender
publicamente que era tanto certo, quanto justo um escravizado defender sua
liberdade com violência, inclusive no assassinato de feitores e senhores, mas o
abolicionistas idealistas brancos, por mais radicais que fossem, como no caso
do famoso Caifazes, jamais iriam tão longe.
Certamente Luiz Gama e outros
abolicionista das segunda metade do século XIX não eram ingênuos. Sabemos por
escritos de Gama que entendia muito bem de que lado estavam as leis, embora na
juventude tenha visto o Direito com romantismo iluminista. Como também já bem
demonstrou Luciene a violência senhorial aumentou enormemente na segunda metade
do século XIX nas fazendas paulista. Agora compreendemos que quanto maior era a
resistência dos escravizados e escravizadas, mais racionalista se tornavam a
unidades produtoras. A violência assumiu ares de pedagogia produtiva e daí
advém os conhecidos manuais de trato com as “maquinas humanas” geradoras de
riqueza.
A perversidade do cotidiano
escravagista perscrutada e justificada por Freyre, em relação ás plantations
açucareira do nordeste, soam como prosa romântica se comparados os documentos
apresentados por Luciene Azevedo[5] sobre
assassinatos de homens e mulheres no cativeiro. A legalidade da escravidão era
consubstanciada na ordem escravista e assentada na tradição ocidental, assim
foi que penetrou fundo nas mentalidades e culturas. Muito mais do que a
República e o Direito é nosso efetivo legado comum. Boa parte da história pós
abolição as famílias negras passaram a transmitir de forma bastante crítica de
forma oral, o conteúdo de canções urbanas carregadas de ironia, fazem parte
dessa percepção. Emilia Viotti da Costa
nos mostra que libertação massiva de escravizados só tomara vulto alguns anos
antes da abolição. Acrescenta:
“Os esforços para promover a entrada
de imigrantes para substituir os escravos que haviam sido iniciados já na
primeira metade do século XIX intensificaram-se nos últimos anos, facilitando
essa transição. De fato, de fato nos últimos onze anos do século XIX, cerca de
três quartos de um milhão de estrangeiros chegaram em São Paulo. (...) A
abundância de trabalhadores, permitiu aos fazendeiros manter baixos salários.”[6]
Diferente da conclusão da eminente
historiadora, sabemos hoje, que a função dos trabalhadores europeus, não era
exatamente substituir os trabalhadores escravizados, mas antes os trabalhadores
escravizados e livres, contanto que fossem negro-mestiços. Essa profilaxia
racial cujas raízes se perdem no século XIX é que ainda hoje orientam as
práticas de segurança pública e as aplicações desiguais nos acessos direitos. A política imigracional, tanto do fim do Império, como durante a República trabalharam com a mesm a indicação consignada por José Bonifácio de Andrada no começo oitocentos, substituir gradualmente a presença da população negra, e fazer os índios cruzar com brancos.
Beatriz fez exaustivo trabalho de
levantamento e exame da documentação inglesa sobre a política governamental de
combate ao tráfico e demonstra ótimo trato da bibliografia anglófona e lusófona
sobre o tema. Posso estar enganado, mas fico coma impressão que parte da sua
análise sobre as contradições entre o discurso a prática abolicionista dos ingleses
poderia ter incorporado algo mais, com leitura e assimilação da abordagem ainda
hoje impactante de Eric Williams, que tanto influencia teve teve nas gerações
anteriores de pesquisadores brasileiros, mesmo que alguns tenham omitido tal
fato. Teria a pesquisadora assumido uma posição de afiliação às críticas desconstrutivas
de Frank Tannenbaun ou de Ciro Flamarion?[7]
Que relações e analogias podemos
fazer entre os adiamentos levantados por Beatriz, quanto a liberdade formal do
negros do passado e a protelamento da cidadania aos descendentes de africanos
no presente?
