SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Bio-caminho

salloma Salomão Jovino da Silva, "Salloma Salomão é um dos vencedores do CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA RUTH DE SOUZA, em São Paulo, 2004. por dez anos foi Professor da FSA-SP, Produtor Cultural, Músico, Dramaturgo, Ator e Historiador. Pesquisador financiado pela Capes e CNPQ, investigador vistante do Instituto de Ciências Socais da Universidade de Lisboa. Orientações Dra Maria Odila Leite da Silva, Dr José Machado Pais e Dra Antonieta Antonacci. Lançou trabalhos artísticos e de pesquisa sobre musicalidades e teatralidades negras na diáspora. Segue curioso pelo Brasil e mundo afora atrás do rastros da diáspora negra. #CORRENTE- LIBERTADORA: O QUILOMBO DA MEMÓRIA-VÍDEO- 1990- ADVP-FANTASMA. #AFRORIGEM-CD- 1995- CD-ARUANDA MUNDI. #OS SONS QUE VEM DAS RUAS- 1997- SELO NEGRO. #O DIA DAS TRIBOS-CD-1998-ARUANDA MUNDI. #UM MUNDO PRETO PAULISTANO- TCC-HISTÓRIA-PUC-SP 1997- ARUANDA MUNDI. #A POLIFONIA DO PROTESTO NEGRO- 2000-DISSERTAÇÃO DE MESTRADO- PUC-SP. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- CD - 2002 -ARUANDA MUNDI #AS MARIMBAS DE DEBRET- ICS-PT- 2003. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- TESE DE DOUTORADO- 2005- PUC-SP. #FACES DA TARDE DE UM MESMO SENTIMENTO- CD- 2008- ARUANDA SALLOMA 30 ANOS DE MUSICALIDADE E NEGRITUDE- DVD-2010- ARUANDA MUNDI. Elenco de Gota D'Água Preta 2019, Criador de Agosto na cidade murada.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Lançamento de Africanos Livres- A Abolição do tráfico de escravos no Brasil. Por Beatriz Mamigoniam USP







Sobre a liberdade e dignidade de ontem e de hoje- Lançamento de africanos Livres- A Abolição do tráfico de escravos no Brasil. Beatriz Mamigoniam  USP- Auditório Fernand Braudel. 31-08-2017 USP São Paulo.
Texto revisto e aumentado.
Penso apenas nessa espécie de ilusão desastrada que trata de ver uma contrariedade e uma incompatibilidade fundamentais entre a evocação ou o estudo do passado e o interesse permanente pelos fatos do nossos dias. (...) Ninguém menos apto, em realidade para conhecer e valorizar o passado do que aquele que voluntariamente fecha os olhos à sua época, às solicitações e aos estímulos do mundo que o cerca.  
                                                                                                                             Sergio Buarque de Holanda
 
Salloma Salomão
Muito me honra participar dessa roda de conversa sobre a liberdade dos meus antepassados. Agradeço a professora Beatriz pela oportunidade e as professoras Íris Kantor e Cristina Cortez Wissembach pelo convite. Sou Salloma Salomão Jovino da Silva, professor de História da África e da Diáspora na Fundação Santo André em São Paulo.
Entretanto, farei isso ao meu modo, primeiramente colocando um pouco de poética na prosa acadêmica. Se esse grupo tão especial e selecionado de historiadoras me permitir. Pausa.
Ouvem esse silêncio que agora ecoa  aqui entro? Esse silêncio ensurdecedor, que vem lá de fora? Vocês podem sentir?
Hoje aqui quais palavras não devem ser pronunciadas para que não abalem esse mundo. Esse mundo branco preservado a bala.
Voces podem ouvir como eu as palavras ainda impronunciáveis/ Palavras   grunhidas entre os dentes cerrados. Elas querem dizer o que essas palavras? Ouçam.
