Todos os
Mortos
Em qual momento foi definida a sociedade
brasileira atual? Parece ter sido essa pergunta que Caetano Gotardo e Marco
Dutra se colocaram para dar origem ao roteiro de Todos os Mortos.
O título parece mórbido. Mas não tanto
quanto tem sido a nação Brasil. De forma bem resumida, o Brasil que vivemos
hoje é um estado nação pós-industrial, sem ter sido plenamente industrializado.
Onde não há guerra civil declarada – no entanto, as estimativas apontam mais de
60 mil mortes violentas por ano. Qual é o perfil das pessoas mortas? Quais suas
condições sociais, gênero e origem étnica? Já que raça não existe, o racismo
também seria uma abstração no Brasil? O que explica as mortes seletivas de
jovens negros? Como compreender e explicar para o mundo um presidente teológico-militar
da república, que considera as pessoas indígenas seres inferiores, autoriza a
ocupação de suas terras por mineradoras e a comercialização livre de armas de
fogo? A violência de estado, por meio das forças de segurança, tem sido
utilizada como forma de controle que sustenta e aprofunda as desigualdades
sociais.
Sem mencionar a violência contemporânea,
o filme investiga um tempo histórico que parece muito distante, contudo não é.
Um curto período da História do Brasil em que uma nova elite política se instalou
no poder central, dando um golpe de estado na família imperial de origem
portuguesa e esboçando um novo projeto de sociedade. Um Brasil republicano e
“moderno” sobre os pilares de uma cultura colonial escravagista – portanto,
violenta.
Todos os Mortos propõe ao espectador um recorte de tempo,
os últimos 120 anos. Um recorte geográfico, a cidade de São Paulo em dois
movimentos temporais que se atravessam mutuamente. De 1899 até o presente, num
salto que suprime a cronologia convencional.
A narrativa é protagonizada por mulheres
negras e brancas, divididas por diferentes condições e em dois distintos blocos
familiares. Homens estão lá e podem ser vistos como vultos emitindo vozes: não
estão mortos. Aliás, no filme a morte é um estado. Estado de iminência. Ou porque
já ocorreu, e é lembrança ainda não assentada, ou porque espreita os vivos por
algumas frestas das janelas. Os ancestrais são evocados por algumas das
mulheres. Há uma tensão constante nesse tópico que é reveladora sobre a intolerância ou racismo construído
contra as religiões de origem africana no Brasil. Sutilmente, o filme diz muita
coisa não direta sobre a maneira como nós, os brasileiros negros, estamos atualmente
ressignificando tanto a experiência da escravidão como as memórias mais remotas
das culturas africanas fundantes. A música seria então um veículo dessas
ancestralidades. Algo que de forma mais abrangente poderíamos chamar de valores
civilizatórios africanos, tal como é denominado pela literatura antropológica.
Na sociedade brasileira, o Estado, a Igreja
e todas as instituições públicas e privadas estiveram amplamente relacionadas
ao tráfico, à escravidão e a todos os seus derivados desde a Independência
(1822) até o fim do Império em 1889. Oficialmente a escravidão terminou no ano
anterior, 1888. Pouco mais de um ano durou o império após a publicação do
documento régio que a extinguiu. Mas o escravismo havia se tornado muito mais
que uma prática, penetrou no cotidiano, nas visões de mundo, nas maneiras das
pessoas se relacionarem no âmbito público e privado, nos desvãos da intimidade.
Todos os Mortos é uma demonstração de um novo tipo de poética
imagética brasileira, uma abordagem que reconhece o ponto exato em que uma
experiência de sociedade poderia ter rompido com sua trajetória trágica, mas ao
invés disso se tornou mais cindida. Entretanto não há ali dedo em riste ou
lamento e sim uma maneira profundamente sensível de juntar os fios partidos
para entender um tecido feito no tempo, mostrando uma trama não daquilo que
foi, mas de como poderia ter sido.
Salloma Salomão Jovino da Silva – Músico,
Dramaturgo, Ator. Doutorado em História da África e Culturas Afro-Diaspóricas
pela Pontifícia Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa no ICS-UL-PT,
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Versão em língua inglesa
Those who inhabit us A note from composer and film consultant Salloma Salomão When was current Brazilian society defined? This seems to be the question Caetano Gotardo and Marco Dutra posed as they began to write the script and initiate their project All the Dead Ones. The title may sound morbid. But not as morbid as the Brazilian nation has been. Today’s Brazil is a post-industrial nation that was never actually fully industrialized. A civil war in Brazil was never declared – yet, estimates point to more than sixty thousand violent deaths in the country each year. Who are all these dead people? What is their social background, their gender, their ethnic origin? Since “race” is a construct and does not really exist, is discussing racism in Brazil also merely an abstraction? What can the explanation for the huge number of deaths of young black people possibly be?
How can we understand and explain to the rest of the world our theological-military President – a person who considers indigenous people inferior and authorizes the occupation of their lands by mining companies, while defending the free trade of firearms? State violence, through the national security forces, is being used as a method of control that sustains and deepens social inequalities. Without mentioning this contemporary violence, All the Dead Ones investigates a historical period that seems very distant; however, it is not. This brief period in the history of Brazil when a new political elite took power with a coup against the imperial family – of Portuguese descent – and outlined their new project for society: a republican and “modern” Brazil built on the foundations of colonial slavery – therefore, violent by definition.
All the Dead Ones introduces the viewer to a time period beginning 120 years ago, through a specific geographic slice of the country: the city of São Paulo, which we discover in two temporal movements that cross into each other, from 1899 to the present, in a leap that suppresses conventional chronology. The narrative is carried by both black and white women, divided by their different social and economic conditions and separated into two distinct family units. Men are present, seen and speaking: they are not dead. In the movie, death is a state, a state of imminence. Either because it has already happened and its memory remains, or because it observes the living through cracks in their world. Some of the women mention their ancestors. There is a constant tension that shows intolerance and racism oppressing religions with African roots in Brazil. Subtly, indirectly, the movie is saying so much about how we – black Brazilians – are currently working to make sense of the experience of slavery and our most remote memories of the founding African cultures. Music is one such vehicle for these ancestral cultures. Something that, more broadly, we might call the values of African civilization, as it is named in anthropological literature. In Brazilian society, the State, the Church and all public and private institutions were widely linked with human trafficking, slavery and all their derivatives. This spanned from independence in 1822 until the end of the empire in 1889. Officially, slavery had ended a year before, in 1888. The empire subsisted for a little more than a year after the publication of the royal decree that put an end to it. But slavery had become much more than a practice that an official decree could put a stop to. It had tainted daily life, visions of the world, people’s ways of interacting in public and private life, all the way to the deepest corners of society, as well as its most intimate spaces and interactions.
All the Dead Ones is a demonstration of a new type of Brazilian poetic imagery, an approach that recognizes the exact moment when a societal experiment could have broken with its initial tragic trajectory, but instead took a route that led it to be even more divided. Nevertheless, there is no accusation or lament in the film, only a deeply sensitive way of joining the broken threads. So that we may understand the fabric woven through time, showing a picture not of what was, but of what could have been.
Salloma Salomão Jovino da Silva – Musician, Playwright, Actor. PhD graduate in African History and Afro-diasporic Cultures at Pontifícia Universidade de São Paulo, with research internship at ICS-UL-PT: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
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