SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Bio-caminho

salloma Salomão Jovino da Silva, "Salloma Salomão é um dos vencedores do CONCURSO NACIONAL DE DRAMATURGIA RUTH DE SOUZA, em São Paulo, 2004. por dez anos foi Professor da FSA-SP, Produtor Cultural, Músico, Dramaturgo, Ator e Historiador. Pesquisador financiado pela Capes e CNPQ, investigador vistante do Instituto de Ciências Socais da Universidade de Lisboa. Orientações Dra Maria Odila Leite da Silva, Dr José Machado Pais e Dra Antonieta Antonacci. Lançou trabalhos artísticos e de pesquisa sobre musicalidades e teatralidades negras na diáspora. Segue curioso pelo Brasil e mundo afora atrás do rastros da diáspora negra. #CORRENTE- LIBERTADORA: O QUILOMBO DA MEMÓRIA-VÍDEO- 1990- ADVP-FANTASMA. #AFRORIGEM-CD- 1995- CD-ARUANDA MUNDI. #OS SONS QUE VEM DAS RUAS- 1997- SELO NEGRO. #O DIA DAS TRIBOS-CD-1998-ARUANDA MUNDI. #UM MUNDO PRETO PAULISTANO- TCC-HISTÓRIA-PUC-SP 1997- ARUANDA MUNDI. #A POLIFONIA DO PROTESTO NEGRO- 2000-DISSERTAÇÃO DE MESTRADO- PUC-SP. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- CD - 2002 -ARUANDA MUNDI #AS MARIMBAS DE DEBRET- ICS-PT- 2003. #MEMÓRIAS SONORAS DA NOITE- TESE DE DOUTORADO- 2005- PUC-SP. #FACES DA TARDE DE UM MESMO SENTIMENTO- CD- 2008- ARUANDA SALLOMA 30 ANOS DE MUSICALIDADE E NEGRITUDE- DVD-2010- ARUANDA MUNDI. Elenco de Gota D'Água Preta 2019, Criador de Agosto na cidade murada.

sábado, 6 de junho de 2020

Walter Garcia-Tragédia na Vila do Meio-Dia: uma contribuição à crítica de Gota D’Água {Preta}


Olegário de Azeredo Filho



Tragedy in Vila do Meio-Dia: a contribution to the aesthetic criticism of Gota D’Água {Preta}

Walter Garcia
Professor do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Autor de Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto (São Paulo: Paz e Terra, 1999) e de Melancolias, mercadorias: Dorival Caymmi, Chico Buarque, o pregão de rua e a canção popular-comercial no Brasil (São Paulo: Ateliê Editorial, 2013). Organizador de João Gilberto (São Paulo: Cosac Naify, 2012). Compositor e violonista, em 2016 lançou o projeto autoral na cachola com a cantora e compositora Marília Calderón (https://www.nacachola.com/).

O artigo retoma a recepção de Gota D’Água {Preta}, encenação da peça escrita por Paulo Pontes e Chico Buarque, idealizada e dirigida por Jé Oliveira em 2019. O valor estético do espetáculo é discutido à luz da estrutura do texto teatral e das relações que a montagem estabeleceu entre a MPB e sonoridades da Diáspora Africana.

Palavras-chave:
Teatro musical brasileiro, Música popular brasileira, Gênero e identidade negra, Paulo Pontes, Chico Buarque.

Abstract
This article resumes the receipt of Gota D’Água {Preta}, staging of the play written by Paulo Pontes and Chico Buarque, idealised and directed by Jé Oliveira in 2019. The aesthetic value of the play is discussed in the light of the structure of the theatrical text and the relations that the staging has established between MPB (Brazilian Popular Music) and sonorities of the African Diaspora.

Keywords: Brazilian Musical Theater, Brazilian Popular Music, Gender and Black Identity, Paulo Pontes, Chico Buarque.

Por Evandro Macedo
Na recepção imediata de parte significativa da crítica, Gota D’Água {Preta} é um marco no teatro brasileiro profissional – e, portanto, na cultura, na sociedade e na política brasileira em 2019. Retomarei cinco textos que expressaram essa percepção, de ângulos diversos mas sempre de modo categórico.
Em fevereiro, quando da temporada de estreia no Itaú Cultural, Rosane Borges afirmou que a reelaboração da peça de Paulo Pontes e Chico Buarque, idealizada e dirigida por Jé Oliveira, configurava “um levante contra a cegueira da lógica de representação que silencia, invisibiliza e até destitui corpos racialmente não hegemônicos” (BORGES, 2019). Isso porque o trabalho coletivo de atrizes, atores e instrumentistas, “na manufatura da montagem” e no “plano das intenções ideológicas”, materializava personagens “pobres, pretos e favelados” que, desde a estreia de Gota D’Água, em 1975, permaneceram, via de regra, na “condição de seres virtuais”:

A cada cena nos defrontamos com um redemoinho de protesto justo em favor da esquecida dignidade da gente negra. São mananciais de insubordinação e ternura que brotam do palco e que nos fazem crer que o mundo (ainda) tem jeito. É tudo o que precisamos nesta quadra da nossa história. (BORGES, 2019)

Na mesma linha, mas com outro enfoque, Paulo Bio de Toledo observou que os corpos negros “integram uma estética que amplia o horizonte crítico da peça” (TOLEDO, 2019). Tendo por antecedente Farinha com açúcar ou Sobre a sustança de meninos e homens – peça-show do Coletivo Negro escrita e protagonizada por Jé Oliveira a partir de “12 entrevistas de homens negros de diversas idades e ocupações” e do diálogo com a obra do Racionais MC’s (OLIVEIRA, 2018, p. 19) –, essa estética, segundo Paulo Bio, fez a transposição para o teatro do que “há de mais avançado no rap brasileiro: a multiplicidade de vozes; a objetividade cortante da lírica; a expectativa de uma periferia coletiva e insubmissa” (TOLEDO, 2019).
Já a temporada seguinte de Gota D’Água {Preta}, em março, na sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo (CCSP), possibilitou a Valmir Santos analisar conjuntamente o espetáculo e (In)justiça, da Companhia de Teatro de Heliópolis. À luz da “efervescente e qualificada produção” do teatro negro na década de 2010, Santos identificou a crítica contundente ao racismo e à desigualdade social, “a inscrição da cultura afrodescendente nas corporeidades” e “a assunção em cena da natureza ritualística entrelaçada às práticas religiosas”, por sua vez conciliadas com “questões identitárias, sociais e políticas”, como traços essenciais de ambos os trabalhos (SANTOS, 2019).
No caso específico do “terreiro cênico” de Gota D’Água {Preta}, para o qual confluíram “elementos do candomblé e da umbanda”, Valmir Santos destacou a “cosmovisão do feminino crucial” que se delineava: “na dança da atriz Aysha Nascimento”; na atuação de Juçara Marçal, “esta artista pensadora do canto”; na “simbiose corpo e voz entre Aysha e Juçara”; no “exemplo de sororidade poética” dado pela relação das personagens Corina (Aysha Nascimento), Nenê (Dani Nega)[1], Zaíra (Marina Esteves) e Joana (Juçara Marçal), bem como na presença, dentre elas, de uma personagem que sublinhava ser lésbica. Nessa perspectiva, a “‘re-atualização’” de Jé Oliveira, “em legítima retomada do popular e do trágico pela cultura periférica e pela ancestralidade afro-brasileira”, colocara “em relevo o ponto de vista da feminilidade negra” e, ao complementar e contrastar “a masculinidade negra esmiuçada em Farinha com açúcar ou Sobre a sustança de meninos e homens”, reafirmara “a ambição pelos procederes investigativo e criativo” (SANTOS, 2019).
Abrirei parênteses. O material de divulgação do espetáculo estimava que “quase 8 mil pessoas” haviam assistido a Gota D’Água {Preta} desde a estreia, em 8 de fevereiro, até o mês de maio (ABC DO ABC, 2019). Nesse período, foram realizadas 24 apresentações em cinco teatros da cidade de São Paulo: sala Itaú Cultural (sete sessões), sala Jardel Filho do CCSP (nove sessões), Auditório do Ibirapuera (três sessões) e Galpão do Folias (cinco sessões). Em julho, mais doze apresentações: duas no Sesc Guarulhos, nove no Sesc Santo André e uma no Teatro Municipal de São Paulo. De agosto até o início de outubro, houve uma apresentação no Sesc Jundiaí, duas no Theatro São Pedro, participando do 26º Festival Internacional de Artes Cênicas “Porto Alegre em Cena”, e uma no Sesc Santos. A estimativa de público, nessas 40 apresentações, subiu para “mais de 16 mil pessoas” (SESC RIO, 2019). Não tenho por objetivo aferir releases ou desenhar a geografia da circulação da montagem. Ao enumerar teatros, cidades, ao contar as apresentações e citar as estimativas de público, busco chamar atenção, ainda que de modo precário, para o raio de alcance do espetáculo. É certo que quantidades não dizem tudo, principalmente quando carecem de pesquisa e reflexão, o que não farei; mas, se esses números dizem alguma coisa, apontam para o lugar sociocultural onde as críticas aqui sintetizadas foram geradas e reverberaram com maior intensidade.
Ainda em outubro, durante duas semanas, a montagem foi levada ao Teatro Sesc Ginástico do Rio de Janeiro para dez apresentações[2]. Retomemos a crítica do espetáculo. Juliana França então escreveu que “Gota D’Água {Preta} é um ebó […], é um jorro, um gozo musical”, e identificou “possibilidades de fortalecimento” entrelaçadas na forma da “encenação-ritual”: a história “contada, majoritariamente, por mulheres sobre a mulher Joana-Juçara, mas que poderia ser Catarina, minha mãe”; a construção de um território por meio da atuação corporal e da vocal; “o atabaque, o afeto e o enfrentamento coletivo” (FRANÇA, 2019, grifo da autora). E Patrick Pessoa, em uma síntese parcial do que procurei retomar, afirmou que o espectador que assistisse à montagem veria “um acontecimento”:

o dia em que o rap e os toques e timbres das religiões de matriz africana enegreceram o cancioneiro de Chico Buarque; o dia em que o coro de mulheres negras (as vizinhas de Joana) revelou vocal e corporalmente todo o alcance da palavra sororidade; o dia, enfim, em que o imperativo da representatividade deixou de ser uma quimera e um coletivo de artistas que se avoluma disse “não” ao racismo estrutural da sociedade brasileira dizendo “sim” à riqueza e à complexidade das estéticas e das políticas do povo preto. (PESSOA, 2019)


“Na Vila do Meio-Dia”

A minha percepção de Gota D’Água {Preta} coincide com a desses cinco textos[3]. Tentarei levar adiante a discussão do valor estético da montagem. Conforme se depreende das análises, o fato de o elenco ser predominantemente formado por negras e negros é fundamental para a qualidade artística alcançada à medida que os corpos atuaram concretizando, expandindo e aprofundando intenções da peça. Em termos simples, isso significa que o espetáculo tornou verossímil o drama de uma mulher, Joana (Juçara Marçal) – mãe de santo com voz encantadora que se vale “de todas as cosmogonias” para a sua vingança[4], presumivelmente negra, embora não haja referência direta à sua raça no texto teatral; madura; pobre; criando um filho e uma filha abandonada por Jasão (Jé Oliveira), seu companheiro mais jovem, e depois abandonada por suas amigas Nenê e Zaíra e por seus amigos Cacetão (Ícaro Rodrigues) e Amorim (Mateus Sousa), situação que a conduz a um beco sem saída –, enquanto alegoria de “uma tragédia da vida brasileira”, dimensão que fez parte das “preocupações fundamentais” que a peça de Paulo Pontes e Chico Buarque procurou refletir, como se lê na Apresentação do texto (BUARQUE; PONTES, 1976, p. xi, xvii)[5]. “Vida brasileira” deve ser aqui entendida como um processo social estruturado:

1) por articulações entre “raça, classe, sexo e poder” (GONZALEZ, 2011, p. 18), a partir das quais mulheres negras se veem submetidas a “diversos níveis de subordinação e opressão” (CARNEIRO, 1993, p. 9) que recrudescem com o envelhecimento. Nesse quadro, há que se ressaltar:
a) o papel de “verdadeiro eixo econômico” que, nas famílias das “camadas mais baixas da população, cabe à mulher negra” quando se une a um homem negro “despreparado profissionalmente por força de contingências históricas e raciais” – condição que dificulta ou, no limite, que impede uma relação “de paridade sexual”, marcada “por um desejo amoroso de repartir afeto, assim como o material” (NASCIMENTO, 2006a, p. 128);
b) a persistência das opções de trabalho para quem, como Joana, é vista como aquela que lava privada, cose “pra madame”, tem “braço pra ser operária” e “peito pra ser marafona” (BUARQUE; PONTES, 1976, p. 85-86)[6];

2) por padrões patriarcais de dominação, exercidos por um homem branco, Creonte (Rodrigo Mercadante) – construtor e financiador do conjunto habitacional da Vila do Meio-Dia; patrocinador de “Gota D’Água”, sucesso do sambista Jasão; pai de Alma (Marina Esteves), com quem Jasão irá se casar; benfeitor da escola de samba e do time de futebol do bairro. Em síntese, os padrões patriarcais de Creonte implicam:
a) capacidade de mando, forma que adota a vontade particular e comportamentos atravessados pela emoção como bases para o convívio social (BUARQUE; PONTES, 1976, 30-40, 93-107, 133-138, 148-151);
b) instrumentos de espoliação econômica garantidos pela Lei e pela força policial – “juros, dividendo, mais correção, taxa e ziriguidum” (BUARQUE; PONTES, 1976, p. 8), “Papel, documento… Escritura”, além de ações de despejo (BUARQUE; PONTES, 1976, p. 148-151);
c) defesa da “‘aceitação’”, da “‘integração’” e da “‘igualdade’”, assumindo “pontos de vista do dominador” (NASCIMENTO, 2006c, p. 102) com amparo na meritocracia. Tal ideologia, que alardeia não tratar ninguém com “preconceito ou discriminação”, revela seu momento de verdade quando Creonte chama Jasão de “Noel Rosa” de maneira tão insistente que o suposto elogio poderia ser tipificado como injúria racial (BUARQUE; PONTES, 1976, p. 30, 33, 36, 40, 107, 167-168);
d) compra de toda sorte de mimos para a filha, Alma (BUARQUE; PONTES, 1976, p. 28-40, 93-107);
3) por movimentos de resistência comunitária, organizados por Egeu (Salloma Salomão)[7] e Corina (Aysha Nascimento). Ela e ele são donos “de teto e chão” (BUARQUE; PONTES, 1976, p. 13); portanto, não têm “nada a perder”, dizem o que pensam e permanecem com Joana até o fim (BUARQUE; PONTES, 1976, p. 168). A resistência comunitária, entretanto, é combatida e derrotada por Creonte em duas frentes:
a) no caso de Nenê, Zaíra, Cacetão e Amorim, a resistência arrefece pela necessidade de sobrevivência – as dívidas das prestações são perdoadas por Creonte, que também promete reformar o conjunto habitacional; Nenê, justamente aquela que se sente mais vulnerável por ser lésbica, acaba trabalhando na preparação da festa de casamento de Jasão e Alma; e nessa festa, à exceção de Corina e Egeu, amigas e amigos de Joana comemoram, brindando;
b) no caso de Jasão, a resistência comunitária é derrotada pela ascensão individual do “cara certo” na indústria de diversões (BUARQUE; PONTES, 1976, p. 59) e pelo seu arrivismo, exercido com tal consciência que ele se oferece “como pelego” (ARAÚJO, 2014, p. 78) – é Jasão quem expõe a Creonte o plano de perdoar as dívidas e de empreender melhorias no conjunto habitacional, para que a taxa das prestações seja aumentada no futuro, depois que moradoras e moradores tiverem ganho confiança e alimentem “uma nova esperança” (BUARQUE; PONTES, 1976, p. 104).