Mãe, ainda me lembro das guerras/ Dos corpos dos teus filhos, espalhados pelo chão/ Aqueles vândalos,  Milhares e milhares e milhares de sonhos dilacerados/
Ninguém, ninguém  esteve na tua pele pra saber/ Que suportar o medo, o sol, o sal e frio/Nos convés e porões daqueles navios.
Aqueles vândalos, Milhares e milhares e milhares de sonhos dilacerados.
Teus olhos brancos de marfim, cravejados de ébano/ Sangrando lágrimas de fel.
Aqueles vândalos, Milhares e milhares e milhares de sonhos dilacerados. Pausa
Segundo Emília Viotti da Costa:
“Toda obra de história é ao mesmo tempo uma visão do passado e um retrato do presente, um diálogo a partir do presente entre o historiador, suas inquietações, seus projetos, de um lado, e os traços deixados pelo passado do outro. A obra também é expressão das tendências da historiografia, dos debates teóricos, metodológicos e das lutas políticas existentes na época da sua elaboração.”[1]
Nesse momento da sociedade brasileira, parece imprescindível falar, refletir e pensar sobre a liberdade, sobre suas aplicações e significados e também sobre sua ausência prática para alguns milhões de pessoas, tanto ontem, quanto hoje. Beatriz nos leva a visualizar como nossa sociedade lidou com dois aspectos considerados fundamentais na modernidade, aquelas heranças imprescindíveis da expansão ocidental o Direito e Liberdade. Mostra como Legislação antiescravista foi operada no império, quase com exclusividade por homens brancos abastados, educados e letrados. Nos mostra com contundente objetividade os limites de aplicação de prescritos legais em prol dos mais frágeis numa sociedade escravagista, racista e patriarcal, e que talvez nem seja a nossa.
Parece importante lembrar que a estrutura legal e jurídica brasileira do século XIX foi aquela que passou quase incólume do período colonial a era joanina e dali ao império. Conquanto a constituição de 1823 tinha introduzido leves alterações a herança jurídica  colonial lusa, mas nada significativo se alterou, quanto a condição geral da população escravizada. Exceto ao decreto que regulamentou a pena de morte e a dirigiu especificamente aos escravizados que assassinassem seus algozes.[2]
Aprendemos com o pensamento negro moderno que independência não significa liberdade e a legalidade da opressão pode ser algo global, quanto moralmente inquestionável, tal como por séculos se viu. Por uma dialética maravilinda muito própria da nossa cultura e realidade específica, a “Historiografia das Marias”, muito nos tem ajudado a entender os processos de manutenção das hierarquias e privilégios da branquitude brasileira. Referindo-se trabalhadores livres nos oitocentos  Maria Sylvia de Carvalho Franco:
“Essa ambiguidade se torna inteligível e, a bem dizer, se desfaz, quando se lembra que no Brasil de então se confundiam as esferas da vida pública e privada. Nessas condições, o Estado é visto e usado como “propriedade” do grupo social que o controla. O aparelho governamental nada mais é que parte do sistema de poder desse grupo, imediatamente submetido a sua influência, um elemento para o qual se volta e utiliza sempre que as circunstancias o indiquem como meio adequado. Só nessa qualidade se legitima a atuação do estado.”[3]
Esse é o ponto de contato entre Sociologia e História engajada produzida pelas orientandas de dois mestres paulistas, Sergio Buarque de Hollanda e Florestan Fernandes. De Maria Isaura a Maria Sylvia, de Maria Odila e Maria Cristina, parece haver aí, mais do que coincidência na devoção a virgem.      
Mesmo diante da vasta bibliografia dos mais vários temas sobre a sociedade brasileira do século XX, Beatriz nos surpreende com demografia dos africanos livres e referenda a importância das categorias emancipados transitórios e emancipados em definitivo, condições que embaralham as fronteiras entre escravizados, livres, forros e alforriados com as quais já estávamos quase que naturalmente familiarizados, em se tratando do oitocentos.