Relendo Elikia MBokolo[8] podemos
afirmar que escravidão global se constituiu como prática costumeira e ainda bem
cedo (século XVII), teve sua legislação global concebida como “códigos negros”.
Segundo Jacob Gorender, o conde de Assumar propôs regras similares ao universo
escravagista francês (Code Noir) que impedissem a contaminação do sangue branco
e também que negros fugitivos tivessem uma das pernas amputadas. Medida
aparentemente antieconômica, mas é necessário situa-la em um contexto de
abundância de capturados e como pedagogia da violência.
Não é o caso do trabalho de Beatriz, mas,
MBokolo já nos alertou sobre a tendência revisionista em certos estudos sobre a
escravidão racial, que com falácias interpretativas rebuscadas, querem dividir
o ônus moral, não do escravismo, mas das desigualdades no interior das
sociedades pluriétnicas contemporâneas,
entre as quais podemos situar o Brasil. Tal tendência produziu vários ecos aqui
nos últimos anos, mas, teria ensejado
articulação global, sobretudo, após a realização do Congresso Mundial
Antirracista em Durban, África do Sul.
Há dois anos passados assisti
estarrecido nessa mesma faculdade dois dos mais renomados historiadores
brasileiros contemporâneos em tom de sátira e evidente deboche do ativismo
antirracista, apontarem a posse de escravos entre negros, com sendo uma das
maiores contradições da cultura escravagista brasileira.
Setores acadêmicos conservadores em
franco conluio com a mídia racista não tem poupado munição em um combate
cotidiano contra as agendas antirracistas, construídas cuidadosamente ao longo
do século XX e as políticas afirmativas desencadeadas de forma tímida e
conservadora no Brasil a partir da Constituição de 1988. Uma tríade reacionária
desse arranjo intelectual neocolonialista é aquela composta por Ali Kamel,
Demétrio Magnolli e Peter Fry. Articulados e agindo em bloco no uso do
principal veiculo privado de comunicação, ambos se sentem como heróis de uma
verdadeira cruzada racial contemporânea e se comportam como arauto da classe
média branca.
Digo isso porque passei, desde há
algum tempo, a ter quase ojeriza de textos sobre tráfico e escravidão. Dado a
esquizofrenia profissional, comecei recentemente a entender esse meu sentimento
a esse campo que tem sido o mais com pequenas desconfianças e por fim comecei e
enxergar ai, uma espécie de fetiche historiográfico de pesquisadores brancos,
com sua saudade não totalmente dissimulada dos heróicos tempos da casa grande.
Quando tudo tinha ordem, brilho e luxo.
Numa atitude de escarnio intelectual,
afinado com abordagens neofreyrianas e de desfaçatez sem precedentes, vimos
pesquisadores que figuram como notas de rodapé e referencias metodológicas
inovadoras capitularem de forma desonrosa em nome da manutenção do prestígio e
das hierarquias acadêmicas seculares. Alguns pesquisadores estrangeiros, nem
sempre complacentes com elitismo acadêmico brasileiro, desde a década de 1970
vem apontando as mistificações do escravismo e do racismo antinegro no Brasil.[9]
O renomado pesquisador negro estadunidense
Henry Louis Gates Jr, em seu livro “Os negros na América Latina”[10], nos informa
sobre seus diálogos com o historiador baiano, João José Reis e da insistência
daquele em demonstrar como escravizados vivendo na Bahia oitocentista tinham “melhor
sorte”, que seus congêneres no resto do Brasil.
Suely Robes de Queiros já havia
atentado para certos vícios interpretativos na produção de João Reis, que ainda
em um dos seus textos da década de 1990, buscou marcar a especificidade da
população escravizada baiana de origem na África do Oeste, como sendo mais
propensa a revolta, enquanto escravizados crioulos e bantos (da África
central) de outras áreas do império
teriam tido atitudes pacíficas ou subalternas.