Por Elma Santos

Contudo, afirmar que a atuação do elenco tornou a alegoria verossímil é também dizer que a presença ostensiva de corpos negros não bastou, por si só, para que esse resultado fosse alcançado. Em outras palavras, caso o trabalho não fosse bem realizado, pessoas negras se veriam amplamente representadas no palco, e o enfrentamento do racismo e dos privilégios da branquitude em Gota D’Água {Preta} teria um lugar de destaque na história do teatro, nas esferas cultural, social e política, mas fracassaria como obra de arte; ao mesmo tempo, a presença majoritária de corpos negros não se separa do resultado estético do espetáculo, é constitutivo dele e não um elemento acidental.
Acima sumariei algumas das passagens em que Valmir Santos destacou a atuação das atrizes. A sua crítica se voltou ainda para o trabalho de Salloma Salomão, que expressou a conjugação de trabalho manual e pensamento em Mestre Egeu. Para a construção do “Jasão de Oliveira”, que não aderiu ao “julgamento moral já implícito na dramaturgia”, mas encarnou “um poço de contradições” (SANTOS, 2019), dando concretude ao remorso, à divisão “em dois”, à “consciência retorcida” de um sujeito que, no fim das contas, desempenha o papel de vencedor no discurso hegemônico e, portanto, no senso comum (BUARQUE; PONTES, 1976, p. 92-93). E para as intervenções de Rodrigo Mercadante, que esbanjaram carisma, “artifício de ascensão de boa parte dos ditadores” e que, no entanto, frisaram “o veio autoritário por trás da falsa máscara de benemérito” (SANTOS 2019). Também Juliana França salientou a interpretação de Rodrigo Mercadante, personificação “da estrutura racista, fascista, machista e elitista na qual estamos inseridos”, capaz de fazer a plateia ou sangrar e gritar ou, entre anestesiada e impotente, silenciar (FRANÇA, 2019).
Em resumo, tomando de empréstimo frase de Paulo Bio de Toledo, em Gota D’Água {Preta} “personagens que normalmente ficam à sombra de Joana” foram iluminados pelo trabalho artístico da direção e do elenco (TOLEDO, 2019). Daí o drama de uma “mulher negra vulnerabilizada” (BORGES, 2019) haver configurado a alegoria de “uma tragédia da vida brasileira” que não se resolveria pela defesa cínica ou sincera de valores que hoje ressurgem com força, como se deu, aliás, em 1964: “a célula da nação é a família, o Brasil é altivo, nossas tradições cristãs” (SCHWARZ, 1992, p. 71). Alternando-se no repúdio e no aplauso a Jasão, posicionando-se junto à comunidade ou cedendo ao medo de cair na miséria, Ícaro Rodrigues e Mateus Sousa carregaram uma diversidade de tipos originalmente concebida para quatro personagens (Cacetão, Amorim, Boca Pequena e Xulé). Única atriz a representar dois papéis, Marina Esteves tanto estabeleceu a distância que afastava Alma e Zaíra quanto acenou para o fato de que uma e outra estavam próximas em alguma medida, não só porque eram mais jovens do que Joana e, sendo negras, tinham a pele mais clara, como também porque a linguagem agressiva atualmente faz par com a defesa de privilégios no discurso hegemônico: se Zaíra era uma vizinha desbocada que saía em defesa de Joana, Alma, espelho de Creonte e perfeita imagem de sucesso, também era capaz de perder a linha e insultar Jasão com palavrões. Na representação do ambiente da Vila do Meio-Dia, feita em chave realista, Ícaro Rodrigues, Mateus Sousa, Dani Nega, Marina Esteves, Aysha Nascimento fizeram rir nos momentos certos, sem diluir o sofrimento que atravessava as cenas.
Acresce que o fortalecimento de cada intenção e de cada sentimento não enfraqueceu o núcleo do drama, Joana. Ao contrário. O que o trabalho coletivo não permitiu foi aquele risco que sempre ronda montagens de Gota D’Água – com perdão pelo clichê, o risco de ir a Roma e ver somente o papa. E a “bela sobriedade”, na formulação de Paulo Bio de Toledo (2019), da atuação de Juçara Marçal encontrou o espaço adequado para expressar com equilíbrio a angústia de uma personagem que não enxergou outra saída senão assassinar o seu filho e a sua filha e suicidar-se como forma de vingança, o que deve ser compreendido como a única ação vislumbrada para não ceder às injustiças e obter reparação.
Note-se que expressar com equilíbrio significa responder com dignidade às formas de violência. As primeiras palavras de Joana, dirigidas às suas amigas, já anunciavam a tragédia. Adiante, com apoio sutil do coro, “Bem-querer” fez ouvir a certeza de que o amor conduz à morte. O embate de Creonte e Joana, desaguando em “Basta um dia”, revelou o medo dos poderosos e a astúcia de uma “mulher sozinha”, “de mãos atadas”, que dizia só pensar nos “dois filhos”. No instante mortal de Joana, enquanto ela cantava “Gota D’Água” acompanhada pelo violão de Gabriel Longhitano e pela cuíca de Fernando Alabê, o palco permaneceu no escuro, o que nos levou a (não) ver o que desconhecemos e a escutar sem efeitos desnecessários, na junção da semântica dos versos e do desenho das frases musicais, o que é essencial: o sentido da vida e da morte da personagem. Pois em todas essas passagens Juçara Marçal expressou, na justa medida, sofrimento, doçura, medo, lucidez, ódio, cálculo, desprezo, vaidade, revolta, amor. Não à toa Jé Oliveira, quando Jasão se mostrava incapaz de melhorar o argumento, desviava o corpo e o olhar e tornava os gestos pesados, sinal de que sabia da sua derrota e de que continha a raiva, acenando porém com a possibilidade de agressão física. A expressão equilibrada permitiu a Joana ser irredutível em sua dignidade. Para Jasão responder à altura, seria necessário que tivesse retidão, algo impossível para um “sujeito em seu labirinto” (SANTOS, 2019).


“Hey, senhor de engenho, eu sei bem quem você é”