Pretendo encanar aqui uma falsa insolência, inspirada em Cyro Pisanjes, um preto Mina, uma das pessoas reportadas pela pesquisadora. Um homem “livre”, que reivindica libertação definitiva após duas décadas de trabalho compulsório (ou seja, na condição de emancipado transitório). Cansado de esperar a liberdade por meio da aplicação da legislação vigente e diante das manipulações regimentais, escreveu uma carta de próprio punho, exigindo imediata liberação de si e de seu filho. Naquelas circunstâncias  foi caraterizado nos seguintes termos:
“Este africano é um rancoroso e vingativo, como são aqueles de sua raça em geral, e desde que ele se sinta ferido por ter perdido a queixa injusta que ele procurou contra o reclamante, ele nutre pensamentos terríveis contra o reclamante....um ex-servo do Estado, e chefe de uma grande família, com aproximadamente cinquenta anos de bons serviços ao país, que vê a sua existência em perigo e exposta à perigosa faca de um africano bárbaro, perigoso e selvagem sem moral ou religião, um analfabeto que só respira vingança”
Considerei as imagens evocadas por este documento muito atuais, isso se levarmos em consideração certas correspondências recentemente prospectadas nas redes sociais brasileiras. Mas meu objetivo aqui não é falar do racismo antinegro no Brasil atual, mas antes dialogar com a obra de Beatriz Mamigonian.
Uma tese de excelência sobre os descaminhos da liberdade de africanos no Brasil no século XIX, a autora nos convida a torcer por aqueles que ontem tiveram de enfrentar toda sorte de quedas, perdas e danos. Descobertas magníficas sobre as estratégias das elites brancas de ontem para adiar, protelar, desvirtuar e confundir os espíritos dos benfazejos. Há tempos que não lia um texto tão liso e reto, tão profundo na descrição e conciso nos porquês.  A pesquisadora tomou uma atitude rara nesses tempos de insegurança acadêmica, após defender a tese e obter o título continuou sua labuta, por ter consciência de que o resultado alcançado estava aquém ao seu desejo de elucidação.
Ao fim, parece ter encontrado o Baobá símbolo das africanidades brasileira no Rio Grande do Norte e nos brinda com essa Simbologia da árvore milenar africana transposta para terras brasileiras. Um brisa intelectual, numa corrente historiográfica árida e que nos últimos tempos convertida por alguns pesquisadores comprometidos com a manutenção da ordem social, em filosofia da indiferença com seu viés francamente antidemocrático e antinegro.
Entrevemos com o texto a ação ordinária de escravizadores de circunstâncias ou de segunda linha, quais sejam: deputados, senadores, delegados de polícia, servidores públicos de extratos variados.  Aqueles que por princípio deveriam zelar pelo cumprimento da lei, sistematicamente aproveitaram a tradição escravista e manipulação dos direitos pro-abolição, para obter trabalho gratuito público e privado de africanos. Todos abutres da liberdade.  
Numa amostragem breve, a autora nos afirma que 50% dos africanos submetidos ao trabalho compulsório morriam antes de se completar o tempo da “concessão” ou do engajamento outros 15% antes da conquista da liberação efetiva.  Sem medo de incorrer em anacronismo, algo me diz que é possível ver continuidade dessas práticas naquelas adotadas para obter trabalho compulsório nas colônias de alienados em Barbacena Minas Gerais, Engenho Velho no Rio de Janeiro e em Franco da Rocha em São Paulo, ao longo do século XX.   
Eu gostei muito desse trabalho, especialmente daqueles tópicos em que a autora expressa em um certo ponto da pesquisa um compromisso de tentar assumir uma perspectiva histórica daqueles homens e mulheres negras cujas vidas passaram a figurar de um lado como joguete da lei antiescravista, e do outro como objeto da tradição escravagista.