Reis que nos seduzira intelectualmente
com uma imagem inovadora e quase revolucionária dos Malês, parecia ter
capitulado a um proselitismo acadêmico de viés extremamente conservador. De outra
maneira reproduz com tinta nova as ideias escala cultural entre os africanos no
Brasil, criada cem anos antes por Raimundo Nina Rodrigues, que também a partir
de percepções eugenistas acreditara na superioridade dos nagô. Reis que
prefacia a obra aqui tratada, também acompanha no texto de Beatriz o mesmo africano Mina Cyro, segundo o qual
seria possivelmente um “nagô”.
Africanos livres de Beatriz Mamigonian
arrisca um voo longo, alto, panorâmico e delicado. Retoma pela faixa da esquerda um esforço de
compreensão global da sociedade brasileira do século XIX, nas suas várias
articulações com o Atlântico, não necessariamente uma Atlântico Negro Sul como
a que estamos familiarizados, mas nos roteiros de mercadores negreiros e das
esquadras da marinha inglesa incumbidas de puni-los. O resultado é um texto
longo e denso, complexo e difuso, tal como o próprio tema.
Essa temática cuja lacuna fora
percebida por Beatriz, relativamente desprezada pela historiografia brasileira
do século XX, havia sido ensejada sutilmente por Sergio Buarque de Holanda em
artigo produzido na década de 1940. Ali sustentava que fora um período de
mudanças quase “vertiginosas” da paisagem econômica brasileira.
Atento ao período que vai de lei
Eusébio de Queiros até a crise de 1864 aponta que foi em 1851 que se iniciou o
movimento regular da formação da sociedades anônimas, da criação do segundo
Branco do Brasil, inauguração da primeira linha telegráfica e as duas primeiras
linhas de estradas de ferros. Atento aos dados da economia e da política
sustenta que foi um tempo grande disponibilidade de credito, que antes
direcionado ao tráfico teve que localizar outras áreas. Segundo Holanda:
“Não é por simples coincidência
cronológica que em um período de excepcional vitalidade dos negócios, e que se
desenvolve sob a direção e em proveito dos especuladores sem raízes rurais,
tenha ocorrido nos anos que se seguem imediatamente ao primeiro passo dado para
a abolição da escravidão, ou seja, a supressão do tráfico negreiro.(...) Os
interessados no negócio tinham logrado
organizar uma extensa rede de precauções que salvaguardassem o exercício franco
de suas atividades. Desenvolvendo um sistema apurado de sinais e avisos
costeiros para indicar qualquer perigo a aproximação dos navios negreiros,
subvencionado jornais, subornando funcionários , estimulando , por todos os
modos a perseguição politica ou policial ao adversários, julgavam assegurada
para sempre a própria impunidade , assim como invulnerabilidade das suas
transações.”[11]
Uma historiografia de cunho
nacionalista da primeira metade do século XX, produzida principalmente na
região sudeste do país, também havia primado por uma visão de conjunto e
elaborado narrativas épicas, cujas caraterísticas essências eram a demonstrar
desde sempre uma concepção de unidade cultural e predestinação histórica
daquele que seria o “país do futuro”. Assim estrategicamente primavam por
desbastar as questões mais problemáticas, tornavam irrelevantes as contradições
e amainavam as quizilas, tensões e conflitos sociais e políticos do passado,
pensando no presente.
Um espécie de nacionalismo
neorromântico que acima de tudo tentava mostrar uma marcha progressiva para a
República, a Democracia e a Modernidade. Mas a realidade reagia com acentuação
das desigualdades, novos elitismos e recrudescia em violência racial civil e diferentes
mecanismo estatais de controle dos pobres, indígenas e negros. Mas a marca mais
evidente desde lá tem sido o autoritarismo das elites.
Uma mudança acentuada na estrutura
acadêmica entre fins dos anos 1950-1960 em diante favoreceu, ainda sob o regime
civil militar de 1964-9185 a emergência de novas pesquisas e historiografias de
abrangência e temáticas regionais. Na década de 1990 novo movimento renovador e
intensa movimentação de pesquisadores brasilianistas.