Na exposição das “preocupações fundamentais” (BUARQUE; PONTES, 1976, p. xi) que Gota D’Água procurou refletir, declarava-se: “É preciso, de todas as maneiras, tentar fazer voltar o nosso povo ao nosso palco” (BUARQUE; PONTES, 1976, p. xvii). Adélia Bezerra de Meneses, escrevendo no início da década de 1980, identificou que essa era a “preocupação fulcral” do texto. Todavia, ao “examinar a distância que medeia entre intenção e realização”, concluiu que a peça fez aflorar, “da perspectiva do ‘Nacional-Popular’”, o problema da projeção de questões típicas da fração da classe “de seus autores”, ou seja, da fração intelectualizada da classe média, “na matéria popular”; essas questões seriam: a “escalada de juros e correção monetária […] dos planos de financiamento à la BNH”; as dificuldades “de arrecadação e de direitos autorais, para compositores populares”; os ideais de cooptação de quem, tendo de escolher entre duas alternativas, ou “‘dançar a valsa’” com a herdeira de uma fortuna acumulada graças à exploração econômica, ou “‘pular o Carnaval no purgatório’ com a sua gente, escolherá a primeira” (MENESES, 2000, p. 174-177).
Ainda na tentativa de levar adiante a crítica da estética de Gota D’Água {Preta}, discutirei o problema da projeção de valores da classe média intelectualizada “na matéria popular” a partir do ângulo do trabalho musical. Retomarei, uma vez mais, a recepção imediata do espetáculo. Como se leu nas citações que fiz, Patrick Pessoa afirmou que “o rap e os toques e timbres das religiões de matriz africana enegreceram o cancioneiro de Chico Buarque” (PESSOA, 2019). Juliana França definiu Gota D’Água {Preta} como “um jorro, um gozo musical”, e identificou o atabaque como uma das “possibilidades de fortalecimento” que a encenação oferecia. Mas, acrescento agora, a sua crítica também se referiu ao rap, ao funk e ao samba (FRANÇA, 2019). Valmir Santos, além de salientar a importância da dança e dos cantos do candomblé e da umbanda, bem como a do diálogo com o Racionais MC’s como elementos que estruturaram a forma do espetáculo, atentou para a “cozinha sonora do hip hop e do samba” e para a experiência de Juçara Marçal no grupo A Barca e na banda Metá Metá (SANTOS, 2019). Já Paulo Bio de Toledo analisou não só o diálogo entre Chico Buarque e Racionais MC’s no espetáculo, conforme anteriormente resumi, mas também entre Chico e MC Bin Laden (“Tá tranquilo, tá favorável”). E observou que “o procedimento com as músicas” espelhava o “pensamento sobre a trama e o teatro”: o elenco manipulara “samples literários e musicais” como um MC ou um DJ e demarcara “sua própria resistência” (TOLEDO, 2019). Por fim, Rosane Borges afirmou que “samba e rap, Chico Buarque e Racionais MC’s” estiveram “em sintonia fina” (BORGES, 2019).
Com direção musical de Jé Oliveira e William Guedes, a banda de Gota D’Água {Preta} foi formada por DJ Tano (pick-ups e bases), Fernando Alabê (percussão),[8] Gabriel Longhitano (guitarra, violão, cavaquinho, percussão) e Suka Figueiredo (sax tenor, percussão); participaram ainda de alguns arranjos Jé Oliveira (cavaquinho), Salloma Salomão (flauta transversal), Ícaro Rodrigues, Mateus Sousa, Dani Nega, Marina Esteves (percussão). Em uma tentativa de esquematização, pode-se dizer que esse trabalho estabeleceu relações entre a chamada MPB, onde as composições de Chico Buarque obviamente estão radicadas, e sonoridades da Diáspora Africana na América Portuguesa e no Brasil, em que se distinguem pelo menos duas constelações:

 1) a das religiões afro-brasileiras, presentes em Gota D’Água {Preta} por meio de cantos de candomblé, de umbanda e, no arranjo de “Flor da idade”, da base percussiva do jongo – modalidade de cantoria e de dança de roda acompanhada de tambores, de tradição banta[9]. A fim de melhor elucidar a relação, vejamos o prólogo criado pela montagem e, nele, o tratamento que o conjunto de práticas e de expectativas vinculadas à MPB de Chico Buarque recebeu. Quando o público entrava, atrizes, atores e instrumentistas já estavam sentados em roda, no palco. Uma movimentação coletiva, então, indicava os lugares que seriam ocupados pelos personagens no drama. Na sequência, Dani Nega e Marina Esteves tocavam atabaques, e Dani Nega iniciava um canto saudando Exu Rei, Sete Fronteiras, Sr. Tranca Ruas e Pombagira. Ela era secundada pelo coro de mulheres, o elenco batia palmas, e Aysha Nascimento dançava, encenando a incorporação de uma entidade que acompanharia Joana em outros momentos – daí a “simbiose corpo e voz entre Aysha e Juçara”, ressaltada por Valmir Santos (2019); daí também Juliana França (2019) estimar que “a voz de Joana-Juçara dança e o corpo de Corina-Aysha canta”.
Sabe-se que não só as práticas e as expectativas, mas também os significados e os valores vinculados à sigla MPB sempre implicaram disputas, além de reagirem a uma série de problemas ao longo das décadas e, portanto, se modificarem desde os anos 1960. Nesse sentido, é certo que o prólogo de Gota D’Água {Preta} incidiria de diferentes modos sobre a MPB se dialogasse com Gilberto Gil, ou com Paulinho da Viola, ou com Milton Nascimento, ou com Jorge Ben, artistas negros que nunca se deixaram embranquecer, mas que desenvolveram obras entre si bem distintas. Sem estender demais o comentário, o mesmo se daria se o diálogo fosse travado com Geraldo Vandré, ou com Caetano Veloso, ou com Maria Bethânia, ou com Gal Costa, ou com Clementina de Jesus[10]. No caso que interessa, o canto, o toque e a dança que abriram o espetáculo contrariaram práticas e expectativas porque deslocaram a obra de Chico Buarque – a qual configurou a MPB, dentre outros traços, pela relação com as culturas negras mediada por composições de Ismael Silva, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, Cartola, Nelson Cavaquinho[11] – para um “terreiro cênico” de negras e negros, antecipando a festa de “Flor da idade” e a catarse provocada pelo canto coletivo de “Gota D’Água”, na última cena da peça. Adiante retomarei o ponto;

2) a constelação da música negra urbana, no quadro das culturas das periferias,[12] presente no espetáculo sobretudo por meio do rap do Racionais MC’s, mas também por meio do funk e de vertentes do samba.