Durante leitura, me fez lembrar o tempo inteiro da obra da historiadora Luciene Azevedo[4] que penetra nas tramas escravistas, revelando detalhes da cultura institucionalizada da violência,  por meio de textos de processos-crimes ocorridos real província de São Paulo.  Ela que já me encantara com sua pesquisa sobre Luiz Gama, O Orfeu de carapinha, alargou e tornou mais complexo as semânticas da liberdade, embora por contradição. Ainda que ao fim nos mostre que “o campo da lei e do direito” não era assim tão “indeterminado de lutas e conquistas” de interesses diversos, quanto nos quis fazer acreditar pela retórica apaixonada.    
Gama chegou mesmo defender publicamente que era tanto certo, quanto justo um escravizado defender sua liberdade com violência, inclusive no assassinato de feitores e senhores, mas o abolicionistas idealistas brancos, por mais radicais que fossem, como no caso do famoso Caifazes, jamais iriam tão longe.   
Certamente Luiz Gama e outros abolicionista das segunda metade do século XIX não eram ingênuos. Sabemos por escritos de Gama que entendia muito bem de que lado estavam as leis, embora na juventude tenha visto o Direito com romantismo iluminista. Como também já bem demonstrou Luciene a violência senhorial aumentou enormemente na segunda metade do século XIX nas fazendas paulista. Agora compreendemos que quanto maior era a resistência dos escravizados e escravizadas, mais racionalista se tornavam a unidades produtoras. A violência assumiu ares de pedagogia produtiva e daí advém os conhecidos manuais de trato com as “maquinas humanas” geradoras de riqueza.
A perversidade do cotidiano escravagista perscrutada e justificada por Freyre, em relação ás plantations açucareira do nordeste, soam como prosa romântica se comparados os documentos apresentados por Luciene Azevedo[5] sobre assassinatos de homens e mulheres no cativeiro. A legalidade da escravidão era consubstanciada na ordem escravista e assentada na tradição ocidental, assim foi que penetrou fundo nas mentalidades e culturas. Muito mais do que a República e o Direito é nosso efetivo legado comum. Boa parte da história pós abolição as famílias negras passaram a transmitir de forma bastante crítica de forma oral, o conteúdo de canções urbanas carregadas de ironia, fazem parte dessa percepção.  Emilia Viotti da Costa nos mostra que libertação massiva de escravizados só tomara vulto alguns anos antes da abolição. Acrescenta:
“Os esforços para promover a entrada de imigrantes para substituir os escravos que haviam sido iniciados já na primeira metade do século XIX intensificaram-se nos últimos anos, facilitando essa transição. De fato, de fato nos últimos onze anos do século XIX, cerca de três quartos de um milhão de estrangeiros chegaram em São Paulo. (...) A abundância de trabalhadores, permitiu aos fazendeiros manter baixos salários.”[6]    
Diferente da conclusão da eminente historiadora, sabemos hoje, que a função dos trabalhadores europeus, não era exatamente substituir os trabalhadores escravizados, mas antes os trabalhadores escravizados e livres, contanto que fossem negro-mestiços. Essa profilaxia racial cujas raízes se perdem no século XIX é que ainda hoje orientam as práticas de segurança pública e as aplicações desiguais nos acessos direitos. A política imigracional, tanto do fim do Império, como durante a República trabalharam com a mesm a indicação consignada por José Bonifácio de Andrada no começo oitocentos, substituir gradualmente a presença da população negra, e fazer os índios cruzar com brancos. 
Beatriz fez exaustivo trabalho de levantamento e exame da documentação inglesa sobre a política governamental de combate ao tráfico e demonstra ótimo trato da bibliografia anglófona e lusófona sobre o tema. Posso estar enganado, mas fico coma impressão que parte da sua análise sobre as contradições entre o discurso a prática abolicionista dos ingleses poderia ter incorporado algo mais, com leitura e assimilação da abordagem ainda hoje impactante de Eric Williams, que tanto influencia teve teve nas gerações anteriores de pesquisadores brasileiros, mesmo que alguns tenham omitido tal fato. Teria a pesquisadora assumido uma posição de afiliação às críticas desconstrutivas de Frank Tannenbaun ou de Ciro Flamarion?[7]    
Que relações e analogias podemos fazer entre os adiamentos levantados por Beatriz, quanto a liberdade formal do negros do passado e a protelamento da cidadania aos descendentes de africanos no presente?
