Sheila Signário
O auto do Negrinho
Confesso que andei perdido num
redemoinho de teorias e escrituras sobre história do teatro, técnicas de
dramaturgia desse ou daquele cara famoso, daquele grupo importante, daquela companhia
teatral heroica. Besteira.
Não vou jogar meus livros fora, mas
levei um choque no sábado, bem ali no espaço Clariô, na mostra de teatro do
Gueto Mario Pazini em homenagem a lobo da metrópole, Wil Damas. Foi Naruna
quem me mandou. Eu ia ver seu abobrinha, com ela e o ex-secretário sectário no Antígona. Peça clássica, coisa e
tal. Ela me desconvidou e mandou ver Catarina. Tinha toda razão.
Em cena quatro jovens cantantes e um
texto gasto, uma oralidade vinda do abolicionismo romântico brasileiro, datado
e do sul. Quatro vozes, uns tambores e uma viola microfonada. Umas velas, velhas roupas coloridas e um texto
em pretexto. Câmara Cascudo ou qualquer outro folcloristas da primeira metade
do XX, talvez antes Silvio Romero, todo teutônico e hiperletrado e racista pra
caramba. Não importa. A História do menininho tão bom, um negrinho maltratado
por um senhor mal e seu filho sinhozinho sanguinário.
Vida campestre, invernada do sul,
cuidança de gado. Esqueci a trama chapei
na música, no movimento, na luz quase longe, na indumentária bem pouca, nas roupas
de juta, nos pés descalços, nas vozes entrando na minha alma em devaneio. Folia de Reis e Congada. Cantigas refinadas,
vocalizes em terças e quintas paralelas. Aquelas mesmas que o professor de contraponto
tentou nos proibir de usar.
Uma areninha módica, numa caixa preta
singeleza e pranto sincero. Não só
meu.
De onde então desceu ou subiu esse menino
tão delicado e criativo e seus três comparsas?
Eles podem ser encontrados ao montes
como caixa de supermercado, fazedores de bico em reformas de casas periféricas,
em oficinas mecânicas, na entrega de pizza. São jovens atores maravilhosos, que
fora daqueles quadro seriam mais uns na multidão de “meninos amarelos”, como
bem disse Joesley, com todo desprezo pela gente que o fez milhardário.
Cada dia mais me convenço de que
beleza não é sinônimo de complexidade. Que a sutileza não combina com soberba.
Que a inteligência criativa é um tesouro a ser distribuído, estimulado,
dividido, repartido em fragmentos de maneira tal, que não haja mais espaço para
as linguagens e estéticas exclusivas.
Por uma hora, por meio daquelas
alegorias sonoras e visuais mergulhei em memórias afetivas que julgava
perdidas. Me vi menino naqueles bonecos
de cabaça (inkises), tecido e cordas de sisal. O texto que engasgou, faltou ou alguém
comeu, nem importa. Importa saber que há
algum tempo a classe média via a periferia como vazio cultural e agora é
obrigada pelas circunstâncias políticas várias e aceitar o fato de que as
culturas negras e populares são diversas e ricas e quanto mais avançam para a
margem do rio, menor é poder da catequese cultural milenar.
O domínio de uma imaginário seja pela
forma, cores, tons e sons, seja pelo texto, que nesse caso, migrou do oral para
escritura e retorna a oralidade, é preciso ter vivência e conteúdo, experiência
e sabedoria para recombinar os signos. Alguns nativos falam em boca miúda, Catarina é mestre na erudição popular. Publicamente ele nos disse que migrou em busca dos Congos. Provavelmente já herdara os Congos que antecederam os maractus no Cariri. Gustavo Barroso noticiou por vergonha, querendo concorrer com Cascudo.
Vamos falando de vivênvia é não é o mesmo que "lugar de fala", porque tem a ver com apropriação e trânsito e experiência, mas também pode nascer da paixão e da dedicação, do labor e da minucia. Parece não haver coisa mais estranha e falsa que as peças do Abdias, aquelas voltadas para as religiosidade negras, antes da sua viagem para Nigéria. Seu mentor teatral Nelson Rodrigues, exploraria bem melhor.
Vamos falando de vivênvia é não é o mesmo que "lugar de fala", porque tem a ver com apropriação e trânsito e experiência, mas também pode nascer da paixão e da dedicação, do labor e da minucia. Parece não haver coisa mais estranha e falsa que as peças do Abdias, aquelas voltadas para as religiosidade negras, antes da sua viagem para Nigéria. Seu mentor teatral Nelson Rodrigues, exploraria bem melhor.
De fato já tinha identificado algo
novo, anticonvencional, algo fora do padrão nos figurinos do espetáculo REVOLVER do Grupo Coletivo Negro e Severina da morte a vida do Clariô. Acompanho
sem regras, algumas inserções muito críticas do cearense Cleydison Catarina, (no feminino
mesmo) no facebook. Também o vi zanzando pela aí com algumas figuras carimbadas
do “rolê cultural” da vila Madalena/Perdizes, importadores de clichês de nordestinidades.
Foi caindo pras beiradas, parou na
ocupação cultural do Cita e depois veio subindo na beira do rio Pirajussara, ainda
que encoberto. Virou ao lado do córrego perto do piscinão. Pediu uma massagem
na coluna, estava com “dor nos quarto” e se aninhou bem gostoso ali na Santa Luzia,
suvaco do cristo, Taboão.
Mas parece que no “negrinho” tem tudo
de seu, canção e ação, direção e timbre. Evidente que as vozes e corpos,
desejos e sonhos dos seus camaradas
brincadores geraram a coisa toda. Na certa teve uma sorte imensa de achar e
manter concentrados todos eles até que coisa se erguesse naquelas varas e
tecidos, vozes e corpos “quase pretos de tão pobres”, tão ricos, tão como
ficamos a sair de lá, como saímos.
Diferente de uma dramaturgia acadêmica
apoiada na cultura popular, Populus é Catarina e não o cão do seu conterrâneo recentemente
falecido, Belchior.
Viva!!!! a Mostra de Teatro do Gueto.
Viva nossos mano Marinho e Will Damas. Viva a Feira Literária da Zona Sul. Viva os binho
e binhas e todo vinho que ainda hei de beber.
Fotos de Fabiano Maranhão e Sheila Signário.
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