Vou me deter com mais atenção nesse segundo conjunto de relações. Começarei destacando quatro vertentes do samba urbano que foram integradas ao espetáculo. A primeira delas foi a do emblemático “Pelo telefone”, de Donga e Mauro de Almeida, cantado por Cacetão e Mestre Egeu com sua letra anônima (“O chefe da polícia/ Pelo telefone/ Manda me avisar/ Que na Carioca/ Tem uma roleta/ Para se jogar”), e não com a letra gravada pelo cantor Bahiano em 1917 (“O chefe da folia/ Pelo telefone/ Manda me avisar/ Que com alegria/ Não se questione/ Para se brincar”). Desse modo, ainda que a letra anônima tenha se mantido pela imprensa, por livros e por discos, meios também utilizados pela MPB para inventar-se como tradição, a montagem parecia rememorar a vida comunitária no terreiro da casa da Tia Ciata, situada na “pequena África no Rio de Janeiro”, onde “Pelo telefone” surgiu como improviso com certo teor de crítica social[13].
A segunda vertente foi a do samba de quadra, estilo com que Nenê, Corina, Zaíra, Cacetão e Amorim cantavam, com apoio da banda, “Gota D’Água” no espaço público da Vila do Meio-Dia. Como também escutávamos, no espetáculo, “Gota D’Água” gravado por Bibi Ferreira, para o disco derivado da primeira montagem da peça, e por Chico Buarque, no show dividido com Maria Bethânia no Canecão, em 1975, tornou-se ostensiva a distância entre o samba na rua encenado em Gota D’Água {Preta} e a canção da classe média intelectualizada, em suas noites de gala[14]. Em última análise, a “‘re-atualização’” do musical atentava para os limites da MPB, constelação que falseia a realidade caso se acredite que a sua utopia de se tornar “Popular” e de representar o que seja “Brasileiro” se realizou. Nessa perspectiva é que também se deve inserir a crítica contundente que o espetáculo fez ao anunciar a entrada em cena de Creonte com um sample de “How Insensitive (Insensatez)”, de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Norman Gimbel, gravada por Tom e Sting em 1994: a bossa nova internacionalizada do “maestro soberano” de Chico Buarque, junto a quadros de Romero Britto comprados para o apartamento de Alma, era a mais pura ostentação de uma cultura sofisticada que tinha por finalidade guardar distância em relação aos moradores da Vila do Meio-Dia e marcar a intenção de extirpar as raízes do sambista Jasão, fincadas na pobreza e na identidade negra (GARCIA, 2019)[15].
A terceira e a quarta vertentes de samba que o trabalho musical integrou a Gota D’Água {Preta} contribuíram ainda para a localização geográfica mais precisa do conjunto habitacional e para a definição da raça de moradoras e moradores. Quando da visita de Jasão a seus amigos, Cacetão entoava versos de “E eu não fui convidado”, partido-alto de Zé Luiz e Nei Lopes gravado pelo Grupo Fundo de Quintal em 1985. E, no início do segundo ato, a banda tocava um samba-rock.
Pensamento semelhante se aplica à utilização do funk no espetáculo. Além do sample de “Tá tranquilo, tá favorável”, de MC Bin Laden, o gênero transformou a parte final de “Flor da idade”, em que Chico Buarque glosou o poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade. Essa parte era cantada por atrizes e atores em clima de festa. E no arranjo, como foi dito acima, também foi utilizada a base percussiva do jongo. Sendo a primeira composição de Chico cantada na peça, “Flor da idade” acabou funcionando como um laboratório do enegrecimento da MPB e de sua transposição para a periferia. E contribuiu para a cumplicidade entre palco e plateia. É claro que se pode desconfiar do “lado fácil e tautológico” dessa cumplicidade, na linha da desconfiança que se tem quando tal relação é alimentada por cacos que trazem notícias do dia[16]. Mas os recursos musicais avivaram a canção de Chico Buarque configurando o exemplo mais sintético de como o trabalho musical se diferenciou do folclore e do espetáculo televisivo[17]. Por sua vez, os cacos ajudaram a retirar de uma peça teatral considerada “clássica” a sua condição de ornamento de classe e de raça, dando ao espetáculo a concretude, a substância e a originalidade que a Apresentação do texto perseguia (PONTES; BUARQUE, 1976, p. xvii).
Todo esse processo culminou na catarse provocada pelo canto coletivo de “Gota D’Água”, na última cena, sobre a base musical de “Negro drama”, de Edi Rock e Mano Brown. Antes de passar à sua análise, entretanto, é preciso advertir que não se deve subestimar o valor e a eficácia do lirismo da MPB de Chico Buarque para o espetáculo. Em cenas cruciais de Joana, quando Juçara Marçal interpretou “Bem-querer”, “Basta um dia” e, solo, “Gota D’Água”, o canto se filiou à estética emepebista. A essa estética também se filiou o violão de Gabriel Longhitano, que acompanhou Juçara naquelas canções (em “Basta um dia”, o arranjo incluiu o sax tenor de Suka Figueiredo; em “Gota D’Água”, a cuíca de Fernando Alabê)[18]. Longhitano também solou com beleza dilacerante, mas de forma enxuta – uma das marcas da linha bossanovista da MPB –, em contraponto ao diálogo de Joana com Xangô, quando ela decidiu os assassinatos do filho e da filha e o suicídio. Além disso, as inserções no espetáculo de “João e Maria”, de Sivuca e Chico, “Jorge Maravilha”, assinada por Julinho da Adelaide, “Deus lhe Pague” e “Uma canção desnaturada”, ambas de Chico, demonstraram que o enegrecimento foi empreendido a partir da intimidade com o repertório do compositor.
Assim, penso que tenham ocorrido dois processos como resultado do trabalho musical de Gota D'Água {Preta}. Primeiro, houve o deslocamento das composições cantadas pelo coro, de corte épico, para um bairro habitado predominantemente por negras e negros. Segundo, à luz dessa representação da vida na periferia urbana, o trabalho talentoso de Juçara Marçal e da banda, mantendo-se no campo da MPB, revalorizou a lírica de Chico Buarque, já de si tão forte na expressão de estados da alma de Joana.
Isso posto, devem ser considerados quatro aspectos do arranjo de “Gota D’Água” cantada pelo elenco, no encerramento da peça, depois que Egeu e Corina carregaram os despojos mortais de Joana, seu filho e sua filha (os corpos representados por trajes) para dentro da festa de casamento de Jasão e Alma. O primeiro deles é que a obra de Chico Buarque, via de regra, impõe certo grau de dificuldade por conta de suas “difíceis melodias”, sobretudo quando se canta em coro (HOTIMSKY, 2019, p. 152)[19]. Porém, o trabalho de preparação vocal de William Guedes e, é evidente, a qualidade de atrizes e atores fizeram “Gota D’Água” parecer fácil de ser cantada, assim como ocorrera com “Flor da idade”.
O segundo aspecto é que esse arranjo de “Gota D’Água” começou pelo sample de Elza Soares entoando a cappella “A carne mais barata do mercado/ É a carne negra”, versos de “A carne”, de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wilson Capellette. A semântica, a duração das notas, o salto intervalar ascendente, a tessitura, o timbre cortante, a história de vida da mulher negra Elza Soares, todos esses elementos ampliaram o sentido do instante mortal de Joana a que se acabara de assistir.
O terceiro aspecto foi antecipado acima: a base musical para o canto do coro foi composta pelo sample de “Negro drama”. Assim, o ritmo da composição de Chico Buarque passou a ser ditado por um dos mais emblemáticos raps do Racionais MC’s, no auge do deslocamento da MPB: do endereçamento incerto ao “nosso povo”, na perspectiva do nacional-popular, “Gota D’Água” passara à quebrada do “‘rap-político’” – de acentuado teor crítico, com narrativas que sintetizam “os cotidianos caracterizados pela violência, injustiça social e arbitrariedades múltiplas”, configurando “lamentos indignados”, dilacerados pela tristeza (AZEVEDO; SILVA, 1999, p. 80), mas que, ao mesmo tempo, se afirmam como gestos simbólicos de revide, com agressividade e lucidez (GARCIA, 2013).
O quarto aspecto é que ainda foram utilizados, nesse arranjo de “Gota D’Água”, samples de Brown cantando “Negro drama” e também “Jesus chorou”, de sua autoria. Em oposição, escutava-se o sample de um então deputado federal declarando-se a favor da tortura. Não poderia ter sido mais nítida a “‘re-atualização’” da “vida brasileira”, assim como nítido era o gesto simbólico de revide. Não se imagine, no entanto, que a catarse tenha oferecido qualquer compensação imaginária. Encenou-se com crueza e sem sensacionalismo o beco sem saída de uma “mulher negra vulnerabilizada”. Na imagem de Rosane Borges, tratou-se de “um bote salva-vidas num momento em que a tempestade se aproxima e o vento se intensifica” (BORGES, 2019).

Por Rafaela Gabani

Caminhos e fronteiras

Como ficou sugerido ao longo deste artigo, diversas dinâmicas socioculturais contribuíram para a produção de Gota D’Água {Preta}. A título de conclusão, tentarei mapear sumariamente oito delas: (1) o teatro negro; (2) a formação teatral em instituições públicas; (3) o hip hop e o rap em São Paulo; (4) o teatro de grupo; (5) a cena musical independente em São Paulo, no século XXI; (6) o conhecimento de religiões de matriz africana; (7) a pesquisa universitária; (8) o patrocínio e a circulação da montagem.
Em relação à primeira dinâmica, Valmir Santos atentou para a “efervescente e qualificada produção” do teatro negro, inscrevendo o Coletivo Negro de Jé Oliveira e Aysha Nascimento, a Companhia de Teatro Heliópolis e Gota D’Água {Preta} em um processo distendido no tempo e que ocorre em pelo menos cinco estados brasileiros:

Há uma saudação inequívoca à geração do Teatro Experimental do Negro (1941-1961), da qual fizeram parte artistas como Abdias Nascimento, Aguinaldo Camargo, Haroldo Costa, Lea Garcia e Ruth de Souza. Reminiscências que também podem ser estendidas, em alguma medida, à Companhia Negra de Revistas (1926-1927) e ao circo-teatro do palhaço Benjamim de Oliveira (1870-1954), sempre no Rio de Janeiro.
A multiplicidade de coletivos e de ações afins denotam a vitalidade, caso da segundaPRETA em Belo Horizonte, no Teatro Espanca!, e das Terças Pretas em Salvador, idealizada pelo Bando de Teatro Olodum [em atividade desde 1990]. Corroboram o panorama grupos como a Cia. dos Comuns (RJ), Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (SP), Capulanas Cia. de Arte Negra (SP), Os Crespos (SP), NATA (Núcleo Afro-Brasileiro de Teatro de Alagoinhas, BA), Grupo Caixa-Preta (RS) e Montigente (RS). Além das encenações de João das Neves (1935-2018): Zumbi, adaptação de Arena conta Zumbi, de Augusto Boal e Guarnieri; Madame Satã, com Grupo dos Dez e do Oficinão Galpão Cine Horto; e Besouro, cordão de ouro e Galanga Chico Rei, ambos criados em parceira com Paulo César Pinheiro. (SANTOS, 2019)