Relendo Elikia MBokolo[8] podemos afirmar que escravidão global se constituiu como prática costumeira e ainda bem cedo (século XVII), teve sua legislação global concebida como “códigos negros”. Segundo Jacob Gorender, o conde de Assumar propôs regras similares ao universo escravagista francês (Code Noir) que impedissem a contaminação do sangue branco e também que negros fugitivos tivessem uma das pernas amputadas. Medida aparentemente antieconômica, mas é necessário situa-la em um contexto de abundância de capturados e como pedagogia da violência.
Não é o caso do trabalho de Beatriz, mas, MBokolo já nos alertou sobre a tendência revisionista em certos estudos sobre a escravidão racial, que com falácias interpretativas rebuscadas, querem dividir o ônus moral, não do escravismo, mas das desigualdades no interior das sociedades pluriétnicas  contemporâneas, entre as quais podemos situar o Brasil. Tal tendência produziu vários ecos aqui nos últimos anos, mas,  teria ensejado articulação global, sobretudo, após a realização do Congresso Mundial Antirracista em Durban, África do Sul.
Há dois anos passados assisti estarrecido nessa mesma faculdade dois dos mais renomados historiadores brasileiros contemporâneos em tom de sátira e evidente deboche do ativismo antirracista, apontarem a posse de escravos entre negros, com sendo uma das maiores contradições da cultura escravagista brasileira.
Setores acadêmicos conservadores em franco conluio com a mídia racista não tem poupado munição em um combate cotidiano contra as agendas antirracistas, construídas cuidadosamente ao longo do século XX e as políticas afirmativas desencadeadas de forma tímida e conservadora no Brasil a partir da Constituição de 1988. Uma tríade reacionária desse arranjo intelectual neocolonialista é aquela composta por Ali Kamel, Demétrio Magnolli e Peter Fry. Articulados e agindo em bloco no uso do principal veiculo privado de comunicação, ambos se sentem como heróis de uma verdadeira cruzada racial contemporânea e se comportam como arauto da classe média branca.         
Digo isso porque passei, desde há algum tempo, a ter quase ojeriza de textos sobre tráfico e escravidão. Dado a esquizofrenia profissional, comecei recentemente a entender esse meu sentimento a esse campo que tem sido o mais com pequenas desconfianças e por fim comecei e enxergar ai, uma espécie de fetiche historiográfico de pesquisadores brancos, com sua saudade não totalmente dissimulada dos heróicos tempos da casa grande. Quando tudo tinha ordem, brilho e luxo.
Numa atitude de escarnio intelectual, afinado com abordagens neofreyrianas e de desfaçatez sem precedentes, vimos pesquisadores que figuram como notas de rodapé e referencias metodológicas inovadoras capitularem de forma desonrosa em nome da manutenção do prestígio e das hierarquias acadêmicas seculares. Alguns pesquisadores estrangeiros, nem sempre complacentes com elitismo acadêmico brasileiro, desde a década de 1970 vem apontando as mistificações do escravismo e do racismo antinegro no Brasil.[9]
O renomado pesquisador negro estadunidense Henry Louis Gates Jr, em seu livro “Os negros na América Latina”[10], nos informa sobre seus diálogos com o historiador baiano, João José Reis e da insistência daquele em demonstrar como escravizados vivendo na Bahia oitocentista tinham “melhor sorte”, que seus congêneres no resto do Brasil.  