Atualmente, por mais críticas que
sejam algumas das pesquisas históricas que vêm a público, é possível observar a
retração da classe intelectual aos problemas sociais da realidade
brasileira. Parece mesmo que se
constituiu uma vasta camuflagem destinada a protege-la contra os problemas
reais da sociedade brasileira contemporânea.
Não quero dizer com isso que toda
classe acadêmica deveria estar comprometida com a agenda antirracista e a
manutenção ou ampliação das políticas afirmativas. Mas, afirmo que parte da
nossa historiografia, ou pelo menos uma parte daquilo que é difundido pelas
grandes editoras atuais parece configurar uma forma desavergonhada de
estetização do passado.
Esta mesma instituição, Universidade
de São Paulo, nos legou duas ou três
gerações de grandes historiadoras, grandes Marias. Mas, também levantou tantas
barreiras ao negros e em seus 80 anos. De fora constatamos um antropólogo, um
historiador e Geógrafo. Esses negros fora de lugar, experimentaram a dor da
solidão e da excepcionalidade. Após
resistir bravamente a adotar qualquer política afirmativa, a USP recentemente
ingressou no século XIX.
Em diálogo internautico com uma amiga
querida, em consonância com ela admitia que é chocante
e revoltante a quantidade, que andar
porque qualquer centro urbano do país ver tanta gente preta jovem em
condição de miséria. Mas, também é fato que as famílias
negras lutaram incessantemente no século XX para adquirir algum status e
posição, algumas foram até bem longe, com escolarização e pequenos
empreendimentos.
Houve uma efetiva reação dos brancos
médios, temerosos de que os negros ocupassem seus "lugares naturais"
na hierarquia social. Embora houvesse racismo contra os escravizados, o racismo
tal como como conhecemos hoje é um fenômeno do século XX pra cá. Segundo o
último Atlas da Violência de 2017 são 60 mil mortos por violência em 2016. É
impronunciável o racismo antinegro no século XX, tal como é o genocídio da
juventude negra, que avança para século XXI sob o silêncio vergonhoso
de parte da classe acadêmica.
[1]
COSTA, Emília Viotti de. Brasil:
História, textos e contextos. 1ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2015,
p142.
[2]
Veja por exemplo: RIBEIRO, João Luis. No meio das galinhas as baratas não tem
razão: A lei de 10 de junho de 1835, os escravos e pena de morte no império do
Brasil. Rio de janeiro: Renovar, 2005.
[3]
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 3ª
edição. São Paulo, Cairós, 1983, p132.
[4]
Veja. AZEVEDO, Luciene. Orfeu de
carapinha: A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo.
Campinas SP: Editora da Unicamp/ Centro de pesquisa em História Social da
Cultura, 1999. E
___________________O Direito dos escravos. Lutas jurídicas e abolicionismo na província de
São Paulo. Campinas SP: Editora da Unicamp/ Centro de pesquisa em História
Social da Cultura, 1999.
[6]
COSTA, Emilia Viotti da. Abolição.
9ª edição. São Paulo: Editora Unesp. P136.
[7]
Vale ler a o prefácio a edição brasileira, escrita por Rafael Bivar Marquese.
In: WILLIAMS, Eric. Capitalismo e
Escravidão. 1ª Edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
[8]
M´BOKOLO, Elikia. África Negra História e Civilizações I
Tomo, até ao Século XVIII. Lisboa:Editora Vulgata. 2003.
[9]
Thomas Skidmore não foi o único a fazê-lo. Veja por exemplo: GRAHAM, Richard. Escravidão, Reforma e Imperialismo. São
Paulo: perspectiva, 1979.
[10]
GATES JR, Louis. Os negros na América
latina. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
[11]
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Para um nova
história. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. P60, 61.
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