Já em relação ao ensino público e gratuito, é bastante significativo que a formação inicial do Coletivo Negro, criado em São Paulo, em 2008, tenha contado com cinco profissionais que cursaram a Escola Livre de Teatro (ELT) de Santo André: Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues, Jé Oliveira, Jefferson Matias e Thais Dias; e com um, Raphael Garcia, que cursara a Escola de Arte Dramática (EAD) da USP. No elenco de Gota D’Água {Preta}, Rodrigo Mercadante também se formou na EAD. Outros quatro nomes estudaram na ELT: Dani Nega, Ícaro Rodrigues, Marina Esteves e Mateus Sousa. E da ELT, Jé Oliveira e Rodrigo Mercadante foram professores.
Quanto ao rap radicado no hip hop, registre-se que o músico DJ Tano é integrante do grupo Z’África Brasil. E para além do que foi analisado da obra do Racionais MC’s neste artigo, a fim de avaliar a dinâmica de um fenômeno que não ocorreu de forma isolada na capital paulista, retomarei uma síntese proposta por Amailton Magno Azevedo e Salloma Salomão Jovino da Silva (historiador, músico e ator que representou Mestre Egeu). Ambos observaram que, “tanto antes, como depois de maio de 1888”, as “populações negro-mestiças” vieram construindo em São Paulo, por meio da criação e da recriação de práticas musicais, “novas formas de sociabilidade, que podem ser entendidas como expressões dinâmicas de pertencimento” (AZEVEDO; SILVA, 1999, p. 67-68; 72). Dizendo de outro modo, a música se constituiu como uma das “maneiras de tornar a vida possível diante das adversidades” geradas “na relação desigual com as elites econômicas da cidade” (AZEVEDO; SILVA, 1999, p. 69; 72). Nessa chave, e sem ignorarem as descontinuidades e as tensões das “culturas inventadas e ressignificadas” (AZEVEDO; SILVA, 1999, p. 66), os historiadores identificaram uma multiplicidade de sonoridades negras, na capital paulista, que atravessaram o século XX formando o que se pode entender como uma constelação: as “práticas culturais e religiosas” das irmandades de São Benedito, de Santo Elesbão, da Boa Morte, de Nossa Senhora do Rosário, de Santa Efigênia (AZEVEDO; SILVA, 1999, p. 68-69); a tiririca, a pernada, o samba de bumbo, o candombe, a umbigada, o samba lenço, o samba de roda, o batuque (AZEVEDO; SILVA, 1999, p. 69); os cordões carnavalescos, os grupos regionais, as escolas de samba (AZEVEDO; SILVA, 1999, p. 71); os bailes organizados por equipes, o Movimento Black, a música soul a partir dos anos 1970 (AZEVEDO; SILVA, 1999, p. 73); na década seguinte, a “Cultura de Rua” do movimento hip hop e as festas “de fundo de quintal” (AZEVEDO; SILVA, 1999, p. 72; 75); “os grupos de samba paulista como Cravo e Canela, Sem Compromisso, Negritude Júnior” (AZEVEDO; SILVA, 1999, p. 73) e o “‘rap-político’” de Thaíde e DJ Hum, Racionais MC’s e DMN, nas décadas de 1980 e 1990 (AZEVEDO; SILVA, 1999, p. 80)[20].
Sobre a prática do teatro de grupo, em Gota D’Água {Preta} se encontraram, já se disse, integrantes do Coletivo Negro. Aysha Nascimento também é fundadora da Cia. dos Inventivos de Teatro de Rua. Rodrigo Mercadante e William Guedes trabalham na Cia. do Tijolo. Marina Esteves e, como diretor, Ícaro Rodrigues, no Coletivo O Bonde. Julio Dojcsar, responsável pela cenografia, e Eder Lopes, responsável pela assistência de direção e pelos figurinos, também trabalharam com o Coletivo Negro; e Lopes, para não estender muito a nota, ainda com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Nave Gris Cia. Cênica e Coletivo Quizumba.
Na atual cena independente de São Paulo, Juçara Marçal, Dani Nega, Salloma Salomão, Fernando Alabê e Suka Figueiredo desenvolvem trabalhos musicais em paralelo, mas que possuem em comum a pesquisa e a experimentação de sonoridades negras. A canção “Paó”, versos de Paulo Pontes e Chico Buarque musicados por Juçara Marçal, resultou dessa prática. E o uso de microfones no espetáculo também. Da cena independente também participa Gabriel Longhitano, instrumentista e compositor formado em Educação Musical pela Unesp. Rodrigo Mercadante, além de ator, diretor e dramaturgo, é músico, cantor e preparador vocal.
Como foi apontado, elementos, práticas e sistemas de significação de religiões de matriz africana estruturaram a reelaboração de Gota D’Água. Nas últimas semanas de ensaio, em janeiro de 2019, Fernando Alabê refletiu acerca dos arquétipos reproduzidos na peça e na montagem. Seu texto ficou circunscrito ao elenco, em comunicação por rede social. Em dezembro, solicitei autorização para incluí-lo neste artigo. Alabê concordou, após fazer algumas poucas revisões e uma advertência: “A contribuição foi muito em cima da forma oral que aprendi. Pode haver elementos que se contradigam. Mas essa controvérsia está mais do que presente na nossa história, contada de muitas formas”:

Salve! Pelo texto original, não sei bem os arquétipos que o Chico Buarque e o Paulo Pontes elencaram. Mas, pelo que levantamos na versão que o Jé Oliveira dirigiu, se dispõem Oxóssi, em Jasão, e Obá e Xangô, em Joana.
Em sua primeira aparição, Joana clama por justiça. Por isso foi proposto o Alujá, ritmo dedicado ao Orisà da Justiça, Xangô. No segundo ato, ela segue buscando caminho pelos Orisàs guerreiros, como Jagun, o guerreiro de branco, que tem caminho com Obáluwaiyê (título de Omolu, de Rei Dono da Terra) e com Oxaguian (variação “mais jovem” e guerreira de Oxalá). Já o último a quem ela clama, como pai, é Xangô, mas cabe um porém, a ser dito mais à frente.
Especificamente nas figuras femininas, na empatia, sororidade até dado momento da peça, o arquétipo social de Obá se demonstra, pois esta Aiyabá não é apenas a que perdeu a orelha por uma trama de Osun, mas sim a fundadora de uma ordem de mulheres, a Obá Elekô. Ela anda com as feiticeiras ancestrais da noite, as Iyami Oxorongá, guerreia como Xangô e caça como Odé (título dos caçadores e das caçadoras yoruba).
Ao usar de sincretismos, as coisas se misturam bastante, e então somam-se mais símbolos. Como quando Joana fala em N’ganga, feiticeiro, sábio, líder bantu, sendo, dentro de nossa cultura popular, título dos cantadores de Moçambique e de Candombe mineiro (Salloma Salomão, que faz o Egeu, dentro de sua pesquisa em africanidades, doutor que é no assunto, falaria muito melhor sobre este ponto do que eu).
O Egeu tem muito, mas muito mesmo de Oxalá, no uso da palavra. Eu ia até propor um Igbin, seu ritmo ritualístico, misturado a um trap, para uma fala dele, mas a urgência do processo não deixou que isso acontecesse, infelizmente.
Quanto a Esù, Orisà que se desdobra em muitos e inclusive em gênero, este aparece desde o início, como sempre. É o primeiro a ser reverenciado na peça, com a sua figura em modo feminino, em uma Pomba Gira.
Essa palavra vem de Pambu N’gila, que é o próprio Inkisse, Senhor dos Caminhos, símbolo do fogo no culto do Agonde Bantu (seja do vindo do Congo ou de Angola), para nós, variado para comumente ser chamado de Candomblé Angola. Há quem diga que a nomeação Pomba Gira venha como variação de Pambu N’gila, corruptela, como já sendo a forma feminina de Exu. Mas, de fato, são panteões e formas distintas de reguladores de energias espirituais ligadas aos caminhos.
Na Umbanda, Pomba Gira foi adotada como variante feminina de Exu e comumente ficou conhecida como Exu Mulher, o que se espalhou inclusive para o Candomblé, no culto de Catiços, os Exus de caminho, abaixo de nossos Baras, os Exus mensageiros dos nossos Orisàs.
Mas a Pomba Gira não é a principal entidade presente na peça. Eu a vejo como todo um espectro sócio religioso feminino, do qual se valeram as mulheres, no nosso caso, negras, contra muitas injustiças: esse poder de conclamar as forças tanto ancestrais como espirituais e da natureza, que se guardou e se guarda há tempos nas cabaças, que são representações do feminino, assim como das cabeças, que guardam os segredos, feitiços, curas e pragas.
Na forma como foi levantada a peça, ainda há a presença da ancestralidade via Egungun, que também tem, inclusive, a fundação de seu culto em Xangô, quando este perdeu sua filha pelas mãos das Iyami Oxorongá. Esse elemento aparece no traje final que representa a Joana. Embora Egungun seja ancestral masculino, desde que iniciados no mistério, todos nos transformamos em Eguns quando morremos. Esse traje se faz como símbolo dos extermínios da população negra e é sabiamente carregado pelo Mestre Egeu, que se faz então de Ojé, sacerdote ligado ao culto aos ancestrais yoruba nagô. Ou seja, tem muita coisa, nessa montagem do texto, que se sobrepõem às demais montagens.
E aqui quando falo em Xangô (Sàngó) para Joana, voltando aos seus arquétipos, vem logo na sequência uma de suas companheiras, Obá (Yoba), guerreira, feiticeira, caçadora, fundadora da ordem Obá Elekô. Eu, se fosse um babalorixá da Joana, a iniciaria em Sàngó e Yoba… Porém Yoba não aceita ser segundo Orisà na cabeça de ninguém e não pega cabeça de homem, ao que dizem meus antigos. Então, mesmo Joana conclamando seu pai Xangô, no início e no final da peça, ela seria de Yoba e Sàngó… Oba Siré! Kawo Kabiesilé! Dona de mistérios, magias, guerreira e justiceira, até o fim. Assim como o Rei da Justiça some na terra, Joana se consome em sua busca por justiça, ainda que cessando a própria vida.