Suely Robes de Queiros já havia atentado para certos vícios interpretativos na produção de João Reis, que ainda em um dos seus textos da década de 1990, buscou marcar a especificidade da população escravizada baiana de origem na África do Oeste, como sendo mais propensa a revolta, enquanto escravizados crioulos e bantos (da África central)   de outras áreas do império teriam tido atitudes pacíficas ou subalternas.
Reis que nos seduzira intelectualmente com uma imagem inovadora e quase revolucionária dos Malês, parecia ter capitulado a um proselitismo acadêmico de viés extremamente conservador. De outra maneira reproduz com tinta nova as ideias escala cultural entre os africanos no Brasil, criada cem anos antes por Raimundo Nina Rodrigues, que também a partir de percepções eugenistas acreditara na superioridade dos nagô. Reis que prefacia a obra aqui tratada, também acompanha no texto de Beatriz  o mesmo africano Mina Cyro, segundo o qual seria possivelmente um “nagô”.
Africanos livres de Beatriz Mamigonian arrisca um voo longo, alto, panorâmico e delicado.  Retoma pela faixa da esquerda um esforço de compreensão global da sociedade brasileira do século XIX, nas suas várias articulações com o Atlântico, não necessariamente uma Atlântico Negro Sul como a que estamos familiarizados, mas nos roteiros de mercadores negreiros e das esquadras da marinha inglesa incumbidas de puni-los. O resultado é um texto longo e denso, complexo e difuso, tal como o próprio tema.
Essa temática cuja lacuna fora percebida por Beatriz, relativamente desprezada pela historiografia brasileira do século XX, havia sido ensejada sutilmente por Sergio Buarque de Holanda em artigo produzido na década de 1940. Ali sustentava que fora um período de mudanças quase “vertiginosas” da paisagem econômica brasileira. 
Atento ao período que vai de lei Eusébio de Queiros até a crise de 1864 aponta que foi em 1851 que se iniciou o movimento regular da formação da sociedades anônimas, da criação do segundo Branco do Brasil, inauguração da primeira linha telegráfica e as duas primeiras linhas de estradas de ferros. Atento aos dados da economia e da política sustenta que foi um tempo grande disponibilidade de credito, que antes direcionado ao tráfico teve que localizar outras áreas. Segundo Holanda:
“Não é por simples coincidência cronológica que em um período de excepcional vitalidade dos negócios, e que se desenvolve sob a direção e em proveito dos especuladores sem raízes rurais, tenha ocorrido nos anos que se seguem imediatamente ao primeiro passo dado para a abolição da escravidão, ou seja, a supressão do tráfico negreiro.(...) Os interessados no negócio tinham  logrado organizar uma extensa rede de precauções que salvaguardassem o exercício franco de suas atividades. Desenvolvendo um sistema apurado de sinais e avisos costeiros para indicar qualquer perigo a aproximação dos navios negreiros, subvencionado jornais, subornando funcionários , estimulando , por todos os modos a perseguição politica ou policial ao adversários, julgavam assegurada para sempre a própria impunidade , assim como invulnerabilidade das suas transações.”[11]                    
Uma historiografia de cunho nacionalista da primeira metade do século XX, produzida principalmente na região sudeste do país, também havia primado por uma visão de conjunto e elaborado narrativas épicas, cujas caraterísticas essências eram a demonstrar desde sempre uma concepção de unidade cultural e predestinação histórica daquele que seria o “país do futuro”. Assim estrategicamente primavam por desbastar as questões mais problemáticas, tornavam irrelevantes as contradições e amainavam as quizilas, tensões e conflitos sociais e políticos do passado, pensando no presente.
Um espécie de nacionalismo neorromântico que acima de tudo tentava mostrar uma marcha progressiva para a República, a Democracia e a Modernidade. Mas a realidade reagia com acentuação das desigualdades, novos elitismos e recrudescia em violência racial civil e diferentes mecanismo estatais de controle dos pobres, indígenas e negros. Mas a marca mais evidente desde lá tem sido o autoritarismo das elites.
