Qual o sentido de um guarda-costas negro numa sociedade/cultura racista?
Uma das coisas que sempre me chamaram a atenção na maneira como o racismo se manifesta no Brasil é como ele é anti-negro e ao mesmo tempo se utiliza das imagens criadas sobre os negros para a manutenção dos brancos.
Uma dessas figuras emblemáticas para mim é o aparato privado de segurança. Quando olhamos os seguranças das celebridades, de grandes empresas/instituições ou mesmo lojas de atacado/varejo com objetos de pequeno valor, a representação de homens negros altos e fortes é evidente. O homem negro alto e forte é o símbolo maior no imaginário racista para a brutalização, animalização e portanto, do medo branco. É nele que recai o pavor absurdo que os brancos (homens e mulheres) tem de serem violentados (cada qual a sua maneira) e abusados fisicamente, já que é no atributo físico, no porte, que se encontra e se encerra toda essa criação.
Mas se estes homens são o arquétipo do que eles têm mais receio, por que eles são os principais contratados para os serviços que, em muitos casos, será o de proteção de pessoas que lhes temem?
Não saberia responder com exatidão. Tem uma esfera do racismo que foge ao entendimento imediato. Mas uma das hipóteses é a maneira que os brancos confiam nos laços de controle e obediência destes homens, driblando o seu terror via práticas do profissionalismo e, fazendo de sua crença extremamente racista e estigmatizada, algo meramente prático. Outro ponto é como o estereótipo do "negão", como alguém agressivo e brutal, está de tal forma disseminado no seio social, que faz com que um medo localizado dos brancos seja transformado em um dado que corresponde ao medo de todos os grupos, inclusive de pessoas pretas.
Isso leva a uma situação bem estranha: o estereótipo racista, baseado no medo branco, serve para proteger o branco e apavorar qualquer outro, inclusive pessoas negras. Não é incomum as violências desses contratados contra pessoas de seu grupo étnico/social para defender o branco, ou fazendo a leitura pragmática "desrracializada": fazendo apenas seu "trabalho".
Outro ponto ilógico seria a confiança (não absoluta) nos negros - quem eles mais temem - serão os que vão protegê-los contra tudo e contra todos. É uma confiança no modelo de relação existente, em que o alvo, a vítima (o negro), confia no algoz branco, que teme a vítima negra. Confuso né? O medo é uma arma, sobretudo se você pode utilizá-la contra outros.
No campo da segurança de alto nível (guarda-costas presidenciais, aparatos do Estado) é uma outra lógica que se insere, com poucos negros como agentes. O que se evoca é o profissionalismo, a destreza, a agilidade e a rapidez no raciocínio rápido para decisões cruciais. Se percebe nestas escolhas uma reprodução dos mitos raciais, em que os estereótipos e criações racistas sobre os homens negros é um atributo que o qualifica para o trabalho, e os atributos que as pessoas brancas tendem a atribuir a si mesmas no campo da excelência, também lhe cabem como prova para o mesmo trabalho.
O medo branco produziu um produto em que o beneficiado, por incrível que pareça é o próprio branco, mas que tem efeitos em toda esfera social.
Diria ser insanidade, mas a engenhosidade destas criações é que permitem que a masmorra racial a qual estamos submetidos se mantenha de pé, com os custos mais pesados jogados nas costas de quem é faz o papel de temido. Por ser temido por todos, é o alvo preferencial das mortes violências, por armas de fogo.
O medo os protege, mas sobretudo NOS mata.
Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 04 de agosto de 2019.
A civilização marginal como Centro
Texto em homenagem à Lazaro Ros (1925-2005), cantor afrocubano e praticante da Santería.
Texto em homenagem à Lazaro Ros (1925-2005), cantor afrocubano e praticante da Santería.
Cuba, Aruba, Colômbia, Uruguai, Equador, Suriname, Guiana, Belize, Trinidad e Martinica. Ainda tantos outros países nessa Améfrica Ladina. No lado de cá, Codó, Recife e Recôncavo, fora os inúmeros locais que são base de nossa força nuclear, mesmo em meio às margens mil impostas.
Muita cegueira no enxergar de nossas grandezas, ainda presos e seduzidos pelo vício estreito do sucesso vendido por fora. Ainda de fora a nossa força-potência os sustenta, pois só isto explica o fetiche e essa aproximação tão extremada, esse ódio travestido de fascínio que nos quer até o átomo, mas nos expurga como um todo, como o universo que somos.
O que me machuca é que essa força-potência, essa chama de vida, há muito por eles descoberta em nós e transformada em quase tudo que o mundo se arvora, a nós, pra grande parte de nós, nada mais é que poeira, pó encastelado em casas arruinadas, em templos fechados e cera de vela seca e gasta. Miramos ao céu, ao alto, quando a Força-Vida que nos sustenta vem do chão, vem da terra. Sobrevivemos porque a nossa existência sempre se mirou do chão pra se erguer e suportar.
Por isso, olho como nos sentimos seduzidos pelos badulaques, perfumes e apetrechos mentais que os oynbo erguem a si mesmo como monumentos de grandeza, de realização humana, e me acometo sim, de uma profunda tristeza. As miradas em paris, veneza, os cafés, os bistrôs, os santos em suas versões barrocas, modernas, góticas; as bíblias com suas versões e entendimentos filtrados ao bel-prazer e interesse de quem nos aprisiona pela fé; e o nosso gozo nessa admiração que reflete a imagem de auto-realização deles. O ponto não é estar em tais lugares, é vê-los como ápice civilizatório, de pra onde devemos ir e do que devemos ser.
O mundo por esta lente é uma fresta estreita das possibilidades nossas no mundo. De ver nossas tecnologias reinventadas em formatos de sobrevivência, mas não só, de civilidade, potência humana e criatividade. Que no barro e na palha, no mato, no vento vistos imageticamente como de gente “subdesenvolvida” esconde-se o ouro da mina que eles não cansam de vir buscar para resolver os seus problemas (que acabam por se tornar nossos). A margem do mundo é o Centro, e o centro do mundo projetado é a aresta, é a margem é o escombro travestido de palácio.
Foto por: Roger Cipó
É preciso perguntar-nos o porquê das nossas mais diversas formas de resistência estão intimamente relacionadas ao campo espiritual. Não das religiões, mas sim das estruturas mais diretas de contato e vivência espiritual. E porque são exatamente estas conexões que são deturpadas, escondidas, vistas como más e combatidas. O laço da ancestralidade e espiritualidade africana em todos nós é um pulsar que se bem orientado, bem canalizado, é uma força incomensurável. Ayti é exemplo, Ngola Janga também.
A força, a criatividade e a cultura estão em nós, intrinsecamente em nós. A civilização tb!
Ousemos nos buscar! Os exemplos estão vivos e manifestos, pois pulsam no mundo central que é enxergado como marginal!
Por: Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), 1 de setembro de 2019.
Mini bio:
Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares), filho de Fernando e de Sandra. Focado na manutenção dos saberes civilizatórios afrikanos via candomblé sendo Omo Ògún; e na Capuêra Angola sendo Tago (Buscalonge). Interesse na História do Povo Afrikano no mundo com os seus desdobramentos na Diáspora. Mestrando em Saúde Pública (USP). Estuda e pesquisa masculinidades negras, das quais é um dos autores de "Diálogos Contemporâneos sobre Homens Negros e Masculinidades". Membro do Cartel do Nilo, uma confraria masculina negra baseada no bem-estar de seus membros. É membro do Ciclos de Formação Marcus Garvey, e co-responsável pela produção do livro "Procure Por Mim na Tempestade - De Pé Raça Poderosa".
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