Sobre a contribuição da pesquisa universitária, no início do projeto, em 2017, a leitura da peça foi acrescida do estudo de dois textos: “‘Olha a Gota que falta’”: um evento no campo artístico-intelectual brasileiro, tese em História de Miriam Hermeto, professora da UFMG; e “Um pote até aqui de mágoa: Chico Buarque e Paulo Pontes retomam os heróis populares de Guarnieri e Dias Gomes”, ensaio de Homero Vizeu Araújo, professor de Literatura Brasileira da UFRGS.
Em especial, uma nota crítica de Homero Araújo inspiraria a encenação: “Em Gota D’Água o cadáver do povo é lançado na festa, ou melhor, no desfecho da festa conciliatória promovida sob o signo da ascensão social, do consumo e da propriedade” (ARAÚJO, 2014, p. 63). Sabe-se que não é sempre que um trabalho acadêmico tem impacto sobre a produção artística, mas a Apresentação do texto também enumerava, dentre suas “preocupações fundamentais”, que a peça refletisse o ânimo que Paulo Pontes e Chico Buarque haviam então obtido com a leitura de livros, ensaios e teses e com “o apetite pelo debate” deflagrado pelos “ciclos do [Teatro] Casa Grande” [21] (PONTES; BUARQUE, 1976, p. xviii). E não se deve ignorar que Gota D’Água {Preta} contou com um elenco intelectualizado. Além da formação teatral na ELT ou na EAD e da graduação de Gabriel Longhitano, somaram-se no palco a formação universitária de: Salloma Salomão (Graduação, Mestrado e Doutorado em História, na PUC-SP), Juçara Marçal (Graduação em Jornalismo e em Letras na USP, Mestrado em Literatura Brasileira, também na USP), Aysha Nascimento (Licenciatura e Bacharelado em Dança, na Universidade Anhembi Morumbi), Jé de Oliveira (graduando em Ciências Sociais, na USP), Fernando Alabê (atualmente com o curso de Pedagogia trancado no Instituto Singularidades) e Rodrigo Mercadante (cursos incompletos de Artes Cênicas na USP e de Filosofia no Claretiano).
por Felipe Sales

Por fim, a produção e a temporada de estreia de Gota D’Água {Preta} foram viabilizadas por patrocínio do Instituto Itaú Cultural, que ainda promoveu um debate sobre o espetáculo. Como observou Juçara Marçal, “não por acaso, Galiana Brasil, Gestora de Artes Cênicas da instituição, mulher negra, foi quem abriu caminho para que esse apoio à nossa montagem se consolidasse” (MARÇAL, 2020). E a circulação em 2019, conforme enumerei páginas acima, incluiu: sete teatros do Sesc[22]; cinco, construídos pelo poder público; e um particular, de um teatro de grupo paulistano. No momento em que escrevo, essa dinâmica e as sete anteriores se encontram sujeitas a ventos e a tempestades. Todavia, como observou Salloma Salomão ao final da temporada no CCSP, para negras e negros é mais um capítulo de uma história que ultrapassa 500 anos.

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Este artigo é parte do projeto de pesquisa Passagens: por uma revisão crítica interdisciplinar da MPB (1958-2014), apoiado pelo CNPq (Bolsa Produtividade em Pesquisa).
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Referências