Uma mudança acentuada na estrutura acadêmica entre fins dos anos 1950-1960 em diante favoreceu, ainda sob o regime civil militar de 1964-9185 a emergência de novas pesquisas e historiografias de abrangência e temáticas regionais. Na década de 1990 novo movimento renovador e intensa movimentação de pesquisadores brasilianistas.              
Atualmente, por mais críticas que sejam algumas das pesquisas históricas que vêm a público, é possível observar a retração da classe intelectual aos problemas sociais da realidade brasileira.  Parece mesmo que se constituiu uma vasta camuflagem destinada a protege-la contra os problemas reais da sociedade brasileira contemporânea.
Não quero dizer com isso que toda classe acadêmica deveria estar comprometida com a agenda antirracista e a manutenção ou ampliação das políticas afirmativas. Mas, afirmo que parte da nossa historiografia, ou pelo menos uma parte daquilo que é difundido pelas grandes editoras atuais parece configurar uma forma desavergonhada de estetização do passado.
Esta mesma instituição, Universidade de São Paulo,  nos legou duas ou três gerações de grandes historiadoras, grandes Marias. Mas, também levantou tantas barreiras ao negros e em seus 80 anos. De fora constatamos um antropólogo, um historiador e Geógrafo. Esses negros fora de lugar, experimentaram a dor da solidão e da excepcionalidade.  Após resistir bravamente a adotar qualquer política afirmativa, a USP recentemente ingressou no século XIX.
Em diálogo internautico com uma amiga querida, em consonância com ela admitia que é chocante  e revoltante a quantidade, que andar porque qualquer centro urbano do país ver tanta gente preta jovem em condição de miséria. Mas, também é fato que as famílias negras lutaram incessantemente no século XX para adquirir algum status e posição, algumas foram até bem longe, com escolarização e pequenos empreendimentos.
Houve uma efetiva reação dos brancos médios, temerosos de que os negros ocupassem seus "lugares naturais" na hierarquia social. Embora houvesse racismo contra os escravizados, o racismo tal como como conhecemos hoje é um fenômeno do século XX pra cá. Segundo o último Atlas da Violência de 2017 são 60 mil mortos por violência em 2016. É impronunciável o racismo antinegro no século XX, tal como é o genocídio da juventude negra, que avança para século XXI sob o silêncio vergonhoso de parte da classe acadêmica.


[1] COSTA, Emília Viotti de. Brasil: História, textos e contextos. 1ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2015, p142. 
[2] Veja por exemplo: RIBEIRO, João Luis. No meio das galinhas as baratas não tem razão: A lei de 10 de junho de 1835, os escravos e pena de morte no império do Brasil. Rio de janeiro: Renovar, 2005.  
[3] FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 3ª edição. São Paulo, Cairós, 1983, p132.
[4] Veja. AZEVEDO, Luciene. Orfeu de carapinha: A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas SP: Editora da Unicamp/ Centro de pesquisa em História Social da Cultura, 1999. E
___________________O Direito dos escravos. Lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. Campinas SP: Editora da Unicamp/ Centro de pesquisa em História Social da Cultura, 1999. 

[6] COSTA, Emilia Viotti da. Abolição. 9ª edição. São Paulo: Editora Unesp. P136.
[7] Vale ler a o prefácio a edição brasileira, escrita por Rafael Bivar Marquese. In: WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão.  1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[8] M´BOKOLO, Elikia. África Negra História e Civilizações I Tomo, até ao Século XVIII. Lisboa:Editora Vulgata. 2003.
[9] Thomas Skidmore não foi o único a fazê-lo. Veja por exemplo: GRAHAM, Richard. Escravidão, Reforma e Imperialismo. São Paulo: perspectiva, 1979.
[10] GATES JR, Louis. Os negros na América latina. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.   
[11] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Para um nova história. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. P60, 61.

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