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ARAÚJO, Homero Vizeu. Um pote até aqui de mágoa: Chico Buarque e Paulo Pontes    retomam os heróis populares de Guarnieri e Dias Gomes. In: ARAÚJO, Homero    Vizeu. Futuro pifado na literatura brasileira: promessas desenvolvimentistas e           modernização autoritária. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2014. p. 63-83.
AZEVEDO, Amailton Magno Grillu; SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Os sons que            vêm das ruas: a música como sociabilidade e lazer da juventude negra urbana. In:   ANDRADE, Elaine Nunes de (org.). Rap e educação, rap é educação. São       Paulo: Summus, 1999. p. 79-80
BORGES, Rosane. Em tempos de regressão, quase nada pode ser a Gota d’água (preta)!.           Carta Capital, São Paulo, 22 fev. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3aY879T.    Acesso em: 20 nov. 2019.
BUARQUE, Chico. Chico ou o país da delicadeza perdida. BMG/ Videofilmes,         82876538929, 2003. 1 DVD. Especial apresentado na televisão francesa em 1990.
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[1] Martinha Soares representou Nenê nas apresentações do mês de julho e no Sesc Ginástico do Rio de Janeiro, de 16 a 27 de outubro de 2019.
[2] Para notícias das apresentações, consultar ITAÚ CULTURAL (2019), CENTRO CULTURAL SÃO PAULO (s.d.), G1 (2019), GALPÃO DO FOLIAS (s.d.), CLICK GUARULHOS (2019), COMPLEXO THEATRO MUNICIPAL (s.d.), ABC DO ABC (2019), JUNDI AQUI (2019), THEATRO SÃO PEDRO (s.d.), JORNAL DA ORLA (2019), SESC RIO (2019). Ao término da temporada no Teatro Sesc Ginástico, completaram-se 50 apresentações. Em novembro de 2019, houve mais três: uma no Cine Theatro Brasil Vallourec, em Belo Horizonte, na 10ª edição do Festival de Arte Negra; uma no Sesc Rio Preto, em São José do Rio Preto; e uma no Sesc Sorocaba. Cf. PEIXOTO (2019), SESC SÃO PAULO (s.d.), AGENDA SOROCABA (s.d.). Agradeço a Janaína Grasso, produtora executiva do espetáculo, o auxílio no registro das apresentações.
[3] Esclareço que participei do início do projeto, em 2017, dividindo os estudos teóricos com Jé Oliveira, Juçara Marçal e Salloma Salomão. Em 2018, participei dos ensaios como violonista até o mês de outubro, antes que a música e a montagem efetivamente ganhassem corpo. Por fim, assisti a cinco apresentações: na sala Itaú Cultural (duas sessões), na sala Jardel Filho do CCSP, no Auditório Ibirapuera e no Teatro Municipal de São Paulo.
[4] Entre aspas, cito observação de Juçara Marçal em debate no Itaú Cultural, em 31 de março de 2019. Tanto suas intervenções quanto as de Jé Oliveira e as de Salloma Salomão abordaram aspectos interessantes das religiões, do “legado ritualístico” e da “solução sobrenatural” no texto de Paulo Pontes e Chico Buarque e na montagem. Cf. TEATROJORNAL (2019).
[5] Para uma pesquisa abrangente e aprofundada do processo de produção do texto de Gota D’Água e de suas encenações entre 1975 a 1980, consultar Miriam HERMETO (2010). Segundo a autora, apesar de a Apresentação do texto de Gota D’Água ser assinada por Paulo Pontes e Chico Buarque, a autoria é apenas do primeiro; vale assinalar que, durante a redação, ele dialogava com Luiz Werneck Vianna, o qual morava “‘rigidamente clandestino’” na casa de Bibi Ferreira e Pontes (HERMETO, 2010, p. 142-156; a citação pode ser lida à p. 143).
[6] Para estudos do assunto produzidos na década de 1970, consultar: Beatriz Nascimento, “A mulher negra no mercado de trabalho”, artigo publicado em 1976 (NASCIMENTO, 2006b); Abdias Nascimento, “Escravidão: o mito do senhor benevolente” e “Exploração sexual da mulher africana”, capítulos redigidos entre 1976 e 1977 (NASCIMENTO, 1978a, 1978b).
[7] Sérgio Pires representou Egeu nas apresentações do mês de julho de 2019.
[8] Tiago Sonho participou das apresentações em Belo Horizonte e São José do Rio Preto.
[9] Em entrevista para a divulgação da temporada de Gota D’Água {Preta} no Sesc Ginástico, Juçara Marçal se referiu aos cantos de candomblé, de umbanda e à base percussiva do jongo. Cf. SESC RIO (2019).
[10] Para ampliação do assunto, consultar a crítica contundente de Beatriz Nascimento, no artigo “Por uma história do homem negro”, à transformação de uma manifestação religiosa negra em “música na TV” cantada por Vinicius de Moraes e Toquinho. Cf. NASCIMENTO (2006d).
[11] Recorde-se que o nome da protagonista da peça, Joana, foi tomado do samba “Notícia de jornal”, de Luís Reis e Haroldo Barbosa. Em 1961, o samba fora gravado por Elizeth Cardoso. Em 1975, foi cantado por Chico Buarque no show que dividiu com Maria Bethânia, no Canecão; no disco que registrou esse show, a faixa antecedeu “Gota D’Água”.
[12] Na entrevista realizada por ocasião da temporada no Sesc Ginástico, Fernando Alabê se referiu à “cultura de periferia”, à “musicalidade de periferia” e à “musicalidade negra” (SESC RIO 2019). Ultrapassaria bastante os limites deste artigo abordar a relação e a tensão que há entre as expressões “música negra urbana”, que enfatiza a categoria de raça, e “culturas das periferias”, que enfatiza a categoria de classe social articulando-a à geografia urbana. Mas, para evitar mal-entendidos desnecessários, é importante lembrar que a questão está presente na obra do Racionais MC’s desde o início do disco Raio X Brasil, de 1993: na vinheta de abertura, Edy Rock declama “– 1993, fudidamente voltando, Racionais, usando e abusando da nossa liberdade de expressão, um dos poucos direitos que o jovem negro ainda tem nesse país”; e Mano Brown dedica “Fim de semana no Parque”, primeira faixa do disco, “– A toda a comunidade pobre da zona sul” (desse rap, Gota D’Água {Preta} extraiu o sample “E a maioria por aqui se parece comigo” [o grifo é meu], tocado quando Jasão retornou à Vila do Meio-Dia). O exemplo é didático, mas penso que seja suficiente para indicar que, a partir de então, o rap do Racionais se voltou para o cotidiano de bairros periféricos registrando, denunciando e criticando “a violência que estrutura a sociedade brasileira”, suas “origens econômicas (capitalismo e generalização da forma mercadoria) e sociais (preconceito e segregação racial)”, assim como “a sua consequência inevitável (a morte)” (GARCIA, 2003, p. 167). Para uma análise da questão no âmbito mais amplo do rap em São Paulo, consultar Márcio MACEDO (2016).
[13] Sobre “Pelo telefone”, cuja bibliografia já é numerosa, consultar Roberto MOURA (1983), Nei LOPES (2005) e Carlos SANDRONI (2012).
[14] Para a análise de como o livro, os espetáculos e o disco de Gota D’Água se inseriram “na estrutura da indústria cultural e no mercado de bens simbólicos em desenvolvimento” na década de 1970, consultar Miriam HERMETO (2010). Para a crítica da produção de esquerda no Brasil, nas décadas de 1950 e 1960, e de suas relações com o mercado hegemônico, consultar Roberto SCHWARZ (1992).
[15] Será útil a quem se interessar pelo assunto comparar três gravações de “Piano na Mangueira”, de Tom Jobim e Chico Buarque: cantada por Chico e Tom, no disco Paratodos (BUARQUE; JOBIM, 1993); por Tom, no disco Antonio Brasileiro (JOBIM, 1994); e por Jamelão e Chico, no morro da Mangueira, para o documentário Chico e as cidades, lançado em 2001 (BUARQUE; JAMELÃO, 2013).
[16] Inspiro-me em argumento de Roberto Schwarz desenvolvido em contexto diverso. Cf. SCHWARZ, 1992, p. 81-82.
[17] Em seu artigo “Por uma história do homem negro”, publicado em 1974, Beatriz Nascimento formula algumas questões que vão ao encontro do que procuro discutir a partir do arranjo de “Flor da idade”: “Que somos nós, pretos, humanamente? Podemos aceitar que nos estudem como seres primitivos? Como expressão artística da sociedade brasileira?” (NASCIMENTO, 2006d, p. 94).
[18] O arranjo de sax tenor para “Basta um dia” foi concebido por Thiago França. Para um ótimo exemplo da cuíca na obra de Chico Buarque, escutar a participação de Mestre Marçal em “Estação derradeira”, de Chico, gravada para o especial Chico ou o país da delicadeza perdida, de 1990 (BUARQUE, 2003).
[19] Nina Nussenzweig Hotimsky utiliza a expressão “difíceis melodias” no relato do processo de montagem de Calabar, em 1973, a partir de entrevistas que realizou com atrizes e atores do coro e com Dori Caymmi, diretor musical (HOTIMSKY, 2019, p. 152). Penso que a característica possa ser generalizada para toda a obra cancional de Chico Buarque.
[20] Para outra pesquisa sobre o assunto, assistir ao “Documentário” produzido pelo Racionais MC’s que consta dos Extras do DVD 1000 trutas 1000 tretas, lançado em 2006. O vídeo registra criticamente um rico material, desde “o território negro nas ruas do centro”, na década de 1870, até a “Periferia de São Paulo – 1975”, ao som dos Originais do Samba. Daí, enfocam-se “Rua: 24 de maio/ Grandes Galerias/ 1980”, ao som da black music, do soul e do funk estadunidenses e, a seguir, ao som do pop de Michael Jackson e Quincy Jones. Então, relatam-se os grandes bailes da Chic Show no Palmeiras, e a chegada desta equipe à rádio FM. Finalmente, “Pq. Santo Antonio Z. S./ Dois mil e...”, ao som do rap. Cf. RACIONAIS MC’S, 2006.
[21] É incontornável sublinhar a ironia do final da frase.
[22] Escaparia aos objetivos deste artigo examinar a atuação do Sesc, bem como a do Itaú Cultural, à luz de um espetáculo como Gota D’Água {Preta}. Mas não custa registrar que o tema daria uma análise no mínimo interessante.





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